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AMBIENTE

Fim do mistério

Há muito mercúrio natural no Rio Negro, sem relação com o garimpo

imagem_34Uma pesquisa realizada entre setembro de 1995 e janeiro passado na bacia do Rio Negro, na Amazônia, desfaz a conexão tradicional entre contaminação de populações ribeirinhas por mercúrio e atividade garimpeira. O garimpo utiliza o mercúrio para amalgamar o ouro, especialmente em baixos teores, e assim viabilizar a atividade, num processo que afeta todo o ecossistema. No Rio Negro e seus afluentes de águas pretas, no entanto, a alta concentração deste mineral deve-se a emanações naturais do solo em interação com complexos processos naturais, como a ação fotoquímica da luz solar. O que os pesquisadores definem como efeito redox inibe a volatilização do mercúrio em corpos de água preta, ricos em matéria orgânica e com baixo pH.

Essa inibição torna esses corpos d’água ricos em teores de mercúrio, a exemplo do que ocorre em regiões afetadas pela industrialização. O trabalho Química Aquática do Mercúrio no Rio Negro: Importância da Luz Solar nos Processos Redox, coordenado pelo professor Wilson de Figueiredo Jardim, do Laboratório de Química Ambiental do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com participação de investigadores científicos de outras entidades nacionais, permitiu que um dos pesquisadores, diretamente envolvido com as investigações, Pedro Sérgio Fadini, obtivesse seu título de doutorado naquela universidade.

Se de um lado a pesquisa, que recebeu um auxílio da FAPESP de R$ 36,2 mil, possibilitou novos conhecimentos sobre a dinâmica do mercúrio nos 700 mil km2 da bacia do Rio Negro, de outro, estimula investigações complementares. Essas pesquisas adicionais devem responder por que populações com alto teor de mercúrio no organismo não desenvolveram sintomas clássicos dessa intoxicação com essas substâncias, como perda de visão periférica e tremores no corpo, avalia Jardim, que também foi o orientador da tese de doutorado.

Amostras de cabelos
As pesquisas envolvendo o mercúrio na bacia do Rio Negro, uma área equivalente a um sexto de toda a Amazônia Legal, tiveram como ponto de partida um levantamento feito no início da década pelo pesquisador Bruce Forsberg, do Instituto Nacional da Pesquisas da Amazônia (Inpa), de Manaus. O levantamento de Forsberg mostrou concentrações elevadas de mercúrio em amostras de cabelo de populações ribeirinhas, numa média de 75 miligramas por quilo, mas atingindo até 171 miligramas por quilo. A concentração limite em cabelos está estabelecida em 10 miligramas por quilo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A partir de 30 mg/kg, a pessoa começa a exibir sintomas da contaminação.

Forsberg e seus colaboradores também detectaram concentrações elevadas de mercúrio no organismo de peixes predadores típicos da Amazônia, como o tucunaré. Esse trabalho pioneiro foi justificado pela intenção demonstrada pela Cooperativa dos Garimpeiros da Amazônia (Coogam) de envolver-se com a extração do ouro no Vale do Rio Negro. O desejo de Forsberg, neste caso, era montar um banco de dados de referência envolvendo os teores de mercúrio distribuídos na região antes da eventual ocorrência dessa ação antrópica e localizada.

As altas concentrações detectadas por essa primeira pesquisa numa região onde até então o garimpo era reprimido levaram a Unicamp a interessar-se pelo estudo, apoiada pela FAPESP, justifica Jardim. Foi quando começou o trabalho que, ao final de quase quatro anos, reformulou metodologias científicas, detectou processos naturais de contenção do mercúrio em rios de águas pretas como o Negro, estabeleceu novos parâmetros para a discussão da contaminação mercurial, demonstrou o risco de se praticar o garimpo com uso desse metal e também apontou para a necessidade de novas pesquisas, na área médica, capazes de explicar a inibição dos sintomas de intoxicação.

Antes deste trabalho realizado pela Unicamp, aceitava-se a associação única e direta entre garimpo com uso de mercúrio e altas concentrações desse poluente no ambiente, especialmente no organismo de populações ribeirinhas, pois o mercúrio tem efeito cumulativo e sua concentração ocorre principalmente pela cadeia alimentar. A partir do paradoxo determinado pela equipe de Forsberg, os trabalhos conduzidos sob a direção de Jardim mostraram que os solos da bacia do Rio Negro – que ao desaguar no Solimões, na altura de Manaus, forma o Rio Amazonas – são ricos neste mineral.

A liberação constante desses estoques naturais, especialmente estimulada por processos de cheia e vazante da bacia, além da atuação da fotoquímica solar, intensa na região, são os responsáveis pelas elevadas concentrações de mercúrio na coluna d’água e conseqüentemente na biota, descobriram os autores deste estudo.

Estoques naturais
Escavações realizadas a até um metro de profundidade em diferentes pontos da área investigada pelo trabalho conduzido por Jardim indicaram teores de mercúrio que, levando em conta a área de 700 mil km2 da bacia do Rio Negro, somam uma disponibilidade natural de 126 mil toneladas de mercúrio na região estudada. Esses índices, consideram Fadini e Jardim, são incompatíveis com o aporte trazido pelo garimpo na Amazônia, estimado entre um mínimo de 4,6 a um máximo de 6,7 toneladas/ano.Medições atmosféricas realizadas também a um metro do solo permitiram estabelecer um estoque de mercúrio na atmosfera da região de 10,8 toneladas, enquanto um ciclo complexo do metal no ambiente, com influência especialmente da radiação solar, permitiu estimar uma deposição anual de 14 toneladas/ano de mercúrio sobre a região.

Considerando-se ainda o teor do metal presente nas águas do Negro, com uma descarga de 29 mil m3 por segundo no Solimões, os pesquisadores estabeleceram uma exportação anual de mercúrio, apenas pelo Rio Negro, de 4,1 toneladas/ano. Esse total é quase equivalente ao aporte mínimo considerado para a atividade garimpeira e assim também não pode ser justificado apenas por essa intervenção humana.

O mercúrio está presente no ambiente a partir de liberações naturais como vulcanismo, volatilização de corpos aquáticos e emanações da crosta terrestre. A forma dominante desse mineral na atmosfera é a gasosa, onde, segundo Fadini, é pouco solúvel em água. Essa característica, de acordo com o pesquisador, “implica um tempo de residência relativamente longo”, estimado em um ano. A velocidade com que esse elemento é removido da atmosfera para depositar-se sobre o solo ou nas águas depende de vários processos físico-químicos que o confinam no estado gasoso ou particulado.

Na água, o metal sofre modificações físico-químicas e fotoquímicas provocadas por processos bióticos ou abióticos. E uma das descobertas interessantes, interpreta Jardim, “foi justamente estabelecer que, nas águas pretas, como é o caso do Rio Negro, um processo físico-químico deflagrado por mecanismos fotoquímicos cria uma contenção que inibe a volatilização do mercúrio, impedindo que ele atinja a atmosfera e se espalhe por via aérea”. Nas águas claras de rios como o Branco e o Solimões, onde a concentração de matéria orgânica é menor, esse processo não se manifesta, avaliam os pesquisadores.

O resultado disso, é que os corpos de água preta, caso do Rio Negro, são mais ricos em mercúrio. Daí a maior contaminação da fauna aquática e da população ribeirinha local. As contribuições do ser humano para a concentração de mercúrio no ambiente, localiza Fadini, “começaram com a Revolução Industrial, quando o metal começou a ser usado para a produção de produtos como lâmpadas, baterias, termômetros, barômetros e ainda com emprego na produção de pesticidas e tintas”.

O risco ambiental representado pelo mercúrio começou a despertar atenção nos anos 60, especialmente com a contaminação da Baía de Minamata, no Japão, onde uma indústria, a Chisso, que utilizava esse metal como catalisador, atirou com displicência, durante anos, resíduos do metilmercúrio nas águas. Essa é a forma química mais tóxica do mercúrio. A intoxicação, que ficou conhecida como Doença de Minamata, afetou pelo menos 2.252 pessoas, com 1.043 mortes.

Efeitos ambientais
Em seguida ao acidente de Minamata, mostra Fadini em sua tese de doutorado, “seguiram-se constatações de biomagnificação de fungicidas mercuriais utilizados como preservantes em grãos na Europa e América do Norte”. Esses grãos, consumidos por pássaros e pequenos mamíferos, atingiram predadores maiores como águias, falcões e corujas. Mas a contaminação não ficou apenas nos animais. Ainda nos anos 60, agricultores e seus familiares que consumiram grãos tratados com fungicidas à base de metil e etilmercúrio, especialmente pelo consumo de pão caseiro, também foram afetados. Apenas no Iraque, os dados demonstram que 6 mil pessoas morreram vítimas desse tipo de intoxicação no início da década de 70.

Como resultado desses acidentes, os governos começaram a controlar as emissões do mercúrio decorrentes da ação do homem. Com base no levantamento de vários autores, Fadini sustenta que as emissões de mercúrio na atmosfera caíram de 10 mil a 30 mil toneladas-ano na década de 70 para apenas 1 mil a 6 mil na década seguinte. Em casos de intoxicação pelo metilmercúrio, as investigações demonstraram que a vida intra-uterina é a mais sensível, produzindo deformações resultantes do que pode ser uma interferência dessa substância nos processos de divisão celular. Nas intoxicações severas do feto, demonstra Fadini, “relatos apontam para problemas neurológicos graves, inclusive com má formação cefálica”.

Aí emerge um segundo paradoxo do mercúrio na região estudada. Se a análise de cabelos de populações ribeirinhas aponta para elevados índices de contaminação, o que explica que eles não tenham desenvolvidos os sintomas esperados, como perda da visão periférica e tremores semelhantes aos produzidos pela malária? Os pesquisadores entendem que essa resposta só pode ser dada por uma pesquisa complementar. Admitem que alguns casos podem ser simplesmente confundidos com a malária. Mas aceitam também que isso possa estar relacionado às elevadas quantidades de selênio, elemento presente na castanha-do-pará, que integra a dieta alimentar da população local. “O selênio pode estar por trás dessa inibição, ou pode estar ocorrendo até mesmo um processo de adaptação por tolerância ao mercúrio”, considera Jardim.

Ocupação do solo
O trabalho pioneiro de Forsberg, segundo Fadini, já encontrou concentrações de mercúrio em peixes do Rio Negro e seus tributários bem maiores que as detectadas em rios de outras regiões amazônicas. Exemplares coletados no Rio Negro demonstraram até 2,63 miligramas de mercúrio por quilo, em oposição ao máximo de 0,71 miligrama por quilo de coletas feitas em regiões distintas e isentas de garimpo. No Brasil, o limite de tolerância estabelecido para o mercúrio é de 0,5 miligrama por quilo. Essas altas taxas de mercúrio em peixes do Rio Negro são semelhantes às registradas em áreas antigas de garimpo e com problemas crônicos de contaminação por mercúrio, compara Jardim.

O perfil vertical (escavações) da distribuição do mercúrio ao longo dos testemunhos dos sedimentos de lagos estudados sugere que atualmente as taxas de acumulação do metal na Amazônia são maiores que no passado. Isto está sendo avaliado em parceria com uma equipe liderada pelo professor Antonio Mozeto, da Universidade Federal de São Carlos, que está realizando trabalhos de datação dos sedimentos. As primeiras evidências, no entanto, avalia Fadini, “sugerem que o mercúrio realmente apresenta um ciclo global e que o incremento das deposições atmosféricas em função da industrialização já detectado em lugares remotos de outras regiões do mundo pode também estar acontecendo na Amazônia”.

O pesquisador também não descarta a possibilidade de que, na Amazônia, a liberação do mercúrio de origem natural possa estar aumentando em conseqüência da intensificação de usos e ocupação dos solos da região. Assim, do ponto de vista ambiental, o problema desloca-se do garimpo para o desmatamento, queimada ou criação de pastagens de maneira indiscriminada.

Contribuição científica
Os pesquisadores avaliam que o trabalho que realizaram traz uma série de contribuições à percepção da dinâmica ambiental na bacia do Rio Negro. Avaliam, por exemplo, que os teores de mercúrio encontrados sugerem um cuidado para qualquer aporte adicional desse minério na região, o que, em princípio, inibe qualquer iniciativa ligada ao garimpo do ouro. Além disso, as atividades que implicam a remoção de cobertura vegetal, queimada de floresta e perturbação das margens do Negro e seu sistema de afluentes, com aumento do assoreamento, devem ser evitadas.

Os pesquisadores também sugerem iniciativas e pesquisas complementares capazes de minimizar o impacto dos elevados teores naturais de mercúrio no ambiente regional. Neste caso está incluído diagnóstico mais detalhado da extensão da contaminação pela análise de amostras de cabelo. Eles defendem ainda o incentivo a técnicas agrícolas capazes de estimular uma diversidade agrícola para a ampliação da dieta alimentar. Outra iniciativa proposta é a implantação de um programa de educação ambiental para esclarecer a população dos riscos de contaminação por mercúrio e da conveniência de se preferir peixes não predadores, especialmente para consumo por mulheres grávidas. A médio e longo prazos, sugere-se um plano de gerenciamento da região para determinar o uso e ocupação mais conveniente para o solo e demarcar a intensidade e extensão das atividades extrativistas.

Perfis :
Wilson de Figueiredo Jardim tem 45 anos, graduou-se em Química na Universidade Federal de São Carlos e fez o doutorado na Universidade de Liverpool, Inglaterra. É professor do Departamento de Química Ambiental do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 1985.

Pedro Sérgio Fadini graduou-se em Química na Universidade Federal de São Carlos e fez mestrado e doutorado na Unicamp. É professor do Instituto de Ciências Biológicas e Química da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas.

ProjetoA Química Aquática do Mercúrio no Rio Negro: Importância da Luz Solar nos Projetos Redox
Investimento : R$ 36.207,09

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