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Medicamento

Remédio brasileiro

Pesquisador da USP desenvolve um novo antiinflamatório

Dentro de quatro anos, as prateleiras das farmácias brasileiras vão estar recebendo um novo medicamento, sintetizado e patenteado exclusivamente no Brasil. Será um antiinflamatório com a molécula de seu princípio ativo desenvolvida pelo professor Gilberto De Nucci, titular do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP). O desenvolvimento do medicamento está sendo possibilitado pelo Programa de Inovação Tecnológica em Parceria da FAPESP, que prevê a parceria tecnológica e financeira entre pesquisadores de uma instituição científica e a iniciativa privada.

Neste caso, o parceiro é o Aché Laboratórios Farmacêuticos, de capital nacional e situado em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. O estudo chamado Avaliação de Moléculas com Potencial Antiinflamatório in vitro e in vivo está em fase de escolha de duas das 20 moléculas sintetizadas em laboratório com substâncias químicas análogas, para possibilitar o início da reação da droga no organismo humano, o que deve ocorrer no próximo ano.

O princípio ativo do novo antiinflamatório não pode ter sua composição e nem nome divulgado porque ainda está fase de patenteamento. Gilberto De Nucci adianta que esse novo fármaco tem ação química semelhante a outros existentes no mercado. “Ele inibe a enzima ciclooxigenase presente em todos os tipos de inflamação”, afirma. Essa enzima existente na corrente sangüínea transforma o ácido araquidônico – liberado pelo organismo no processo de proteção contra uma agressão – em prostaglandina, uma substância que provoca a inflamação, resultando num quadro de dor, calor, tumor e rubor.

“As novas moléculas candidatas a se tornar uma nova droga são derivadas de um núcleo químico conhecido e confiável como antiinflamatório”, explica Victor Siaulys, sócio e presidente do Aché Laboratórios. “O que foi realizado é uma alteração estrutural na molécula antiga, transformando-a em outra substância.” Isso vai possibilitar que o produto esteja pronto e testado em menor tempo do que se gasta normalmente, de dez anos, para a elaboração de um novo medicamento.

Avaliações
As novas drogas exigem exaustivos testes até chegar aos consumidores. A confirmação da principal atividade exigida por esse tipo de antiinflamatório – a ação inibidora da ciclooxigenase – foi obtida em laboratório com o contato da enzima com as moléculas sintetizadas por De Nucci. A avaliação in vitro também contou com testes positivos em plaquetas do sangue humano, que são os segmentos responsáveis para estancar uma hemorragia, verificando-se, assim, a compatibilidade das moléculas com esse mecanismo de proteção do corpo humano. Os experimento sin vivo foram realizados em modelos clássicos para esse tipo de avaliação, como artrites e edemas na pata de ratos. Os resultados mostraram-se favoráveis em todas os testes, principalmente pelo fato de as moléculas não induzirem a irritações gástricas nos animais, um efeito colateral comum entre outros tipos de antiinflamatórios.

A diminuição de efeitos colaterais pode ser uma das vantagens de se criar outro antiinflamatório, mesmo com a grande variedade desse tipo de medicamento existente no mercado. “Com uma nova molécula (chamada tecnicamente de nova entidade química) existe a possibilidade de a performance ser melhor que as já existentes, com menor número de efeitos colaterais”, explica De Nucci. “Outro aspecto é o do marketing dos laboratórios. Todos querem ter seu antiinflamatório.”

Nesse ponto, a formulação de novos medicamentos no país ganhou uma nova importância. Pela atual lei das patentes, aprovada há dois anos pelo Congresso Nacional, os laboratórios brasileiros não podem mais reproduzir fármacos patenteados no exterior como faziam até recentemente. “Antes, não havia o interesse da indústria farmacêutica nacional em desenvolver medicamentos aqui. Eles vinham prontos do exterior ou tinham suas fórmulas copiadas”, afirma De Nucci.

Para os consumidores de medicamentos, a importância do lançamento de novos fármacos de um mesmo segmento, como os antiinflamatórios, favorece a concorrência entre laboratórios, aumenta a oferta do produto e faz baixar os preços. Quando se tem apenas um tipo de medicamento para um determinado tratamento o preço é muito alto, como ocorre atualmente com o Viagra, na disfunção erétil, ou o Xenical, que impede a absorção de gordura. “Com mais opções, os preços baixam”, explica De Nucci.

Os investimentos para essa primeira etapa do desenvolvimento do novo medicamento são da ordem de US$ 400 mil. O Aché Laboratórios contribui com US$ 120 mil, ou 30% do total dos gastos. Os restantes US$ 280 mil foram financiados pela FAPESP. Quando o medicamento estiver à venda para a população, 5% dosroyalties serão da USP. O projeto de parceria tecnológica dura um ano e foi iniciado em dezembro do ano passado, podendo ser renovado no próximo ano.

A nova molécula
O nascimento da idéia de concepção da nova molécula foi levado à frente há um ano pelo professor De Nucci. “Quando suspeitei que certa configuração atômica presente em uma molécula tinha potencial antiinflamatório, eu contatei um laboratório, que não se interessou no investimento, e depois procurei o Aché, onde seus diretores aceitaram desenvolver a nova molécula. Aí, fomos juntos à FAPESP viabilizar o projeto.”

Embora pareça um feito extraordinário o registro de uma nova patente de medicamento, De Nucci desmistifica esse pensamento e afirma que todos os dias, no mundo, são patenteadas novas moléculas com objetivo terapêutico, mesmo que não resultem na imediata formulação de medicamentos. “No Brasil, não se está acostumado com esse tipo de trabalho.” Ele próprio já tem dez patentes de moléculas com potencial farmacológico registradas fora do País. “Sempre pensei em desenhar moléculas e, durante o meu doutorado na Inglaterra, trabalhei nessa área em grandes laboratórios como o Wellcome e o Glaxo”, explica De Nucci. Seu trabalho científico no exterior teve como co-autores os professores John Vane e Ferid Murad, ganhadores dos prêmios Nobel de Medicina, respectivamente, em 1982 e 1998.

Atualmente, o professor De Nucci trabalha também no patenteamento de uma outra molécula que poderá resultar num medicamento para a área cardiológica, que está em desenvolvimento no Departamento de Biofísica da Universidade Federal de São Paulo (ex-Escola Paulista de Medicina) sob os cuidados do professor Luiz Juliano.

A contribuição inicial e mais importante nesse tipo de trabalho é o desenho da estrutura atômica da molécula. “No caso da molécula do antiinflamatório, eu tinha a estrutura na cabeça, mas era preciso sintetizá-la em laboratório apropriado”, conta De Nucci. Nem a USP nem o Aché possuem um laboratório para esse fim. Para realizar esse trabalho de síntese, o professor De Nucci pediu ajuda a dois colegas químicos da Universidade de Nápoles, na Itália, onde ele é professor visitante. Giusepe Caliendo e Vicenzo Santagada realizaram a síntese das moléculas conforme o desenho de seu idealizador e ajudaram na caracterização da molécula nos laboratórios do ICB.

“Caracterização é verificar, depois de concluída a molécula, se ela está corretamente estruturada. É como um bolo de chocolate em que iniciamos com uma receita, depois misturamos os ingredientes e colocamos para cozinhar. A caracterização acontece após o momento em que retiramos o bolo da fôrma, quando é preciso verificar se está bem assado e, finalmente, se está gostoso”, compara. Nessa verificação, a molécula passou por testes de espectrometria de massa, realizado na USP, para a verificação da correta posição de cada átomo.

Testes em humanos
Depois de completada a avaliação em modelos de inflamação em animais, o teste em humanos, chamado inicialmente de fase 1, vai se iniciar com 20 a 30 voluntários sadios. São pessoas remuneradas, que se submeterão à ingestão do novo medicamento para os estudos de efeitos toxicológico, para análise da toxicidade, e farmacocinético, quando se verifica por quanto tempo e qual a quantidade do medicamento que fica na circulação sangüínea. O professor De Nucci acredita que no ano de 2001 devem ser iniciados os testes com doentes.

Aí, serão 50 pessoas, na fase 2, e de 500 a 5 mil pessoas, na fase 3, com a previsão de dois anos para o término desses testes. Depois disso, o medicamento é aprovado e entra em produção. Se a boa perspectiva de sucesso desse antiinflamatório se confirmar, certamente abrirá campo para a confecção de novos medicamentos para servir como novas opções terapêuticas, possivelmente mais baratas e eficazes, para a população do País.

Confiança Mútua

A parceria entre a Universidade de São Paulo (USP) e o Aché Laboratórios Farmacêuticos é mais um exemplo da importância da cooperação entre a iniciativa privada e o meio acadêmico. “Com esse projeto foi quebrada uma resistência histórica entre cientistas e empresários”, acredita o advogado Victor Siaulys, presidente e um dos três sócios da empresa. “Nossa relação de desconfiança mútua começa a mudar”, afirma. Para ele, a universidade, cada vez mais, tem a necessidade de apresentar resultados práticos que atendam o dia-a-dia das pessoas. “Por outro lado, a indústria farmacêutica nacional, que representa apenas 20% do total de empresas desse setor instaladas no país, está sedenta de produtos novos.”

Com a proibição da reprodução de fórmulas patenteadas no exterior, o futuro para as empresas nacionais está em desenvolver produtos no Brasil. “Esse é um dos caminhos alternativos para nossa sobrevivência. O outro é se associar a uma multinacional, obtendo uma licença de uso, que nos deixaria à mercê da vontade e do direcionamento dos preços dela”, analisa Siaulys. Ele acredita que está chegando o momento de o Brasil ser a bola da vez no desenvolvimento de novos medicamentos. “Nós somos o 8º mercado farmacêutico do mundo em faturamento, com US$ 10 bilhões anuais. Estamos atrás dos Estados Unidos, países da Europa e Japão. Todos esses países desenvolvem medicamentos”, informa. “Por isso, no Aché, estamos investindo há alguns anos em vários campos de estudo em fitoterápicos e agora estamos envolvidos na elaboração desse fármaco sintético idealizado pelo professor De Nucci.”

A importância de um novo antiinflamatório está nos números de mercado apresentados pelo presidente do Aché. “Os dois medicamentos mais vendidos no Brasil são antiinflamatórios, com o Voltarem em primeiro lugar. No Aché, nós temos dois desses fármacos que têm fórmulas reproduzidas do exterior. O Tandrilax é o mais vendido, com 300 mil unidades por mês ou 15 mil por dia.” Ele acredita que o potencial do mercado brasileiro ainda é baixo. “Apenas 40 milhões de pessoas têm condições financeiras de comprar remédio no País. Com drogas de bom efeito terapêutico, seguras e, principalmente, com preços baixos poderemos atingir o potencial da população brasileira de 160 milhões. Para isso, irá contribuir muito o estabelecimento de mecanismos de extrema confiança entre as empresas e as universidades.”

Perfil
O professor Gilberto De Nucci tem 41 anos. Graduou-se em medicina na especialidade de farmacologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP. Fez doutorado em farmacologia na Universidade de Londres, na Inglaterra. Atualmente, é professor titular do departamento de farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e professor adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

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