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Craig Venter

A promessa de seqüenciar o genoma até o ano 2000

Entre os cientistas do mundo da genômica, Craig Venter é dos mais famosos – pela importância de suas contribuições técnicas, e pelo fato de ter anunciado, em maio de 98, a criação de uma nova empresa que, por US$ 200 milhões, e em três anos, realizaria o seqüenciamento completo do genoma humano. A Celera, situada em Rockville, Maryland, resultou de sua associação com a Perkin Elmer, uma das duas principais fabricantes de seqüenciadores automáticos; e o anúncio de seu objetivo quase paralisou o projeto Genoma Humano, que havia custado, até ali, quase US$ 1 bilhão, e prometia a seqüência completa apenas para 2005.

Mas os participantes do projeto financiado com verbas públicas reorganizaram-se; e o resultado da formação da nova companhia foi um encurtamento geral de prazos. Agora, ambos os times – o público e o de Craig – pretendem alcançar suas metas dentro de aproximadamente um ano. Na entrevista, realizada em março último, o doutor Venter compara seu trabalho ao do grupo que seqüenciou o genoma da C. elegans. Suas observações, e sua personalidade, poderão ser melhor apreciadas quando cotejadas às palavras de Robert Waterston, um dos coordenadores do grupo, que serão publicadas no encarte de agosto.

Muita gente com quem conversei sobre o senhor, nos Estados Unidos e no Brasil, expressam ceticismo e dúvida sobre o anúncio de seu projeto de seqüenciar o genoma humano dentro de 18 meses. Eles têm razão?
– Para entender a questão, é necessário que se compreenda a tecnologia, e mesmo cientistas da área não entendem os novos passos da tecnologia. Quando Hamilton Smith e eu decidimos seqüenciar o primeiro genoma da história, em 94, e pedimos ao NIH para financiar o projeto, houve esse mesmo ceticismo.Os assessores que analisaram a proposta disseram que seria impossível, que nunca poderia ser feito, que não se conseguiria montar, que os dados não seriam acurados – enfim, que ia ser terrível. No entanto, em 1995, nós publicamos o primeiro genoma na história, e foi a seqüência mais acurada e precisa jamais publicada. Todas as proteínas foram re-seqüenciadas pela indústria farmacêutica, e é notável a precisão que obtivemos.

O método que desenvolvemos ali é o método que vamos usar para fazer o genoma humano. A TIGR seqüenciou até agora 10 genomas completos, incluindo os mais relevantes para a saúde mundial: tuberculose, cólera, malária, sífilis, doença de Lyme, tudo isso foi realizado com o método que desenvolvemos para o Haemophilus influenzae , aquele mesmo que diziam que não ia funcionar, que era impossível. Há dúzias de genomas completamente seqüenciados agora, o que as pessoas imaginavam que não seria feito nem nas próximas décadas; tudo por causa da tecnologia que eles disseram que não ia funcionar.

O genoma da C. elegans acaba de ser publicado1, e não se pode dizer que seja muito completo, ou muito preciso. Custou dez anos, centenas de milhões de dólares, e envolveu centenas e centenas e centenas de cientistas. Pois nós vamos agora fazer a Drosophila em alguma coisa entre três e seis meses, e o seu genoma é maior do que o da C. elegans . Vamos fazer com mais precisão e mais completo. Há três mudanças que nos permitem cumprir esta meta. A primeira é o novo seqüenciador2. Por exemplo: a Tigr está seqüenciando o primeiro cromossomo de planta, o cromossomo 2 da Arabidopsis thaliana . Duas semanas atrás, decidimos ajudar com os novos seqüenciadores da Celera. Pois nas duas semanas, fizemos 25% do que a TIGR havia feito antes, e com a mesma precisão de qualquer outro genoma já sequenciado pela TIGR. Agora nós vamos para a Drosophila e o homem. A outra peça-chave disso são os computadores.

A Celera já tem o maior centro computacional de Maryland. Quer dizer: temos mais “potência de computadores” do que todo o NIH. Vamos gerar na Celera uma quantidade de dados a cada 30 dias que corresponderá a tudo o que foi seqüenciado até hoje e é de domínio público. Grosso modo, há 2 bilhões de letras de código genético no GeneBank; nós temos que gerar 30 bilhões para o homem apenas nos próximos dezoito meses. Por isso, precisamos dessa massa em computadores. Cinco anos atrás, não havia sequer computadores capazes de fazer isso. O terceiro componente são os novos algorítmos que nós desenvolvemos. Por que a TIGR foi capaz de fazer o primeiro genoma? Por causa dos algorítmos de montagem dos dados no computador.

Nós temos os maiores especialistas do mundo na arte da montagem. Agora eles expandiram 100 vezes os programas da TIGR para o genoma humano na Celera. O fato é que nós temos todos os componentes necessários para fazer a proposta funcionar, e todos os testes feitos até agora mostram que o resultado vai ser muito acurado, muito completo. Mas como isto nunca foi feito antes, presume-se então que não pode ser feito. Ok.. Vamos mostrar que pode ser feito, nós já temos essa experiência e estamos extremamente confiantes de que o faremos até mesmo antes do que havíamos previsto.

O senhor acha que a precisão é fundamental?
– Bem, o código genético varia de organismo para organismo. Por exemplo: quando começamos o genoma do Plasmodium falciparum , todos os pesquisadores em malária disseram que seria impossível de fazer por causa da percentagem muito alta de adeninas e timinas e que não se conseguiria sequer clonar o material. Como você sabe, publicamos no ano passado o primeiro cromossomo de malária da história. De fato, saiu mais fácil do que muitos outros genomas de bactérias. Não posso dizer que não há mais nada impossível, porque pode haver ainda alguns problemas. Mas o genoma humano é muito mais simples do que o da malária como código genético, então, nós não estamos mesmo preocupados.

Haverá áreas muito difíceis, que são difíceis para qualquer um dos métodos utilizados. O método tradicional em uso, que gasta muito dinheiro, não torna essas regiões mais fáceis. A C. elegans provou isto, foi feito no método tradicional, e há milhares de buracos. Então, isto não tem a ver com o método propriamente, é verdade que eles não tinham um bom mapa, mas o problema tem a ver com a falta de uma técnica melhor para seqüenciar essas regiões. Há regiões assim em qualquer genoma, todo mundo está usando o método de Sanger, se você não chega a uma região, tanto faz se você tem máquinas grandes ou pequenas, isto não muda. Daí porque, quando anunciamos o projeto, nós dissemos que haveria pequenos buracos – tentávamos ser bastante honestos a respeito disto. Na C. elegans, eles tentaram fingir que não havia buracos, e na verdade há milhares…

O senhor tem dito que seu projeto é complementar ao projeto de financiamento público. Como assim?
– É que como todo o genoma vai estar sendo seqüenciado ao mesmo tempo, qualquer dado gerado em outro centro poderá ser útil para nós. Nós não precisamos desses dados, não estamos confiando neles. Pensamos, aliás, que é um enorme desperdício de fundos públicos. Existem literalmente bilhões de dólares sendo gastos entre os Estados Unidos e a Inglaterra nos próximos anos, apenas para duplicar o que a Celera está fazendo e vai dar ao mundo de graça. Eu pretendo utilizar só a parte boa dos dados, há dados que não são efetivamente bons; pretendemos utilizar a parte boa para fazer nosso projeto ir ainda mais rápido. Assim, quanto mais eles fizerem, é como se fosse uma onda e um bote, eles nos empurram, mas não podem nos alcançar, apenas nos empurram mais depressa.

O seu movimento para a formação da Celera fez o governo dos EUA gastar ainda mais…
– Isso não foi o ideal, eles de fato aumentaram o dinheiro, mas às custas do programa de pesquisa em câncer. O orçamento de ciência na Grã-Bretanha de fato está sofrendo por causa do dinheiro gasto para duplicar a seqüência que nós vamos gerar e oferecer aos bancos públicos de dados. Penso que é mais uma questão do ego de algumas das agências financiadoras e do Wellcome Trust, eles querem investir seu dinheiro em alguma coisa que seja visível em vez de realmente financiar mais ciência.

Como vai a discussão sobre patentes?
– Meu entendimento é de que haverá patentes sobre alguns genes importantes, e para alguns genes é extremamente importante que a patente exista. Deixe-me lembrar o exemplo da insulina. Os diabéticos tiveram um problema no passado, porque a insulina foi isolada do pâncreas dos porcos. Depois, eles passaram a dar insulina de pâncreas de pombo, e eles desenvolveram anticorpos. A resistência ficou maior e as pessoas morriam muito cedo se tinham anticorpos para insulina, porque não havia outro tratamento. Então, quando pesquisadores conseguiram clonar o gene da insulina humana, eles tiveram a patente e puderam fazer uma célula produzir a insulina humana. Isso salvou milhares de vidas em todo o mundo. É um caso que mostra que, se não houvesse a patente, não haveria a droga. Dá-se o mesmo com outras drogas, como as que beneficiam os doentes dos rins que estão em diálise e submetidos a quimioterapia.

São drogas dirigidas, que vieram dos genes; se os genes não estivessem protegidos por patente, não haveria a droga. Quer dizer: se não há patentes, todos sofreremos porque não haverá drogas para tratar nossas doenças. Por outro lado, há aqueles que querem patentear tudo. Eles querem depositar dezenas, centenas de patentes onde não têm a menor pista de uma droga, e isso está errado. Assim, se você ler o nosso anúncio cuidadosamente, de 80 mil genes humanos (e nós teremos todos eles em nosso banco de dados), dizemos que talvez patenteemos de 100 a 3.000, se houver casos, como o da insulina, em que se veja com clareza uma droga capaz de tornar-se um medicamento de alto impacto. A Celera vai pedir menos patentes do que o NIH. Patentes não são uma peça-chave no plano de negócios da Celera. Poderíamos não patentear nada; mas há a responsabilidade social de patentear novos genes muito relevantes, que podem resultar em tratamento de câncer ou de outras doenças. Se não houver a patente, a droga não poderá ser desenvolvida e isto, do meu ponto de vista, é fundamentalmente imoral.

O Brasil tem, neste momento, diversos projetos genoma em curso. Que lugar pode caber a um país subdesenvolvido no contexto da genômica?
Penso ser crucial que eles tenham um programa de genômica, porque assim estarão na melhor posição para usar as seqüências geradas pela Celera e por outros, porque obter as seqüências é apenas o primeiro passo. Há quem pense que isto é o fim das coisas, o que os leva a gastar um monte de dinheiro do governo no que é apenas o começo para o entendimento da biologia humana e das doenças humanas. Por isso, o que de mais importante um país pode fazer é desenvolver sólidos programas científicos para tentar entender o câncer, para tentar entender as doenças que afetam sua população. Nós apoiamos com firmeza a expansão de projetos assim.

A midia fala sobre genômica e biologia molecular como uma espécie de caminho para a imortalidade. O que o senhor pensa sobre isto?
– Tenho certeza de que muitos cientistas vêem assim, por razões diversas. Sabemos muito pouco sobre a biologia humana e sobre o genoma humano, e estou absolutamente certo que as seqüências que vou gerar nos próximos 18 meses ainda estarão em estudo no final do século que vem. Novas descobertas serão feitas sobre a biologia humana. Em suma, penso que estamos bem no começo do caminho até a imortalidade, e não sabemos bem se isto será produtivo para o mundo. Se você puder melhorar a qualidade de vida em uma vida de duração normal, isso já será um objetivo muito valioso. Não estou certo se prolongar ou dobrar a duração da vida é a melhor coisa para este planeta.

O senhor acredita que a genômica poderá responder à pergunta: por que Brahms compunha tão bem? Ou decifrar o sofrimento humano?
– Vou fazer uma analogia. Nós estamos tentando caracterizar o genoma mínimo de uma pequena bactéria que a equipe da doutora Fraser seqüenciou, o Mycoplasma genitalium . Há somente 300 genes que são essenciais para a vida, de acordo com o que pensamos no momento; deles, 100 são completamente novos para a ciência, não sabemos o que eles fazem. O que quero destacar é que ainda não entendemos como 300 genes trabalham em uma única célula; se não entendemos ainda isto, como vamos entender 80 mil genes trabalhando juntos, em dez trilhões de diferentes células e em diferentes combinações, que é o que nos forma? Isto está muito além da compreensão científica para os próximos séculos. Nós vamos precisar de muita inovação tecnológica para chegar até lá.

Obviamente, há uma base genética para a personalidade, e há bases genéticas para a memória e para o pensar, mas ainda não temos como medí-los. Por que pais famosos nem sempre têm filhos famosos? A realidade da vida nos afeta a todos. Nós nunca poderemos predizer se alguém virá a ser um notório cientista, ou um bom compositor; isso está baseado também no ambiente onde vivemos ou crescemos e trabalhamos e todas as oportunidades que temos. Tome-se o caso dos gêmeos idênticos, com o mesmo código genético: algumas vezes, eles crescem com personalidades muito diferentes, vidas muito diferentes. Isso depende de quanto você enfatizar o que têm de diferenças entre si, e o que têm em comum.

Se você vê gêmeos vestidos iguais, tende a ver o que têm em comum; mas se eles crescem separadamente, vão construir vidas diversas entre si. O que o código genético nos dá são potenciais para a vida; não há determinismo genético que diga que você vai ser boa jornalista e eu, um bom cientista. No período de evolução, esses trabalhos sequer existiam, de forma que não há maneira de haver um componente genético para sua determinação. Poderá determinar uma certa quantidade de inteligência e uma habilidade para lidar com o ambiente, no máximo.

O entendimento da evolução também está fortemente relacionado à genômica, não?
– Você tem razão. Veja o exemplo do M. genitalium. Estamos eliminando genes entre os 300 de seu genoma para ver os que não são essenciais à vida, e entender qual é esse conjunto mínimo. Note-se que crescemos o organismo no laboratório, o que é muito diferente do que é necessário no ambiente. O próximo passo será tentar sintetizar o cromossomo com apenas esses genes mínimos. Decidimos parar aí, e começamos uma discussão ética com um grupo de líderes religiosos, cientistas e gente comum na Universidade da Pensilvânia, para ver se é apropriado ir em frente e sintetizar a vida. Por isso a TIGR parou, nós não continuaremos os experimentos enquanto a discussão estiver em curso. Vamos publicar um artigo para descrever o trabalho num futuro próximo; depois da discussão pública, decidiremos o que fazer.

O senhor acha que merece ganhar um Prêmio Nobel?
Tenho mais sobre o que pensar no momento. Estou saindo da TIGR para formar a Celera e seqüenciar o genoma humano. Decidi que prefiro passar à história como o seqüenciador do genoma humano do que ganhar o Prêmio Nobel. Validação pública é sempre bom; se acontecer, muito bem, mas não é meu objetivo na vida.

O senhor pensa que poderia ficar rico se a genômica não existisse?
Sou freqüentemente retratado como um milionário ocasional. Ficar rico não era meu objetivo. Não criei a TIGR ou a Celera com esse objetivo. Mas fica claro, com o caso da recusa do governo em financiar o H. influenzae , que é preciso ter recursos próprios. Esta é a primeira razão para se montar uma companhia de biotecnologia. Por ter parte de uma companhia, ganhei alguns milhões de dólares.

Agora, de novo, o governo diz que é impossível seqüenciar o genoma humano segundo minha proposta; e, felizmente, a Perkin Elmer está investindo centenas de milhões de dólares nisso, e tanto eu quanto a TIGR somos sócios da Celera. Você não precisa sofrer para ser cientista. O fato de trabalharmos às vezes 18 horas por dia mostra que somos dedicados ao que fazemos. Não há incompatibilidade entre a dedicação e ter dinheiro que me permita sair velejando e descansar minhas células cerebrais. É uma questão de motivação.

1 A sequência completa do genoma da Caenorhabditis elegans (com cerca de 100 “gaps”), a primeira de um animal, foi publicada em dezembro de 98 pela revista Science. Os dois principais pesquisadores envolvidos no trabalho são John Sulston, do Sanger Center, Inglaterra; e Robert Waterston, da Washington University, que gentilmente nos recebeu para uma entrevista, cuja integra será publicada no próximo Encarte.

2 os mesmos referidos por Leroy Hood.

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