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Opinião

Está a Física esgotada?

Está a Física esgotada?

No final do século passado, acreditava-se que nada mais de importante havia a ser descoberto na Física, que essa disciplina estava praticamente esgotada. Tendo como base a mecânica clássica, o eletromagnetismo e a mecânica estatística, o arcabouço clássico parecia explicar de maneira satisfatória os fenômenos naturais, com poucas exceções. Lord Kelvin (1824-1907) descreve a Física, no final do século XIX, “como um céu azul, com algumas nuvens no horizonte.” Essas nuvens correspondiam a fatos experimentais ainda não explicados, entre eles a propriedade exibida pelos átomos de absorverem ou emitirem luz apenas com certas freqüências, o efeito fotoelétrico (emissão de elétrons por metais quando sobre eles incide um feixe de luz) e a variação da cor de objetos aquecidos.

Acreditava-se, no entanto, que esses fenômenos acabariam sendo explicados, com suficiente engenhosidade matemática. Ironicamente, aquelas nuvens começaram a desencadear uma enorme tempestade, que abalou os alicerces da física clássica, exatamente no alvorecer do século XX, em 1900, com a introdução do conceito de “quantum” por Planck. A nova física marcou profundamente este século, afetando e revolucionando o cotidiano das pessoas. A mecânica quântica e a teoria da relatividade produziram o século do transistor, dos computadores, do laser, da exploração espacial, da energia nuclear.

O contraste entre essas realizações e as previsões pessimistas do final do século XIX aconselham prudência nas previsões para o próximo século. Curiosamente, é possível de novo ouvir vozes preconizando, cem anos após Lord Kelvin, que a física está saturada, e que os físicos talvez devessem se ocupar com outras disciplinas. Há duas possíveis interpretações para essa perspectiva: de um lado, a de que a descoberta que alterem os fundamentos da física atual são improváveis (a física é um céu azul!); de outro, a de que novas aplicações revolucionárias não devem ser esperadas.

Será a física neste final do século XX como um céu azul? Haverá nuvens no horizonte? A imagem de céu azul é certamente estimulada pelos notáveis sucessos alcançados pela física neste século. Não me refiro aqui apenas às fantásticas aplicações, mas à verificação experimental de teorias sofisticadas, como a eletrodinâmica quântica, com precisão inusitada (chegando a uma parte em 1014 para medidas de freqüência!). Por outro lado, podem ser vislumbradas algumas nuvens no horizonte. Prenúncio de tempestade?

Não temos ainda uma teoria que permita entender o espectro de massas e de cargas das partículas elementares até agora descobertas. A situação é, nesse sentido, análoga ao que ocorria no final do século passado, quando não se conseguia entender por que os átomos emitiam luz somente com certas freqüências. Não conseguimos ainda unificar as duas grandes teorias desenvolvidas no século XX, a mecânica quântica e a relatividade geral: não existe, até agora, uma teoria quântica satisfatória da gravitação. Essa questão pode estar ligada a uma outra, bastante fundamental: não entendemos completamente como as características clássicas de nosso Universo emergem das propriedades quânticas do mundo microscópico.

E não conseguimos ainda encontrar matéria suficiente no Universo que justifique seu comportamento atual (“matéria escura”), apesar da descoberta recente de que os neutrinos têm massa. É bem possível que as respostas a pelo menos algumas dessas questões levem a novas transformações revolucionárias de nossas concepções sobre o Universo.

Por outro lado, é extremamente arriscado prever quais serão as novas aplicações da física no século XXI. Basta mencionar que o laser, quando foi inventado, era considerado “uma solução em busca de um problema”. Foi grande o número de surpresas produzidas pela física deste século, e certamente ela estará ainda na base de novas revoluções tecnológicas e industriais nos próximos cem anos. Essa previsão pode ser feita simplesmente extrapolando o que está ocorrendo agora em vários laboratórios. O espaço limitado desse artigo permite mencionar apenas algumas entre muitas possibilidades.

Por exemplo, o desenvolvimento da nanotecnologia aproximará ainda mais a mecânica quântica do cotidiano das pessoas, e poderá levar a uma nova revolução industrial. O fenômeno quântico do tunelamento tem sido usado, através dos microscópios de tunelamento, para depositar de forma controlada átomos em superfícies, produzindo imagens com dimensões típicas do nanômetro (um milésimo da espessura de um fio de cabelo). Além disso, vários laboratórios (inclusive no Brasil, na USP, em São Paulo e em São Carlos, e na Universidade Federal de Pernambuco) comprovaram a possibilidade de aprisionar átomos, por meio de campos eletromagnéticos, a temperaturas extremamente baixas. Esses átomos podem ser usados para a produção de feixes atômicos com pro-priedades semelhantes aos feixes de luz produzidos por lasers.

Esses verdadeiros lasers atômicos, já demonstrados por alguns grupos de pesquisa, podem levar, através da técnica de litografia (uma variante da técnica utilizada pelos homens das cavernas para imprimir imagens na pedra), à produção de circuitos na escala atômica, desenhados átomo a átomo sobre uma superfície. Com essas técnicas, todo o conhecimento humano poderia ser armazenado em um disco de 25 cm de diâmetro! Um outro desenvolvimento que teria imensa repercussão seria a produção de novos materiais que fossem supercondutores à temperatura ambiente. Vale lembrar ainda a extensa gama de possíveis aplicações da física em biologia, já em 1944 motivadas pela pergunta formulada por Erwin Schrödinger no seu livroO que é a vida . “Como podem eventos noespaço e no tempo , que ocorrem dentro dos limites espaciais de um organismo vivo, ser abordados pela física e pela química?”

Em palestra plenária no encontro comemorativo do centenário da American Physical Society (parcialmente publicada no “APS News ” de junho deste ano), Joel Birbaum, cientista-chefe da Hewlett Packard, comentou que o crescimento exponencial da capacidade computacional nos últimos 24 anos só poderá ser mantido nas próximas duas décadas se tecnologias totalmente novas, baseadas em chaves quânticas (que podem ser colocadas em uma superposição dos estados “ligado” e “desligado”), forem desenvolvidas. Somente as empresas que conseguirem converter as novas descobertas científicas em uma nova tecnologia sobreviverão no que chama de “era quântica do processamento de informação”.

O fato dessa hipótese ser considerada ainda bastante especulativa não impede que, além da HP, a Microsoft, a IBM e a ATT mantenham grupos de físicos trabalhando na área de computação quântica (que está também sendo financiada pela National Security Agency, nos Estados Unidos). Essas empresas sabem, por experiência própria, que tecnologia de ponta se cria e se desenvolve, não se compra, e que é necessário estar preparado para novas revoluções tecnológicas antes que elas ocorram. É curioso e sintomático que as pesquisas em torno do computador quântico reúnam cientistas de computação, matemáticos versados em teoria dos números e físicos interessados em aspectos fundamentais da mecânica quântica. Nesse, como em vários outros setores de ponta, a remoção das fronteiras entre as diversas áreas de pesquisa ocorre naturalmente.

Essas observações indicam que o próximo século será ainda profundamente marcado por novas descobertas da Física. E que a riqueza ou a pobreza das nações estará cada vez mais associada à capacidade de criar e desenvolver a nova tecnologia oriunda dessas descobertas.

Luis Davidovich é Professor titular do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro titular da Academia Brasileira de Ciências

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