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Física

A nova força dos neutrinos

Físicos brasileiros mostram que essas partículas poderiam interagir com a Terra mais do que se pensava

Os experimentos às vezes são cruéis com os cientistas. Principalmente quando os resultados colhidos não conferem com os previstos e não há teorias prontas que os expliquem. É o que está ocorrendo no estudo dos neutrinos, partículas elementares da matéria que viajam quase à velocidade da luz e se formam em abundância no Sol, nas usinas nucleares ou pela fragmentação dos raios cósmicos na alta atmosfera terrestre. Em junho do ano passado, os pesquisadores que trabalham no SuperKamiokande, o maior detector de neutrinos do mundo, em operação há três anos no Japão, verificaram que um dos tipos de neutrinos chegava em quantidade inferior à esperada, sobretudo depois de atravessar o interior da Terra. O fato de desaparecerem foi visto como uma evidência de que essas partículas efetivamente têm massa, como há décadas os físicos procuram demonstrar.

Mas pode não ser assim. Há outra forma de explicar o desaparecimento dessas partículas que não precisa necessariamente ter massa, de acordo com a interpretação dos físicos do Grupo de Estudos de Física e Astrofísica de Neutrinos (Gefan), formado há dois anos por pesquisadores das três universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp e Unesp). Para eles, os neutrinos de um tipo, os muônicos, que chegam em quantidade inferior à prevista, estariam interagindo com a matéria das camadas internas da Terra e se transformando em neutrinos de outro tipo, os tauônicos, que não podem ser percebidos pelos equipamentos atuais.

Repensando o Universo
Em colaboração com pesquisadores das universidades de Wisconsin, nos Estados Unidos, e de Valencia, na Espanha, os físicos brasileiros trabalham desde julho do ano passado nessa proposta, que muda o foco do problema. Em vez de proporem mudanças no neutrino, aceitando que podem ter massa, repensam a forma como essas partículas se relacionam com a matéria que atravessam. As conclusões a que chegaram – publicadas em abril na Physical Review Letters e debatidas em uma das apresentações do Topics in Astroparticle and Underground Physics, uma conferência realizada em Paris no início de setembro – não se limitam a explicar os resultados verificados no Japão.

A hipótese do Gefan implica uma reavaliação de um dos tipos de forças fundamentais da matéria, também chamadas interações. Pode ganhar novas dimensões, especificamente, a interação fraca, que atua de modo discreto no entrosamento entre as mais minúsculas das partículas atômicas e na fragmentação de elementos químicos radioativos. Sem carga elétrica e infinitamente pequenos, os neutrinos estão sujeitos apenas a essa força. Vivem indiferentes à força nuclear de interação forte, que atua entre partículas maiores, à força eletromagnética, decisiva entre partículas eletricamente carregadas, e à gravidade, praticamente inexpressiva no universo das partículas, de massa extremamente pequena.

Até agora se pensava que os neutrinos atravessavam a matéria sem qualquer dificuldade, como resultado do modelo atual da interação fraca. O grupo de físicos está demonstrando que eles podem, sim, modificar-se levemente ao longo dessas travessias, ao contrário do que supõe a Física atual. O estudo dos neutrinos integra um projeto temático financiado pela FAPESP, Fenomenologia das Partículas Elementares, que começou no ano passado e segue até 2002.

Com um orçamento de R$ 224 mil, mobiliza dez físicos que, em cinco projetos, estudam o comportamento das partículas elementares. “Procuramos antecipar e reinterpretar os resultados dos trabalhos práticos”, diz o físico Gil da Costa Marques, coordenador do projeto. Trata-se de uma área bastante dinâmica, marcada pela descoberta de cerca de 60 partículas em menos de um século e por constantes revisões teóricas. A Física de Partículas está também associada à história do Prêmio Nobel.

O interesse pelos neutrinos se explica também porque se trata de uma das mais fascinantes e desconhecidas partículas atômicas. Chegam de todas as direções a todo momento e atravessam o Sol ou a Terra. “A matéria usual é transparente aos neutrinos”, comenta o físico Marcelo Moraes Guzzo, professor da Unicamp que divide a coordenação do Gefan com Renata Zukanovich Funchal, da USP, e Vicente Pleitez, da Unesp. As experiências indicam que os neutrinos, vistos por outras partículas, ocupam uma área cerca de 100 milhões de vezes menor que a do elétron.

O problema é saber se são apenas energia ou têm massa. Trata-se de uma questão fundamental da astrofísica e da cosmologia, que poderia determinar se o Universo continuaria em expansão indefinida, como hoje se acredita, ou se a partir de um momento poderia começar a se encolher. “Se os neutrinos tiverem mesmo massa, ainda que muito pequena, mudaria a massa total e a compreensão do Universo, porque são abundantes”, diz o professor Pleitez, da Unesp. Os neutrinos são quase tão abundantes quanto os fótons, as partículas de luz, que conduzem a força eletromagnética – e, estas sim, destituídas de massa.

Calcula-se que há 10 bilhões de neutrinos para cada próton, um dos elementos do núcleo atômico. Espalham-se dos confins do Universo ao interior do corpo humano, que produz 20 milhões de neutrinos por hora, como resultado das reações com um dos tipos de potássio que compõem o organismo. A cada segundo, o corpo humano é atravessado por 100 bilhões de neutrinos originados nas usinas nucleares e mais 50 trilhões vindos do Sol e da fragmentação dos raios cósmicos, inclusive à noite, já que eles atravessam a Terra e chegam de todo lado, a todo momento. “Se enxergássemos os neutrinos, estaríamos radiantes”, diz Renata Funchal. Mesmo assim, é dificílimo caçar neutrinos.

São quase indetectáveis porque não têm carga elétrica e reagem tão raramente com outras partículas que escapam até mesmo ao gigantesco detector de neutrinos construído em Kamioka, a 250 quilômetros de Tóquio, a um custo aproximado de US$ 100 milhões. O SuperKamiokande consiste de um tanque cilíndrico de cerca de 40 metros de lado por 40 de altura com água ultrapura, a um quilômetro abaixo da superfície, que filtra partículas indesejadas. É tão grande porque apenas um em cada um bilhão de trilhões (o número um seguido de 21 zeros) de neutrinos que por ali passam reage com a água. Quando isso acontece, emitem um tipo de luz especial, que é registrada por cerca de 12 mil fotocélulas instaladas nas paredes laterais do tanque.

No SuperKamiokande, comportaram-se conforme o previsto apenas um dos três tipos de neutrinos, os eletrônicos, os mais comuns, que surgem quando os raios cósmicos colidem com os prótons e nêutrons dos gases da alta atmosfera. Chegaram todos. Os que costumam desaparecer – ou oscilar, na linguagem dos físicos – são os neutrinos muônicos, produzidos também quando os raios cósmicos se desfazem. O terceiro tipo de neutrinos, os tauônicos, resultantes do decaimento (desintegração) de partículas atômicas, é bastante raro e ainda não pode ser detectado por nenhum equipamento.

Para explicar os resultados dos experimentos, os físicos do SuperKamiokande cogitaram que os neutrinos de um tipo poderiam se transformar em outro. Mesmo assim, essa hipótese mostrou-se incompleta para os integrantes do Gefan. Por que as partículas desaparecem ao passar pelas camadas mais densas da Terra e nada acontece quando atravessam apenas a atmosfera? Dos neutrinos que passam pelo núcleo terrestre, chega só a metade, enquanto dos que percorrem apenas a atmosfera não se perde nenhum. Tais constatações levaram a pensar que esse comportamento estaria associado ao ângulo (ou direção) do neutrino em relação ao detector, à distância e à densidade do material que atravessam.

Os físicos do Gefan estão supondo que os neutrinos podem interagir com a matéria de modo mais intenso do que se imaginava até agora. Ao encontrarem os nêutrons e prótons que formam quase a totalidade da matéria comum, os neutrinos reagiriam e sofreriam pequeníssimas modificações. Mudariam apenas o chamado sabor, uma das características das partículas atômicas, tal qual a carga elétrica. “Quanto maior a densidade da matéria que atravessa, há mais nêutrons e prótons por volume, e será maior a chance de interação com os neutrinos”, diz Guzzo.

Essa força, chamada Flavor Changing (troca de sabor) ou interações exóticas que trocam sabor, não afetaria em nada a matéria atravessada pelos neutrinos, porque a diferença entre massas é imensa: um próton já é 100 milhões de vezes maior do que um neutrino. Caso encontrasse um núcleo, formado por dezenas ou às vezes centenas de prótons combinados com nêutrons, a proporção seria ainda mais astronômica. “Seria como um minúscula bola de borracha, menor do que a unha de um polegar, batendo em um trem com centenas de vagões”, compara o professor.

Analogia como Sol
Na reunião de julho do ano passado, foi Guzzo quem lançou a idéia de que os neutrinos poderiam se comportar na Terra como no Sol. Conforme ele estudou no doutoramento, parte dos neutrinos eletrônicos que se formam no núcleo desaparecem ao reagir com os prótons e os nêutrons da coroa solar. Outro sumiço ocorre a caminho da Terra, onde chegam apenas cerca de 35% dos neutrinos eletrônicos produzidos no Sol que deveriam chegar.

A tese do Gefan, associando o desaparecimento dos neutrinos também à distância percorrida, ajuda a entender esse outro fenômeno mal compreendido pelos físicos. Só apresenta um inconveniente: não está prevista no chamado Modelo Padrão, o modelo teórico que descreve as partículas elementares e as formas como elas interagem. Foi prevista apenas teoricamente, em 1978, pelo físico norte-americano Lincoln Wolfenstein.”Se a força exótica for comprovada, teremos de repensar o Modelo Padrão, que não explica os resultados verificados no SuperKamiokande“, diz ele.

O que se sabe até o momento, de acordo com o Modelo Padrão, é que a força de interação nuclear fraca, a única à qual os neutrinos estão sujeitos, pode atrasar a propagação ou mudar a direção dessas partículas. Só é relevante quando não está presente a interação forte, que aproxima prótons e nêutrons e as partículas que os constituem, no núcleo do átomo. Seu efeito torna-se irrelevante diante da eletromagnética, de alcance infinito, que junta os átomos em moléculas e cola a matéria que conhecemos.

A força que permitiria aos neutrinos entrosar-se mais intensamente com a matéria, como está sendo proposto pelo Gefan, seria um tipo de interação fraca, embora capaz de mudar a identidade dos neutrinos. “Trata-se de uma mudança na essência, não no nome, porque continua fraca”, explica Guzzo. Os físicos imaginam que a habilidade de atravessar a matéria sem limitações de distância pode ter aplicações práticas. Seria possível, por exemplo, simplificar a busca de reservas de petróleo. Os neutrinos poderiam trazer informações sobre os materiais de modo mais preciso e profundo do que os raios-X, seus similares mais próximos, de alcance restrito a poucos metros.

Nos próximos meses, os físicos pretendem aproveitar os resultados de outras experiências, realizadas nos detectores dos Estados Unidos, França, Itália e Suíça, onde também se observou o desaparecimento de neutrinos, para verificar até que ponto resiste a hipótese que criaram, tratada agora como um carro aprovado na prancheta e em trajetos curtos que merecesse testes mais amplos.

As partículas e os Nobel
A todo momento, quando os raios cósmicos se desfazem ao se chocarem com as partículas da alta atmosfera, a 20 km da superfície, forma-se o chamado chuveiro de partículas, com variados tipos de fragmentos do átomo. Além dos neutrinos, surgem outras partículas, que também podem se desfazer em neutrinos, os píons, descobertos em 1947 pelo físico curitibano César Lattes (1924-), em colaboração com Giuseppe Occhialini (1907-1993) e o inglês Cecil Powell (1903-1969).

O píon – visto como uma das partículas responsáveis pelo comportamento das forças fundamentais da matéria, cuja existência Lattes comprovou em experiências realizadas a 2.800 metros de altitude, na Bolívia – havia sido proposto teoricamente em 1935 pelo japonês Hideki Yukawa (1907-1981), que ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1949 por esse trabalho.

Os brasileiros, os neutrinos e os Nobel vão se entrelaçar novamente nos anos 70, com outro pioneiro da física teórica e da astrofísica moderna no Brasil, o recifense Mário Schenberg (1916-1990), professor da Universidade de São Paulo que também estudou essas partículas. Schenberg trabalhou com o primeiro cientista que concebeu a existência dos neutrinos, o físico suíço nascido na Áustria Wolfgang Pauli (1900-1958), em Zurique, na Suíça, e em Princeton, nos Estados Unidos.

Foi Pauli quem propôs, em 1931, numa carta endereçada aos físicos em um congresso na Europa, ao qual não pôde comparecer, a existência de uma partícula sem carga elétrica e sem massa, que resolveria uma aparente sobra de energia em reações com elementos radioativos. Por esse feito, Pauli ganhou o prêmio Nobel de Física de 1945.

Um ano depois, o físico italiano Enrico Fermi (1901-1954), com quem Schenberg também trabalhou, em Roma, incorporou essa partícula, que ele chamou de neutrino (em italiano, minúsculo neutro), na teoria de partículas que ele desenvolvia. Fermi, que ganhou o Nobel em 1938 por suas pesquisas em energia nuclear, participou nos Estados Unidos da construção da primeira bomba atômica, em 1945. A primeira observação dos neutrinos coube ao norte-americano Frederic Reines (1918-1998), Prêmio Nobel de 1995.

O estudo das forças fundamentais também tem sido reconhecido com o prêmio Nobel. O físico norte-americano Steven Weinberg (1933-), que em 1967 desenvolveu a teoria da força nuclear fraca, dividiu em 1979 o prêmio Nobel de Física com o norte-americano Sheldon Glashow (1932- ) e o paquistanês Abdus Salam (1926 – 1996), que chegaram ao mesmo resultado de forma independente.

Perfis
– Gil da Costa Marques, 53 anos, graduou-se em Física na Faculdade de Filosofia, Ciên-cias e Letras da Universidade de São Paulo (USP). Fez o mestrado e o doutorado no Instituto de Física da USP, do qual foi diretor entre 1994 e 1998.
– Marcelo Moraes Guzzo, 35 anos, graduou-se no Instituto de Física da USP, fez o mestrado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o doutorado na International School for Advanced Studies, na Itália.
– Renata Zukanovich Funchal, 35 anos, cursou Física na USP, fez o mestrado na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e o doutorado na Universidade de Orsay, na França.
– Vicente Pleitez, 49 anos, graduado em Química na Universidade de El Salvador, fez o mestrado e o doutorado em Física na Unesp.
Projeto
um dos cinco estudos do temático Fenomenologia das Partículas Elementares.
Investimento total
R$ 224 mil no temático.

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