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Medicina

Na origem do pensamento

Novo laboratório do HC vai realizar pesquisas nas áreas da neurociência básica e médico-psiquiátrica

Quem diz é o Global Burden of  Diseases, publicação oficial da Organização Mundial da Saúde (OMS): a segunda maior causa de incapacitações do mundo, depois dos problemas coronarianos, é uma doença psiquiátrica, a depressão. “As doenças psiquiátricas foram subestimadas no passado, pois sua participação nas estimativas totais de óbitos é relativamente pequena”, diz o professor titular e chefe do Departamento de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, o psiquiatra Wagner Gattaz. Ele mesmo sublinha: “Por exemplo, enquanto a depressão é responsável por apenas 1,4% dos óbitos, ela é responsável por 11% das incapacitações, o que demonstra como as doenças psiquiátricas representam um grave problema de saúde pública.”

Se o problema depender apenas de estudos e pesquisas, ele poderá ser menor nos próximos anos. E uma contribuição nacional nesse sentido é o mais novo centro de pesquisas biomédicas de ponta do País, o Laboratório de Investigações Médicas em Neurociências, recentemente instalado no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP, tendo o professor Gattaz como coordenador. “Trata-se do primeiro laboratório desse tipo no Brasil situado num instituto de psiquiatria e coordenado por psiquiatras”, diz, “com pesquisas que visam não só a neurociência básica, mas também a pesquisa médico-psiquiátrica.”

O laboratório nasceu já com um projeto temático, Metabolismo dos Fosfolípedes na Doença de Alzheimer e na Esquizofrenia , a ser executado nos próximos quatro anos. Em termos de verbas, o projeto temático foi complementado por dois projetos de infra-estrutura, um para adequar as instalações elétricas do local e outro para a montagem do próprio laboratório, num espaço de 300 metros quadrados e capacidade para o trabalho simultâneo de 25 pesquisadores. Foram aplicados, ao todo, R$ 2 milhões, dos quais R$ 1,7 milhão por parte da FAPESP. Três quartos da verba foram para a aquisição de equipamentos de análise de primeira linha. O setor de eletroencefalografia digital de alta resolução do laboratório, por exemplo, conta com os equipamentos mais avançados da América Latina.

Apesar de estar ligado na origem ao projeto temático, o laboratório está aberto aos pesquisadores de outras áreas do Instituto de Ciências Biológicas da USP e de outros grupos e universidades. “Queremos fazer do laboratório um dos centros de referência em neurociências do Brasil, mas nossa missão não é só realizar pesquisa”, afirma o professor Gattaz. “Procuramos também formar uma nova geração de pesquisadores, receber pós-graduandos e pós-doutorandos, fazer iniciação científica e despertar o interesse nas neurociências. Já estamos recebendo um número grande de currículos de brasileiros e estrangeiros interessados em trabalhar no laboratório.”

Fosfolípedes
Gattaz passou 18 anos na Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Em 1996, voltou ao Brasil, integrando-se à USP. Seu grupo de pesquisa na Alemanha foi o primeiro do mundo a relacionar o metabolismo dos fosfolípedes das membranas das células nervosas com o desencadeamento da esquizofrenia e da doença de Alzheimer (DA). Os fosfolípedes têm papel fundamental na atuação dessas células. “O metabolismo da membrana determina as propriedades físico-químicas dos neurônios, como, por exemplo, a transmissão de sinais, o número e a sensibilidade de neurorreceptores”, explica o pesquisador.

O projeto temático investigará os mecanismos que levam aos distúrbios do metabolismo de fosfolípedes nas duas doenças, suas repercussões no funcionamento do cérebro e as implicações clínicas. Além disso, verificará o grau de associação entre os metabolismos de fosfolípedes periférico e cerebral, buscando parâmetros que possam ser úteis como marcadores biológicos para subgrupos da esquizofrenia e doença de Alzheimer. O estudo será feito em quatro módulos inter-relacionados: bioquímica e espectroscopia, genética molecular, biologia molecular e eletrofisiologia.

As descobertas biológicas serão comparadas com parâmetros psicopatológicos, neuropsicológicos e evolutivos. “Uma vez de posse dos dados, a equipe desenvolverá modelos em animais de laboratório, para, primeiro, tentar replicar os transtornos biológicos e funcionais e, segundo, iniciar estratégias terapêuticas e preventivas. Obtida a replicação em animais, serão feitos estudos comportamentais”, explicou o coordenador.

Multidisciplinar
Para Gattaz, um dos problemas da pesquisa sobre o cérebro tem sido o fato de os investigadores pesquisarem quase sempre apenas o que é possível em seus laboratórios, dentro de sua especialidade. “Isso é como procurar uma agulha num palheiro, uma espécie de loteria científica”, afirma. Por que o distúrbio que causa determinada doença neuro-psiquiátrica estaria localizado exatamente na substância ou no gene que um pesquisador pode investigar no seu laboratório? Gattaz acha que os progressos nas neurociências se deram geralmente graças a pesquisas multidisciplinares: “Uma alteração no metabolismo provavelmente terá correlatos genéticos, anatômicos e funcionais”, opina. “Nesse laboratório, o que estamos fazendo é integrando diferentes áreas de pesquisa, que são complementares”, acrescenta.

O projeto temático foi elaborado com a colaboração de três outros pesquisadores: Homero Vallada, responsável por genética molecular, Orestes Forlenza, especialista em biologia molecular, e Luís Basile, responsável pelo módulo de psicofisiologia. Encaminhado à FAPESP em novembro de 1997, o projeto foi aprovado em maio de 1998. A compra da aparelhagem de eletroencefalografia digital estava incluída no projeto original. Porém um pesquisador, Cláudio Guimarães dos Santos, tinha recebido uma aparelhagem semelhante, sem ter ainda um centro ao qual se filiar. Santos foi convidado a integrar a equipe do Laboratório de Neurociências e aceitou.

A espectroscopia por ressonância magnética com fósforo-31 será feita em colaboração com o Departamento de Radiologia e Ressonância Magnética do Incor de São Paulo, sob a coordenação de Giovanni Guido Cerri e Cláudio Campi. “A espectroscopia permite avaliar o metabolismo cerebral in vivo , sendo, portanto, um método imprescindível para a pesquisa neuropsiquiátrica”, diz Gattaz. A aquisição de equipamento de ressonância magnética próprio para o Instituto de Psiquiatria é um objetivo para os próximos anos.

Diagnóstico precoce
Os cientistas acham que, depois de as hipóteses estudadas no projeto serem confirmadas e replicadas em outros laboratórios, haverá chances de um diagnóstico neuroquímico mais acurado e rápido. O interesse básico da equipe, porém, vai mais adiante: é tornar possível, no futuro, o diagnóstico precoce da doença, se possível antes da manifestação dos sintomas. Para o professor Gattaz, essa será uma característica da medicina no próximo século. “O diagnóstico precoce abrirá caminhos visando ao desenvolvimento de estratégias para prevenir a manifestação da doença”, diz.

Para tornar possível o diagnóstico precoce, porém, é necessário compreender os mecanismos básicos que levam ao quadro clínico. “Diagnosticamos com base nos sintomas psíquicos, mas sobre a causa dos sintomas sabemos muito pouco”, diz o coordenador. “No momento em que soubermos qual mecanismo, qual processo biológico causou o sintoma, então a nova fase da pesquisa se concentrará na normalização desses processos biológicos, para que não provoquem mais os sintomas, e a doença seja evitada.”

Um papel especial na pesquisa está reservado à doença de Alzheimer. A importância desse problema está aumentando, pois é uma doença que aparece principalmente entre os idosos e, com o crescimento da idade média da população, o número de pacientes é cada vez maior. Não é um problema desprezível. Há dois anos, em artigo publicado no New England Journal of  Medicine , um grupo de pesquisadores informou que um tratamento com vitamina E, neutralizando os radicais livres, é capaz de retardar em cinco anos a progressão da doença de Alzheimer. Na época, calculou-se que só isso economizaria US$ 50 bilhões – mais do que as reservas monetárias brasileiras – apenas para o sistema de saúde dos Estados Unidos. Se ainda faltam argumentos para apoiar a pesquisa sobre os problemas neurológicos, aí está mais um.

Estado da arte
O Setor de Eletroencefalografia Digital de Alta Resolução do Laboratório de Investigações Médicas em Neurociências tem equipamentos tão sofisticados que conseguem determinar, praticamente em tempo real e com localização precisa, o comportamento eletrofisiológico do cérebro durante atividades como a leitura, ouvir uma música, resolver um problema de matemática, ver um filme ou tomar uma decisão.

Nenhum outro lugar da América Latina tem esses equipamentos. No mundo todo, são pouco mais de uma dezena os laboratórios que usam essa tecnologia. Conhecidos em conjunto pelo nome do fabricante, a Neuroscan Inc., os equipamentos foram adquiridos para o setor, coordenado pelos pesquisadores Cláudio Guimarães dos Santos e Luís Basile, com recursos investidos pela FAPESP.

O ESI-128-System é um dos componentes do grupo. Trata-se de um sistema de amplificadores para 128 canais de eletroencefalografia, com o qual é possível registrar, em milésimos de segundo, as atividades do cérebro durante a realização de tarefas relacionadas com a memória, linguagem, atenção, raciocínio e outras funções mentais, a partir de potenciais elétricos colocados na superfície da cabeça. Ele é apoiado pelo Polhemus, um dispositivo que controla com precisão as posições espaciais dos 128 eletrodos distribuídos pelo couro cabeludo.

Ainda faz parte do conjunto o STIM-System, sistema interativo que permite a estimulação sensorial (visual e/ou auditiva) da pessoa examinada e registra suas respostas motoras. O Curry é um software que reconstrói as correntes intracranianas, responsáveis pelos potenciais elétricos medidos através do couro cabeludo, e integra essas informações com dados anatômicos obtidos de imagens de ressonância magnética do cérebro.

Cinco pesquisas já estão confirmadas para os próximos quatro anos: estudo da coordenação de atividade do córtex pré-frontal (e do lobo temporal) em indivíduos saudáveis e em pacientes esquizofrênicos ou portadores da doença de Alzheimer; mecanismos neurobiológicos subjacentes ao processamento de inferências dedutivas e indutivas em crianças (normais ou portadoras de transtornos de atenção ou aprendizagem) e adultos (normais, portadores de lesões focais uni-hemisféricas e dementes do tipo Alzheimer); mecanismos neurobiológicos ligados à função do canto na espécie humana; processos de reorganização funcional relacionados com a recuperação de lesões cerebrais; e testes de modelos farmacológicos da fisiopatologia de doenças neuropsiquiátricas.

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