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Opinião

Técnica, Tecnologia e Ciência (I)

A Tecnologia chegou, em nossos tempos, especialmente depois da globalização, a adquirir enorme importância – não só para os indivíduos mas, também, para a nações e para a sociedade em geral – levantando problemas econômicos, políticos, sociais e mesmo culturais. Torna-se, portanto, necessário indagar sobre a própria essência do que é Tecnologia. Isto é, urge meditar filosoficamente sobre o significado e o sentido do que se chama Tecnologia.

Grandes filósofos já vinham, desde o início do século, preocupando-se com a Técnica. Oswald Spengler, o festejado autor do best-seller filosófico dos anos trinta, A Decadência do Ocidente, tratou do assunto no seu O Homem e a Técnica. Nesse ensaio o homem é visto como animal de rapina, usando a Técnica como sua arma. Depois disso, Ortega y Gasset publicou, em jornal argentino – se não me engano, La Nacion – uma série de artigos que vieram a enfeixar o volume Meditacion de la Tecnica, editado pela Revista do Ocidente, em 1939. Esse interesse filosófico chegou a motivar as meditações de um dos maiores filósofos deste século, Martin Heidegger, em seu ensaio A Questão da Técnica, cujo original alemão apareceu em 1953.

Contudo, talvez com exceção desse último, não creio que eles estivessem conscientes que o interesse maior não mais estava no estudo da Técnica mas, sim, no da Tecnologia. Isto é, de que as atividades técnicas não eram mais resumíveis ao trabalho manual ou mecânico sobre materiais ou construção de obras. De que, entre os técnicos dos nossos tempos, haviam os tecnologistas, formados em escolas superiores, que aplicavam teorias, métodos e processos científicos para a solução de problemas técnicos. Isso veio trazer uma simbiose entre Técnica e Ciência cujos efeitos estavam longe de ser previstos, como determinantes dos destinos da humanidade.

A Técnica é tão antiga quanto a humanidade. Há mesmo a idéia, entre antropólogos, de que o que distinguiria os restos fossilizados de um homem dos de um hominídeo seria a presença, junto ao primeiro, de instrumentos por ele fabricados.

Contudo, há a opinião de Levi-Strauss de que os índios Nhambiquaras eram tão primitivos que nem mesmo possuíam Técnica – o que, curiosamente, é desmentido no seu próprio livro Tristes Tropiques, suscitando a idéia de que por mais primitiva que seja a sociedade sempre há Técnica, por mais simples que seja. Ortega y Gasset chama a esse estágio primitivo da Técnica de “técnica do acaso (azar)”, suposto que, nesse estágio, a fabricação dos instrumentos não se diferenciava muito dos seus atos naturais. Assim sendo, os atos técnicos não seriam privativos de certos indivíduos mais aptos, mas igualmente efetuados por todos de uma mesma comunidade.

Contudo, é se acrescentar a Ortega que o pensamento humano é simbólico; ou seja, sempre interpõe entre os objetos percebidos e a mente um símbolo, dos quais os mais imediatos são as palavras da linguagem. Essas têm a propriedade de se conotarem entre si, no sentido de sugerirem ao homem um progresso nos seus conhecimentos. Entre pedra lascada e cortar há, por exemplo, uma conotação que permite a melhoria do instrumento; isto é, poli-lo para cortar melhor. Assim, uma vez obtido, por acaso, um instrumento, instala-se- a princípio muito lentamente – um processo de desenvolvimento técnico.

Foi isso que permitiu a Ortega e Gasset conceber um segundo estágio da Técnica: que ele chama de “técnica do artesanato”, em que os atos técnicos são ensinados de geração a geração, incluindo a invenção e o aperfeiçoamento dos instrumentos. É nesse estágio que aparecem certos homens dotados de maior habilidade e que se encarregam das funções técnicas, dedicando a eles a sua vida. São os artesãos, com seus mestres e aprendizes. O aprendizado progride até o ponto de escreverem-se tratados para o ensino das técnicas às gerações futuras.

Com o advento da ciência moderna, no século 17, abriu-se a possibilidade da aplicação de conhecimentos científicos para resolver problemas técnicos. É o caso da máquina a vapor e, mais especificamente, do gerador e do motor elétrico. Surge, então, um terceiro estágio da técnica, ao qual Ortega y Gasset dá o nome de “técnica dos técnicos”. Nela é que se dá o trânsito da mera ferramenta do artesão para a máquina que atua por si mesma. O homem passa a ser um auxiliar da máquina, como operário, mas surge aquele que sabe projetar, construir e conservar as máquinas, o engenheiro, cujos métodos de ação são muito próximos dos métodos dos cientistas: analisa o problema a ser resolvido, dividindo-o em partes, e o resolve a partir da mais simples, experimentando os resultados parciais e concatenando-os em séries de causas e efeitos.

Ortega não viu, entretanto, que, em seu próprio tempo, já vinha surgindo uma radicalmente nova etapa de desenvolvimento técnico, isto é, a Tecnologia. Não se tratava mais de aplicar conhecimentos científicos para construir uma determinada obra ou fabricar um determinado produto, como o fazem a engenharia, a arquitetura, a indústria ou a agropecuária, mas, sim, de resolver problemas técnicos de uma forma generalizada, como o faz a Ciência, com suas teorias. Pode-se dizer, por exemplo, que o surgimento de uma tal atividade tecnológica deu-se com as pesquisas de Edison, em seu laboratório de Menlo Park, para obter um metal que servisse para os filamentos de lâmpadas elétricas, que pudesse emitir luz, encandecendo sem, porém, fundir-se.

Um outro exemplo é a descoberta das válvulas termoiônicas por John Ambrose Fleming, fisico inglês, e Lee De Forest, PhD pela Universidade de Yale, para seu uso na transmissão e recepção radiofônica. Assim, a pesquisa de propriedades de materiais e o desenvolvimento da eletrônica estão na origem dessa atual etapa da técnica: a Tecnologia, a qual não prescinde da pesquisa tecnológica. Não há Tecnologia se não houver pesquisa tecnológica. E essa é muito semelhante à pesquisa científica.

Milton Vargas é Professor emérito da Escola Politécnica da USP e diretor da Themag Engenharia.

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