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Leroy Hood

A Biologia tornou-se informação

A carreira de Leroy Hood marca-se pelo interesse em desenvolver novas ferramentas para apressar o passo da Biotecnologia. Desde os anos 60, participou do desenvolvimento de máquinas para automatizar muitas das tarefas ligadas à área – inclusive os seqüenciadores de DNA e de proteínas atualmente em uso nos laboratórios. Como conta na entrevista, Leroy nunca teve nenhuma restrição a trabalhar com a indústria – e tornou-se, ele mesmo, um fundador de empresas do ramo, como a Applied Biosystems (comprada pela Perkin-Elmer) ou a Amgen.

Em 1992, mudou-se do Caltech para a Universidade de Washington, em Seattle, onde criou o Departamento de Biotecnologia Molecular, e também onde organiza, agora, a criação de um novo instituto de pesquisa, para o qual prevê um orçamento de US$ 100 milhões. Leroy gosta de escalar montanhas, nasceu em Montana, e tem dois filhos. Em março, quando o vice presidente dos Estados Unidos, Al Gore, anunciou uma verba adicional de US$ 81 milhões para apressar o seqüenciamento do genoma humano, o centro ao qual Leroy está ligado não recebeu suplementação.

Em 1991, o senhor disse que seria fundamental a ampliação da capacidade de seqüenciamento para o sucesso do projeto Genoma Humano. O senhor está satisfeito com o que foi atingido até agora?
Bem, nós chegamos ao previsto. As máquinas mais recentes, que estão sendo testadas agora,1 já têm capacidade três a quatro vezes maior do que as máquinas que os laboratórios estão usando neste momento. As novas máquinas podem ler centenas de milhares, meio milhão de pares de bases em um ano… Esta é uma das razões pela qual o projeto Genoma Humano muda toda uma série de paradigmas da Biologia, e já começa a mudar também os paradigmas com os quais a Medicina trabalhou até aqui. Essas mudanças têm a ver com a idéia de que, agora, Biologia tornou-se informação. E a informação está em nossos cromossomos.

O desafio, daqui para a frente, para a Biologia e para a Medicina, será entender não como funciona um gene, ou uma proteína, mas como um sistema de genes ou de proteínas funciona. Agora, pela primeira vez, e em parte por causa do projeto Genoma Humano, nós temos o que eu chamo de “ferramentas globais” – com as quais se pode olhar não para um só gene de cada vez, mas para mil genes, dez mil genes ou cem mil genes de uma só vez. Isto transforma como pensamos a Biologia. O que é interessante nos seres humanos está codificado em sistemas biológicos, não em genes isolados. E se você aplica esta idéia de olhar os sistemas ao estudo das doenças, isto também vai mudar o que pensamos das doenças. É o projeto Genoma quem gera estas mudanças.

Entre as descobertas realizadas desde que o projeto começou a ser engendrado, qual a que o excitou mais, qual delas o senhor achou mais interessante?
Se for preciso escolher…Como penso que o projeto Genoma é um projeto gerador de informação, informação que a Biologia vai usar para fazer novas perguntas, então as duas descobertas mais excitantes foram técnicas – a invenção do seqüenciador automático de DNA, que nos permitirá terminar o genoma humano vários anos antes do que nós imaginávamos inicialmente; e os chips de DNA2, através dos quais pequenos fragmentos de DNA em chips podem ser usados para olhar a informação expressa numa célula tumoral, ou numa célula normal. Nós desenvolvemos essa tecnologia e ela está disponível para câncer, por exemplo. São tecnologias que permitem analisar o DNA muito rapidamente, uma das ferramentas globais de que falei. Outra dessas ferramentas vai permitir a rápida tipagem de genomas. Já estamos trabalhando com empresas para desenvolver uma nova tecnologia, baseada no uso de fibras óticas, para analisar marcadores genéticos milhares de vezes mais depressa do que fazemos hoje.

Dessa maneira, podemos olhar grandes populações e correlacionar variações genéticas com a fisiologia, com as doenças prevalentes, por exemplo. No projeto genoma, trata-se de descobrir todos os elementos que estão presentes no genoma humano. Não fazemos muitas perguntas neste projeto, simplesmente porque não queremos fazê-las. Quando nós tivermos essa enciclopédia com toda a informação, o resto da Biologia vai trabalhar por centenas e centenas de anos até descobrir cada detalhe contido neste “livro da vida”. Não será o fim da Biologia, ao contrário; isto vai enriquecê-la enormemente.

Esta nova ciência vai criar ou já criou um novo cientista?
Houve uma arrogância por parte da academia, de que trabalhar com a indústria comprometia o cientista. Nunca me senti assim, e trabalhei com a indústria de biotecnolgia desde o fim dos anos 70. Agora as pessoas estão se apercebendo da utilidade de trabalhar com a indústria que, ao tornar disponíveis seus recursos e suas tecnologias, implementa o trabalho científico. É preciso tomar muito cuidado para que a obrigação do cientista de publicar seja garantida. Mas a interação entre indústria e academia vai se tornar mais e mais comum, e em escala cada vez maior. Apesar das enormes somas de dinheiro que o governo norte americano está investindo na pesquisa fundamental, há ainda algumas áreas em que o dinheiro da indústria é benvindo para tornar as coisas mais fáceis.

Qual sua posição frente ao problema das patentes?
Sou contra patentear ESTs – aquela situação em que você seqüencia uma pequena parte de um fragmento de gene, e patenteia isto -, eu penso que isso é um terrível engano, espero que não se torne a prática. Deve-se permitir patentes de seqüências de genes completos, desde que se conheça ao menos uma de suas funções biológicas, de tal maneira que, se outro pesquisador descobrir uma função completamente diversa do mesmo gene, isto possa também ser patenteado. Hoje não é assim. Quem tem a patente de um gene tem direito sobre tudo o que for descoberto ligado àquele gene. A legislação de patentes vem dos séculos 18 e 19 – o que havia a ser patenteado eram máquinas. Não se pode olhar a Biologia como uma máquina. Compreender que a Biologia é informação permite pensar com mais precisão sobre a questão das patentes.

Qual sua opinião sobre a estratégia anunciada por Craig Venter para seqüenciar o genoma humano? Qual o impacto dele sobre o projeto financiado por fundos federais?
– Embora as pessoas estejam se perguntando sobre como esteshot gun3 poderá funcionar, a proposta dele foi excelente, porque fez os laboratórios pensarem como as coisas poderiam ser feitas mais eficientemetne. Tudo o que nos empurre para a frente é bom. Quase certamente, a decisão de apressar o projeto genoma nunca teria sido tomada se Craig não tivesse anunciado que iria terminar em três anos. Competição é bom, para os dois lados. Se o projeto de Craig Venter e da Celera funcionar como eles dizem que vai funcionar, com os dados sendo publicados a cada quatro meses, então o projeto federal vai se beneficiar muito. Este primeiro esboço da seqüência do genoma humano que oNational Institute of Health propôs é complementar ao que a Celera se propõe a fazer. É muito boa competição.

Em que linhas de pesquisa seu laboratório trabalha no momento?
– Além de termos nos comprometido a seqüenciar grande parte do cromossomo 14 do genoma humano, estamos também seqüenciando o genoma do rato. O interesse de seqüenciar e comparar genomas diferentes é que as regiões dos cromossomos que tem informação são conservadas. Quando você compara o rato com o homem, as regiões altamente conservadas em ambos indicam que há informação nelas. A análise comparativa aponta quais são as partes realmente interessantes do cromossomo em ambas as espécies. Já se sabe que as regiões que tem as informações mais importantes nos cromossomos mudam menos do que todas as outras regiões.

A razão para isto é que elas não podem mudar porque se elas mudassem muito perderiam a habilidade de codificar aquela informação. De 70% a 80% dos genomas não estão envolvidos com estas funções mais importantes, e essas regiões podem mudar rapidamente, o que não afeta o organismo. Mas as partes que realmente codificam, uns 100 mil genes no caso dos seres humanos, se as compararmos entre as duas espécies, encontraremos tipicamente 70% delas similares entre si, enquanto se compararmos quaisquer duas regiões não relacionadas a genes encontraremos apenas 30% ou 40% de similaridade, ou ainda menos.

Uma área em que temos interesse especial é o estudo destem cells4 . Queremos entender como estas células “avós” atuam para diferenciar-se nas células T e células B do sistema imune, usando chips de DNA para estudá-las precocemente e descobrir quais são as moléculas importantes e o que elas fazem. Também estamos interessados em saber como fabricar stem cells . Elas podem vir a ser muito úteis: pode-se transplantá-las para pessoas que foram irradiadas porque têm câncer, e também se pode usá-las em alguém que tem um defeito genético. Se você colocar um gene “bom” em suasstem cells , e devolver a célula para a pessoa, o defeito genético estará reparado.

Há todo um novo tipo de engenharia genética, no qual vai se modificar o ovo fertilizado – umagermline engineering . Se você realiza essas modificações, elas se tornarão parte permanente do genoma humano. Isto é alguma coisa sobre a qual devemos ser extremamente cuidadosos por causa de todas as implicações éticas. Absolutamente não estamos fazendo isso agora. No futuro, acho que os cientistas trabalharão nisso, inicialmente para lidar com genes defeituosos, que vão curar famílias inteiras de determinadas doenças. Chegará um momento em que poderemos usar o mesmo procedimento para acentuar traços como inteligência, atração, estabilidade emocional e coisas como essas.

O senhor acredita que o conhecimento pormenorizado do material genético nos dará todas as respostas a respeito da condição humana?
O projeto genoma nos dará a tabela periódica da vida, todos os genes definidos, as regiões regulatórias, mutações, polimorfismos, e o que eles causam. O que o projeto genomanãovai nos contar é como estes 100 mil genes trabalham juntos para formar organismos humanos. Este será um passo gigantesco – partir da informação do genoma para a informação do sistema do organismo humano. Entender os problemas realmente mais difíceis, como consciência, rememoração, funções cerebrais mais fundamentais, isto pode levar ainda centenas de anos. De fato, há uma tendência a glamurizar e dizer que o genoma vai conter todas as resposstas. O genoma é o melhor dos começos para o entendimento da complexidade humana.

Do ponto de vista de sua carreira científica, o que significa para o senhor viver neste momento de transformação?
O que há de mais interessante na minha carreira é que eu ajudei essa revolução a acontecer. Participei criando instrumentos para que isso pudesse acontecer, e também informando as pessoas, ajudando a persuadir o Congresso. No princípio, havia muito ceticismo em torno do projeto Genoma Humano. Biologia, até ali, não era big science . Biologia sempre tinha sido small science . As pessoas não suportam mudanças, porque mudanças ameaçam. Por essa razão tão simples é que o projeto enfrentou tanta resistência e ceticismo no começo. Agora, estou interessado em dar impulso a idéias que tenham a ver com sistemas biológicos, porque esta é a fronteira para o século 21.

Na sua opinião, como deve ser conduzida a discussão sobre os problemas éticos levantados pelo projeto genoma?
A sociedade é que deve decidir sobre eles, não os cientistas individualmente. As questões devem ser resolvidas racionalmente, e terão a ver com privacidade genética, com o fato de que nós poderemos saber se alguém vai ou não manifestar determinada doença hereditária. Uma questão é que quase certamente genes determinam certos aspectos do comportamento; neste caso, quais os limites para o livre arbítrio e para as responsabilidades individuais? Qual a natureza da nossa responsabilidade? Há tantas questões fascinantes e, para cada uma delas, temos que pensar qual a melhor maneira de lidarmos com elas. Há quem diga que o melhor a fazer para lidar com esses problemas é parar a ciência.

Mas, se fizermos assim, talvez não nos tornemos capazes de livrar de 3% a 4 % de nossa população da cadeia, porque há prisioneiros com defeitos que nós poderemos descobrir como reverter. A humanidade tem a responsabilidade fundamental de fazer isso. Ao fazê-lo, vamos levantar todos esses novos desafios éticos, legais, sociais. Temos que ter maturidade para lidar com eles. A chave é dar para nossas crianças uma educação apropriada, para que elas possam pensar analiticamente e ter suficiente conhecimento para não se assustarem com a ciência. A ciência é alguma coisa que não se entende bem, muito do que é feito é visto como mau. Nós temos que educar as crianças para que elas percebam que a ciência é o caminho para a liberdade.

É o caminho para que as pessoas possam ser o que elas são, e escaparem de viver aprisionadas pelos seus genes, com doenças mentais, ou com diabete, ou com outras doenças. Nós usamos, aqui, bastante tempo com o programa de educação de ciência dos alunos do ensino médio. Ensinamos os estudantes a seqüenciar DNA. Ao mesmo tempo, propomos “cenários”. Um grupo de quatro estudantes age como se fosse uma família com doença de Huntington. Damos a eles diagnósticos hipotéticos, caso eles tenham ou não o gene defeituoso. Ensinamos como pensar eticamente sobre o assunto. Assim, quando eles terminam de seqüenciar, entendem os desafios da Biologia e as oportunidades que a Biologia dá. Os jovens gostam bastante.

O senhor acredita que o conhecimento de fronteira em biologia molecular vai ser capaz de responder a questões como o que é a felicidade, ou explicar porque razão Brahms compôs tão bem, coisas assim?
A resposta, provavelmente, é não, mas deixe eu responder usando um raciocínio de James Watson. Ele disse que nós nos acostumamos a pensar que nosso destino estava nas estrelas, e agora percebemos que nosso destino está em nossos genes. Isto é especialmente verdadeiro se pensarmos da seguinte maneira: há algumas características que são quase inteiramente genéticas. Mas há uma característica que não funciona assim. Se você toma dois gêmeos idênticos, e tira as impressões digitais dos indicadores deles, vai ver que são inteiramente diferentes – e eles têm precisamente os mesmos genes. Isto significa que, neste caso particular, o ambiente é o maior determinante desse padrão. Então, para cada uma das características, você terá que perguntar: ela é genética? Ou ela é principalmente ambiental, ou está entre ambas? A triste verdade é que não temos as ferramentas para decidir em que extensão cada traço é determinado geneticamente, ou pelo meio ambiente. No caso de uma coisa como a felicidade, acredito que o fator ambiental é muito preponderante.

O senhor parece otimista em relação ao futuro…
Sou otimista, e é preciso ser muito determinado para ser e permanecer otimista. Fui criado numa pequena cidade do estado de Montana, numa escola de apenas 140 alunos. Então, o que podia faltar de instrumentos e sofisticação, sobrava em atenção, se você fosse um bom aluno. Ao mesmo tempo, eu era olhado com atenção pelos professores, e tratado como um igual. Isto traz muita autoconfiança. Então, quando você sai para o mundo, mesmo que não tenha todas as ferramentas, sente-se capaz de fazer qualquer coisa que você queira. Há muitas pessoas que não conseguem fazer o que desejam só porque não acreditam que vão conseguir chegar onde querem. Penso que fui afortunado de viver no exato momento da história em que uma pessoa com os meus talentos é útil.

Meu talento é principalmente reunir pessoas, gente muita diferente entre si. No novo instituto que estamos criando, metade das pessoas vão ser matemáticos, e físicos e cientistas da computação e químicos – não biólogos. Nós precisamos de todas essas ferramentas juntas, e um dos desafios vai ser quebrar a barreira das linguagens diferentes com que cada um desses cientistas olha o mundo. É como falar com o público leigo: há cientistas que estão tão presos no jargão de suas especialidades que não sabem falar em linguagem simples para os não cientistas. Isto também é verdade entre biólogos e matemáticos. Não podemos sequer usar as mesmas palavras, porque palavras iguais podem significar coisas diferentes para um matemático e para um biólogo. Superar essa barreira vai ser excitante.

1 Refere-se aos seqüenciadores automáticos com tubos capilares,lançados em 98 (phamarcia) e 99 (Perkin Elmer). Há seis destas novas máquinas já em uso no projeto brasileiro Genoma Humano do Câncer.

2 dna arrays. A tecnologia mais conhecidaresulta da associação entre a Affimetrixe Hewlett Packard – GeneChip(tm).

3 Método em que se monta uma sequencia depois de “picar” o DNAem pedaços de cerca de 700 pares de bases. Para o caso de um genomada complexidade e do tamanho do humano, poderá haver obstáculosde ordem técnica, relacionados com a falta de ferramentas computacionaiseficazes para a montagem precisa e correta das leituras obtidas.

stem cells , as células mais primordiais de uma linhagem, as que dão origem a outras, mais diferenciadas.

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