Quase 160 anos após a construção do canal do Valo Grande, no litoral sul de São Paulo, pesquisadores do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP) seguem identificando desequilíbrios causados na região por conta da obra, que desviou grande parte do fluxo do rio Ribeira de Iguape para o Mar Pequeno, entre Iguape e Ilha Comprida. Em um estudo publicado na revista Anais da Academia Brasileira de Ciências, os pesquisadores, coordenados pelo oceanógrafo Michel Michaelovitch de Mahiques, verificaram que a construção do canal, projetado para facilitar o transporte de arroz produzido na cidade de Iguape até o porto local, causou alterações ambientais progressivas que se agravaram no passado recente.
Construído em 1855, o canal levou à formação do delta do Valo Grande no interior da laguna costeira. Isso, segundo os pesquisadores, se deu em função do intenso processo de assoreamento causado pela erosão das margens do canal e pelos sedimentos provenientes do rio Ribeira. Como resultado do alargamento do canal, aproximadamente 60% do fluxo do rio foi transferido para o sistema lagunar, de água salobra, provocando a diminuição drástica da salinidade e seu assoreamento. Ao mesmo tempo, a grande infiltração de água doce reduziu as áreas de mangue, que foram substituídas por vegetação de água doce. “A área do delta do Valo Grande encontra-se sob forte modificação de sua paisagem”, conta Mahiques. No arquipélago de Porto Iguape, por exemplo, os manguezais praticamente desapareceram nos últimos 10 anos. “Também houve um recuo progressivo da linha da costa na margem da Ilha Comprida ao longo dos anos”, explica.
Quando concluído, o Valo Grande tinha 4,4 metros de largura, dois de profundidade e aproximadamente 4 quilômetros de extensão. Ao longo de 150 anos desde a sua abertura, contudo, a força das águas do rio Ribeira aumentou a largura do canal, que hoje chega a quase 300 metros e sete metros de profundidade. Segundo Mahiques, também as águas desviadas do rio, carregadas de sedimentos lamosos, aos poucos provocaram intenso assoreamento e inviabilizaram o Porto de Iguape, já que as embarcações não mais podem atracar.
Em estudos anteriores, os pesquisadores já haviam observado que as águas do Ribeira de Iguape carregavam grãos mais finos e mais matéria orgânica do que antes, o que afetara a fauna que vive no fundo de rios e mares. Observaram também uma alteração química nos níveis de metais pesados, em especial o chumbo. Esse elemento químico pode entrar na cadeia alimentar marinha, acumular-se no organismo de espécies de alto valor comercial, como robalos, pescadas, manjubas, camarões, ostras e mexilhões, e chegar às pessoas, causando danos no sistema nervoso central (ver Pesquisa FAPESP nº 225). Agora, explica Mahiques, a constatação de que o canal continua a alterar a paisagem local deve fornecer subsídios para a discussão de políticas públicas relacionadas à preservação ou restauração do Valo Grande.
Projeto
O registro geológico da atividade antrópica no sistema Estuarino-Lagunar de Cananeia-Iguape (nº 06/04344-2); Modalidade Auxílio Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Michel Michaelovitch de Mahiques (IO-USP); Investimento R$ 129.948,01 (FAPESP).
Artigos científicos
MAHIQUES, M. M. et al. Coastline changes and sedimentation related with the opening of an artificial channel: the Valo Grande Delta, SE Brazil. Anais da Academia Brasileira de Ciências. nov. 2014.
MAHIQUES, M. M. et al. 150 years of anthropogenic metal input in a Biosphere Reserve: the case study of the Cananéia–Iguape coastal system, Southeastern Brazil. Environmental Earth Sciences. v. 68, n. 4, p. 1073-87. jul. 2012.