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Ambiente

Funções multiplas

Grande parte das pessoas associa os fungos imediatamente ao mofo de paredes úmidas ou a alimentos estragados, como o pão embolorado. Poucos se dão conta da importância dos fungos para o equilíbrio dos ecossistemas ou mesmo como indicadores das alterações produzidas pelo ser humano no meio ambiente. De acordo com a bióloga Iracema Helena Schoenlein-Crusius, pesquisadora da Seção de Micologia e Liquenologia do Instituto de Botânica da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, as escolhas de locais para conservação da biodiversidade jamais levam em conta as comunidades microbianas: “Isso pode fazer com que importantes espécies de fungos sejam perdidas, com conseqüências desconhecidas para a manutenção da vida nos ambientes terrestre e aquático”.

O projeto temático Estudo de Fungos em Ambientes Terrestre e Aquático: Uma Contribuição para Avaliação e Conservação da Biodiversidade , coordenado pela bióloga, é o tipo de trabalho que preenche parte dessa lacuna. O projeto está identificando fungos de dois ecossistemas: a Represa de Guarapiranga, na Zona Sul de São Paulo, e o Rio Monjolinho, em São Carlos, a 300 km da Capital. O estudo da represa está concentrado no Instituto de Botânica, onde Schoenlein-Crusius conta com a assistência do mestrando Christian Wellbaum (Unesp) e da estagiária Marilene Domingues. O trabalho no Rio Monjolinho é desenvolvido por Mirna Januário Leal Godinho, professora da Universidade Federal de São Carlos, com a colaboração da mestranda Elaine Malosso.

O projeto estuda os fungos no ambiente terrestre (solo e folhedo) e no ambiente aquático (folhedo submerso), comparando a diversidade das micotas (populações de fungos) das duas regiões, que sofreram interferência humana diversa. Schoenlein-Crusius cita a cientista inglesa Marta Christensen, que relacionou cerca de vinte funções principais exercidas pelos fungos na Natureza. Entre elas estão as de decompor a matéria orgânica, mineralizar e imobilizar nutrientes, reservando-os para o ambiente. “Os fungos são importantes para os vegetais, pois transportam nutrientes, promovem o intercâmbio de íons e alteram o movimento de água e elementos químicos através das partes aéreas das plantas.

Nas raízes das plantas, podem formar associações simbióticas, as micorrizas, dinamizando o fluxo de nutrientes. Também podem estimular a germinação de sementes, por meio da ruptura do tegumento (camada protetora de algumas sementes).” Mas esses organismos exercem importantes funções também com relaçãoao solo. Ali, os fungos podem acumular materiais tóxicos e atuar sobre a permeabilidade- uma vez que retêm a umidade- e agregação da terra. E mais. Sua participação na cadeia alimentar pode ser direta, pois são consumidos por organismos como os ácaros, e indireta, já que elevam a “palatabilidade” dos substratos para seres que se alimentam de detritos, principalmente nos ecossistemas aquáticos.

A importância dos fungos para os animais também se revela no seu papel como predadores (fungos nematófagos e insectícolas) e mutualistas (fungos cultivados em “jardins” de formigas). Os fungos apresentam interações complexas entre si, acrescenta Schoenlein-Crusius: “Os mecanismos de competição entre as espécies envolvem a produção de antibióticos, ocupação de espaço por meio do crescimento de hifas (filamentos) e síntese de enzimas específicas para metabolização de diversos substratos”.

Diversidade
No âmbito do projeto, foram feitas coletas bimestrais de amostras de solo, folhedo e água dos ambientes entre agosto de 1997 e agosto de 1998. No caso da represa, isso foi feito em seis pontos, que coincidem com pontos de coleta de amostras da Sabesp. Atualmente o projeto encontra-se na fase de identificação dos fungos presentes nas amostras. Essa fase deve terminar em julho/agosto deste ano. Depois, será preciso correlacionar os dados de fungos com as variáveis levantadas. Até abril, foram identificadas 45 espécies de fungos presentes no solo e 40 encontradas no folhedo submerso da região da represa. Nos rios Monjolinho e Jacaré-Guaçú foram identificadas 20 espécies de fungos aquáticos. Uma surpresa dessa fase do projeto foi a existência de diversas linhagens do gênero Penicillium no ambiente terrestre da represa.

“Talvez essa constatação recomende um estudo mais específico sobre as potencialidades desses fungos para, por exemplo, a produção de algum antibiótico ou depuração de efluentes.” O gênero Penicillium é extremamente comum no solo e abrange espécies cosmopolitas (aquelas que estão presentes em muitos ecossistemas). Entre as utilizações das espécies desse gênero na indústria, destacam-se a produção de antibióticos e de queijos (camenbert, brie, gorgonzola e outros). “Para compreender a elevada incidência de Penicillium no ambiente terrestre e aquático da Represa de Guarapiranga estamos confrontando a ocorrência das suas espécies com as variáveis ambientais que foram determinadas no projeto.

Com isso poderemos evidenciar melhor que condições favorecem a presença desse fungo no ambiente”, explica Schoenlein-Crusius. Isso significa que os pesquisadores em busca de diversas espécies de Penicillium – quem sabe com potencialidades interessantes -, saberão como e onde encontrá-las com maior facilidade. É sabido que há fungos comuns a praticamente todos os sistemas; outros são raros e alguns são típicos de um determinado sistema. Todavia, a diversidade de fungos no solo, na água e no substrato vegetal da represa foi mais uma surpresa para os pesquisadores: “Das 45 espécies de fungos identificados no solo das margens da represa, 32 espécies foram isoladas pela primeira vez na região do manancial”.

Ergosterol
Um subproduto do projeto está sendo a quantificação de ergosterol – um esteróide produzido pelos fungos – contido no folhedo submerso dos dois ambientes aquáticos. “Devido às dificuldades técnicas para separar o fungo do substrato onde ele se encontra, pode-se quantificara biomassa fúngica através da determinação de moléculas específicas produzidas por esses organismos e a sua subseqüente relação com a massa micelial (filamentos de fungos) seca.” Essa quantificação do ergosterol em biomassa de fungos filamentosos é pioneira no Brasil. Até o momento, a substância só havia sido quantificada na formação de associação micorrízica (fungos e raízes) em eucalipto.

“Há falta de dados no país para se conhecer, com maior amplitude, a distribuição geográfica, as interações ecológicas e a diversidade dos fungos decompositores de substratos vegetais, tanto nos ambientes aquáticos quanto terrestres. Essas informações são importantes para avaliar a capacidade desses organismos para o processamento da matéria orgânica e na dinâmica trófica (nutricional) do ecossistema.” Um dos estudos que derivam desse projeto é a avaliação específica sobre a capacidade de assimilação de certas substâncias pelos fungos. A represa é submetida à sulfatação toda vez que a Sabesp constata que o teor de clorofila e número de algas excedeu o limite tolerável.

São lançados sulfato de cobre e peróxido de hidrogênio com a preocupação de evitar que as algas produzam toxinas. “Supomos que esse tratamento interfere na diversidade dos fungos, porque é um fator de seleção. Está sendo feito um estudo com enfoque mais aplicado: alguns fungos estão sendo testados quanto à tolerância ao cobre e ao peróxido e também quanto à sua capacidade de absorver essas substâncias. Se os fungos sobreviverem a uma quantidade razoável das substâncias e conseguirem retê-las, é recomendável um estudo aprofundado sobre a viabilidade de utilização dessa biomassa fúngica num sistema de filtro biológico, para tratamento de água ou de efluentes industriais.”

Perfil
A professora Iracema Helena Schoenlein-Crusius, 37 anos, é bióloga, com pós-graduação (mestrado e doutorado) em Biologia Vegetal pela Unesp de Rio Claro. Além de pesquisadora científica da Seção de Micologia e Liquenologia do Instituto de Botânica desde 1987,  é professora credenciada do curso de pós-graduação na área de Microbiologia Aplicada da Unesp de Rio Claro.

Desmoronamentos em Guarapiranga
A Represa do Guarapiranga, responsável pelo abastecimento de água de 3 milhões de pessoas na Grande São Paulo, tem sofrido um processo de degradação há anos, em função de loteamentos clandestinos, desmatamento e lançamento de esgotos. “Alguns trechos das margens e as pequenas ilhas estão sofrendo rápido assoreamento, possivelmente em resposta às oscilações do volume de água contido no manancial e aos efeitos antrópicos sofridos pelo solo”, diz a bióloga Iracema Schoenlein-Crusius. Medidas têm sido tomadas para reverter a situação, como é o caso do recém-criado Parque Ecológico do Guarapiranga, com 260 hectares de área, às margens da represa e incorporando parte das várzeas dos rios Embu-Mirim e Piraporinha.

Outras medidas, entretanto, segundo ela, devem ser adotadas com urgência para reflorestar e recuperar o solo da represa – inclusive das ilhas – e restabelecer o equilíbrio ecológico do ambiente. “O perfil da fertilidade do solo, associado à baixa umidade e às características climáticas da região, podem levar à salinização, erosão e, conseqüentemente, a eutrofização (acúmulo de fósforo e nitrogênio) do manancial.” Schoenlein-Crusius lembra que, num estudo preliminar realizado no Instituto de Botânica, descobriu-se que o solo do entorno da represa estava desmoronando.

Isso foi constatado na Ilha dos Eucaliptos, onde os próprios eucaliptos estavam caindo na água, eutrofizando a represa e gerando riscos para as pessoas que utilizam barcos no local. As constatações do projeto temático indicam a necessidade de um estudo urgente das propriedades físicas do solo das margens e das ilhas da represa por uma equipe de pedologistas (especialistas em solo), para a recuperação ou melhoria das condições do terreno e, com isso, garantir a qualidade da água para abastecimento.

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