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Botânica

Ambiente único

Pesquisa leva a importantes descobertas sobre a adaptação de plantas da Serra do Cipó, em Minas Gerais

Quando conheceu os campos rupestres da Serra do Cipó, em Minas Gerais, na década de 1960, a bióloga com especialização em botânica Nanuza Luiza de Menezes estranhou a paisagem. “Parecia um vale de dinossauros”, conta. Suas primeiras viagens foram recompensadas com a descoberta de muitas espécies novas, como uma da canela-de-ema, a Vellozia gigantea, que chega a seis metros de altura. Foi o início de um longo trabalho. Em 30 anos de estudos, o grupo do qual faz parte Nanuza identificou cerca de 1.550 espécies de plantas crescendo numa área de 150 quilômetros quadrados de solo pedregoso da Serra do Cipó, escolhida para o levantamento florístico. É uma enorme riqueza. Em toda a Inglaterra, com todos os seus tipos de terreno, há apenas 1.600 espécies de plantas nativas.

“É uma vegetação muito especial”, conta a professora Nanuza. “As plantas crescem diretamente em solos pedregosos ou arenosos, nos quais a água escoa rapidamente e não há lençol freático”, prossegue. “As plantas estão adaptadas para conservar a quantidade mínima de água disponível, pois ocorrem períodos de até quatro meses sem que caia uma gota de chuva”, diz. Nesses períodos, em geral, só a neblina noturna traz umidade. A Serra do Cipó é parte da cadeia do Espinhaço e fica a cerca de 110 quilômetros a noroeste de Belo Horizonte. A altitude quase sempre varia entre 1.000 e 1.400 metros, mas há pontos em que chega a 1.800 metros. A Serra tem vários tipos de ecossistemas, mas a vegetação típica, predominante, é o campo rupestre com suas plantas adaptadas a viver em solo pedregoso ou arenoso.

São essas plantas o centro do projeto temático Estudo das Adaptações dos Órgãos Vegetativos e Reprodutivos ao Ambiente Rupestre, que Nanuza, professora do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), está coordenando. Ela também é responsável por oito dos subprojetos do trabalho. Outras duas professoras do Departamento de Botânica dividem mais seis subprojetos, Verônica Angyalossy Alfonso, com quatro, e Jane Elizabeth Kraus, com dois. As pesquisas envolvem ainda 11 estudantes de pós-graduação e seis alunos de iniciação científica. Iniciado em 1º de dezembro de 1997, com um financiamento de R$ 165 mil da FAPESP, o projeto tem término previsto para novembro.

Soluções diferenciadas
A imensa diversidade biológica significa também uma enorme variedade de soluções para o problema da escassez de água. Cada família tem características próprias que lhes permite sobreviver em condições adversas. Basicamente, há as que escapam da seca e as que toleram a seca. As que escapam da seca têm ciclo de vida extremamente rápido. Brotam na época das chuvas, crescem, se reproduzem, deixando as sementes no solo para a próxima estação e morrendo antes que a seca chegue outra vez. As que toleram a seca também podem ser divididas em dois grupos: as que se mantêm sempre verdes, conseguindo umidade de diversas maneiras, e as que murcham e se ressecam, mas revivem e se desenvolvem quando volta a chover.

A família das veloziáceas, à qual pertence a canela-de-ema, é um exemplo de adaptação. As plantas desse grupo se conservam sempre verdes porque aproveitam a umidade da neblina que cobre trechos da Serra à noite. Essa umidade é absorvida por raízes que correm ao longo do caule, por baixo das bainhas de folhas velhas. Quando as folhas murcham e caem, as bainhas ficam em torno do caule, protegendo as raízes adventícias. Essas raízes estão cobertas por um tecido de revestimento, composto de diversas camadas, chamado velame, encontrado também em orquídeas. O velame acumula a água da neblina e essa umidade é transportada para o interior da planta.

Não é só. As plantas da família das veloziáceas têm um sistema muito eficiente para perder o mínimo de umidade. Seus estômatos, as estruturas presentes nas folhas por onde se processa a entrada e a saída de água da planta, ficam em fendas existentes nas folhas. Quando o tempo está excessivamente seco, essas fendas se fecham e a umidade liberada pelos estômatos não chega a sair da planta. Forma-se um sistema fechado, conservando a água que já está na planta.

Há outros exemplos. As plantas da família das melastomatáceas, na qual se incluem as quaresmeiras, se caracterizam pela presença de muitos pêlos, chamados tricomas, na sua superfície. Um aluno da professora Nanuza, em sua tese de doutorado, descobriu evidências de que a água penetra no interior da planta através dos tricomas. Esses pêlos aparecem também nas folhas e caules de plantas de outras famílias, especialmente nas folhas jovens. Em alguns casos, os pêlos também protegem a planta do inverno rigoroso da Serra. No período frio, a planta se mostra como um chumaço de algodão. Conforme a primavera se aproxima, os pêlos brancos vão secando e surge o verde das folhas.

Campos de flores
Como a paisagem da região da Serra se altera constantemente, as plantas passam por diversas mudanças, internas e externas, acompanhando a estação do ano. “A região é linda”, afirma a professora Nanuza. As espécies do gênero Paepalanthus têm inflorescências em forma de bolas de extraordinária beleza. “Às vezes, o campo fica completamente coberto de flores”, diz ela. Mas numa das suas primeiras viagens à região, em 1968, com o professor Aylthon Brandão Joly, já falecido, ficou impressionada com uma área que lhe deu a impressão de “um cenário pré-histórico”.

Foi nessa área que o grupo da USP descobriu a canela-de-ema de seis metros de altura, a Vellozia gigantea. Essa planta, que apesar de atingir essa altura conserva o caule com apenas 1 centímetro de diâmetro, é endêmica da Serra, isto é, só existe naquela região da Serra do Cipó. “O professor Joly acreditava que, para atingir esse porte, as plantas deveriam ter cerca de 500 anos de idade”, lembra Nanuza. A árvore tem outra característica. Nos seus galhos mais altos, vive uma microorquídea, a Constantia cipoensis. Essa orquídea também só existe na Serra do Cipó e só vive sobre a canela-de-ema gigante.

A descoberta dessa espécia de Vellozia foi considerada tão importante que levou a uma campanha, feita por pesquisadores paulistas e mineiros, para a criação de um parque nacional na área. Deu certo. O Parque Nacional da Serra do Cipó foi criado por um decreto de 1975 e começou a funcionar no dia 27 de setembro de 1984. Era mais que necessário. A região estava sendo invadida por pessoas que, para coletar as orquídeas, não hesitavam em derrubar as canelas-de-ema gigantes.

Um dos resultados do projeto temático é a descrição da Vellozia gigantea como espécie nova, o que ainda não tinha sido realizado, apesar de a planta ter sido observada pela primeira vez em 1968. A descrição, feita pela professora Nanuza e pelo professor Renato de Mello-Silva, do Departamento de Botânica da USP, deve ser publicada antes do fim de setembro. “Foi muito importante dar uma contribuição, anatômica e taxonômica, para o conhecimento dessa planta”, diz a professora. Ainda como parte do trabalho, Nanuza e Mello-Silva descreveram outra espécie da mesma família, a Vellozia auriculata, que parece ser muito importante para o entendimento da evolução do gênero.

Órgão especial
O projeto levou a outras descobertas. Plantas da família das dioscoreáceas, a mesma do inhame e do cará, mostraram um órgão subterrâneo especial, ao qual a professora Nanuza deu o nome de rizóforo. Quando descreveu pela primeira vez o órgão, em 1979, em espécies do gênero Vernonia (família das compostos), a professora achava que poderia ter ocorrido uma mutação, por se tratar de algo inusitado. Agora, já sabe que ela é característica em algumas espécies de famílias diferentes. Trata-se de um órgão, mais semelhante a um caule do que a uma raiz, que corre debaixo da superfície. Dentro da terra, o rizóforo lança apenas raízes e outros rizóforos. Mas, se por acaso for descoberto e receber a luz do sol, ele emite uma planta completa, com caule, folhas e flores. O nome rizóforo é dado normalmente a estruturas encontradas em samambaias e significa portador de raízes.

Outros resultados importantes vêm do estudo de cerca de dez famílias de trepadeiras, encontradas nas matas ripárias ou de galerias. Essas matas acompanham o curso dos rios e riachos que cortam o campo rupestre. Como a umidade do solo é maior, elas têm vegetação mais alta que a dos campos vizinhos, com árvores e arbustos nos quais as trepadeiras se enrolam, usando-os como suporte, em busca da luz solar.

Verônica explica que esse processo de crescimento promove uma modificação na morfologia externa e interna do caule, facilitando sua subida para o dossel. Assim, uma das características interessantes é a associação de vasos de grande calibre, garantindo uma condução de água e nutrientes de maneira rápida e eficiente, com vasos de pequeno calibre, permitindo uma condução segura. Isso ocorre tanto nas trepadeiras com caules mais espessos, denominadas lianas, como nas com caules mais finos, denominadas de trepadeiras herbáceas. “Cada espécie apresenta uma característica nova, ainda não mencionada na literatura para a espécie ou o gênero”, diz a professora.

Adaptação local
Há mais. Outros resultados interessantes, dentro do projeto temático, estão sendo obtidos pelos estudos sobre a plasticidade fenotípica – casos em que plantas da mesma espécie, com ampla dispersão, apresentam formas completamente diferentes conforme o lugar nos quais vivem. Há vários casos em que a mesma planta tem características diferentes das encontradas em outras regiões do País quando observada na Serra do Cipó. “As plantas que apresentam plasticidade fenotípica se adaptam às diferenças de ambiente”, diz Verônica.

“As folhas, principalmente, reagem bastante a essas mudanças”, comenta a pesquisadora. Mas não são só fatores climáticos como regime de chuvas, temperatura e ventos que causam adaptações das plantas ao ambiente. “Existem intricadas interações e interdependências entre as plantas e outros organismos”, afirma a pesquisadora Jane. Uma dessas interações, resultante do parasitismo da planta por outras formas de vida, como bactérias, fungos, ácaros e insetos, leva à formação de galhas, também conhecidas como cecídios ou tumores vegetais.

Riqueza em galhas
As galhas representam modificações em células, tecidos e mesmo órgãos da planta. Uma das atividades de Jane no projeto é pesquisar as alterações provocadas pela ação de insetos galhadores sobre as plantas da Serra. “Dados de literatura produzidos por pesquisadores brasileiros e americanos já tinham mostrado que o número de galhas na Serra do Cipó é muito elevado”, comenta ela. “A Serra é uma das regiões do mundo mais ricas em galhas, mas há pouquíssimos trabalhos sobre as alterações morfoanatômicas que elas envolvem”, acrescenta. Já foram observados mais de 30 tipos de galhas numa só espécie do gênero Baccharis.

Num ambiente equilibrado, as plantas podem sobreviver ao parasitismo representado pelas galhas. Mas, em condições ambientais adversas, as plantas atacadas podem desaparecer de uma área. Num projeto tão amplo, é natural que surjam intercâmbios intensos entre os pesquisadores. Por exemplo, no estudo da Marcetia taxifolia, planta da família das melastomatáceas que apresenta grande plasticidade fenotípica, área de Nanuza e Verônica, foram encontradas várias galhas, área da professora Jane. “Outro aspecto importante desse trabalho é a formação de recursos humanos”, diz Nanuza. Mesmo depois de terminado o projeto, ela pretende continuar a estudar a vegetação da Serra.

Perfis
– Nanuza Luiza de Menezes, professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), formou-se em 1950 em História Natural, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde fez mestrado e doutorado. Seu pós-doutorado foi no Jockell Laboratory, no Royal Botanic Garden, na Inglaterra.
– Verônica Angyalossy Alfonso formou-se em 1978 em Ciências Biológicas na USP, onde se doutorou. Fez pós-doutorado no Forest Products Laboratory, em Wisconsin, Estados Unidos.
– Jane Elizabeth Kraus graduou-se em Ciências Biológicas na USP em 1970, onde fez mestrado e doutorado. Seu pós-doutorado foi na Universidade Católica do Chile, em Santiago, Chile.
Projeto
Estudo das Adaptações dos Órgãos Vegetativos e Reprodutivos ao Ambiente Rupestre.
Investimento
R$ 165 mil.

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