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Xylella – Concluído o genoma da bactéria

Termina o seqüenciamento da Xylella fastidiosa, maior projeto científico já realizado no Brasil

Está concluído o seqüenciamento genético da bactéria Xylella fastidiosa , maior projeto científico já realizado no Brasil, lançado em 14 de outubro de 1997 pela FAPESP, com apoio do Fundo Paulista de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), e investimento de US$15 milhões. No dia 6 de janeiro passado, os pesquisadores da Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos, ou, em inglês, Organization for Nucleotides Sequencing and Analysis – que resulta na sigla ONSA, de sonoridade propositalmente tão brasileira -, fecharam o genoma do primeiro fitopatógeno já seqüenciado no mundo.

Isso significa que nesse dia estavam determinadas todos os 2,7 milhões de bases do cromossomo da Xylella . Ou, como resume de forma bem simples o doutor Andrew Simpson, coordenador de DNA do projeto, “significa que aí tivemos uma seqüência contínua de tudo”, ainda que um trabalho pesado tenha prosseguido, até meados de fevereiro, em pelo menos cinco dos 35 laboratórios da rede ONSA envolvidos com a bactéria responsável pela clorose variegada dos citros (CVC), a praga do amarelinho, que afeta 34% dos pomares de laranja, base da importante citricultura paulista.

Nesses laboratórios continuava-se a trabalhar incansavelmente na revisão de umas poucas centenas de bases que ainda não estavam exatamente dentro do padrão de qualidade utilizado na ONSA – de menos de um erro por 10 mil nucleotídeos – e na descrição e definição precisas dos genes codificados pelo genoma. E nesses e em outros grupos de pesquisa prosseguia o absorvente esforço para a elaboração do artigo científico – o paper , no jargão dos cientistas -, com o mapa da seqüência da bactéria, incluindo todos os genes nela encontrados, que será submetido para publicação em março.

É somente a publicação que vai oficializar para a comunidade científica internacional o feito dos pesquisadores brasileiros na genômica e, só a partir dela, os novos dados científicos da biologia da Xylella fastidiosa podem ser livremente divulgados pela imprensa não especializada. São rituais próprios do universo científico – há que aceitá-los.

Mas muito antes disso, ou seja, no dia 21 de fevereiro, os laboratórios e cerca de 190 cientistas envolvidos no projeto da Xylella terão recebido do Estado de São Paulo o reconhecimento público da relevância de seu trabalho, na forma de troféus, medalhas e diplomas do “Mérito Científico e Tecnológico”. Trata-se de um novo prêmio para conquistas significativas na área de CeT em São Paulo, instituído oficialmente pelo governador Mário Covas em 18 de fevereiro, motivado precisamente pelo trabalho dos pesquisadores do genoma da X. fastidiosa .

Entre o momento dessa homenagem e o começo efetivo do projeto da Xylella , o tempo decorrido foi muito curto: apenas dois anos. E isso não muda muito ainda que se tome por começo a gênese mesma do projeto, fixada por consenso de seus líderes em primeiro de maio de 1997, dia em que Fernando Reinach, pesquisador do Instituto de Química da Universidade de São Paulo-USP, propôs ao diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez, que se fizesse o seqüenciamento completo de um microorganismo.

No entanto, em termos científicos, há simbolicamente, para o Brasil, quase a distância de uma era entre esse começo, incluindo os dias de manejo desajeitado e lento das novas máquinas seqüenciadoras, no início de 1998, e o momento em que o read (parte da biblioteca de clones) enviado por Luís Eduardo Aranha Camargo fechou o genoma – ou, melhor ainda, o momento em que Simpson anunciou o fechamento para os cientistas reunidos no I Encontro de Genomas Microbianos Relevantes para a Agricultura, promovido pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, em San Diego, Califórnia, nos dias 8 e 9 de janeiro.

Tinha-se, antes, um País alheio às conquistas da genômica e, depois, um País que pertence ao seleto clube dos que concluíram o seqüenciamento de um genoma microbiano,expertise até então dominada por apenas 14 outros grupos de pesquisa nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. A participação de Simpson no encontro em San Diego, para o qual foi convidado, merece ser registrada. Na abertura do encontro, Peter Johnson, responsável por um dos maiores programas de financiamento de pesquisa do Departamento de Agricultura, anunciou à audiência o fechamento do genoma da Xylella nos seguintes termos: “Tenho uma boa e uma má notícia para contar: a boa, é que foi seqüenciado o genoma do primeiro organismo fitopatógeno; a má, é que não foi feito aqui nos Estados Unidos”.

A palestra de Simpson, mais tarde, fez um grande sucesso e, no final, ele ressaltou que o melhor do projeto brasileiro foi a revelação de jovens pesquisadores. Como destes estavam presentes no encontro Luís Eduardo Aranha Camargo, Felipe Rodrigues da Silva, Celso Marinho, Alessandro Paris e André Vettore, Simpson pediu desculpas por embaraçá-los, solicitou que se levantassem e os cinco foram aplaudidos. Depois, Simpson foi cercado e entusiasticamente parabenizado. Vale observar que o fato de os orçamentos para seqüenciamento de genomas importantes para a agricultura, nos Estados Unidos, serem menores que os disponibilizados pela FAPESP só aumentou o calor da acolhida ao seqüenciamento da Xylella .

“Foi só naquele momento em San Diego que eu senti como era saboroso ter um dedinho naquilo que estava provocando tanto impacto, tanto sucesso”, diz Camargo. O pesquisador de 35 anos, professor doutor no Departamento de Entomologia, Fitopatologia e Zoologia Agrícola da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz-Esalq/USP, diz que ao saber que um read que enviara ao Centro de Bioinformática fechara o genoma, sentiu só alívio. “Eu estava tão estressado, porque queria ter terminado tudo antes do Ano Novo, e tão angustiado, porque no meu computador não conseguira fechar, mesmo depois de o João Setúbal me dizer que fechara, que nem senti alegria. Na Califórnia é que veio o rebote”, comenta.

Realidade maior que o sonho
A par do importante fato científico stricto sensu, que abre vastas possibilidades e novas indagações para os laboratórios ligados à rede ONSA, o fechamento do genoma da Xylella fastidiosa tem uma infinidade de outros significados. Primeiro, ele atesta que, não só foi cumprido, como ultrapassado em boa medida, o que era pouco mais que um sonho quando a FAPESP lançou solenemente, no auditório da Fundação superlotado por autoridades, empresários e mais de 300 pesquisadores do Estado, o então chamado Projeto Genoma-FAPESP.

Ali, anteviam-se e explicitavam-se estas realizações:- Seqüenciar até maio do ano 2000 cerca de 2 milhões de pares de base do DNA da Xylella fastidiosa ;- Propiciar um salto de competência em Genética Molecular, com cerca de 30 laboratórios dominando, no ano 2000, as técnicas de análise de genoma e todas as tecnologias básicas dessa área;- Dispor de novos dados científicos e idéias, no final do projeto, para tentar resolver o problema da CVC na citricultura paulista;- Consolidar um novo modelo de trabalho cooperativo em pesquisa.

Essas propostas estão documentadas no Notícias FAPESP número 25, de outubro de 1997, na matéria com o título assertivo “Um projeto para revolucionar a ciência brasileira”, apropriado ao clima de entusiasmo que grassava entre os formuladores da proposta de seqüenciamento da Xylella , à frente o professor Perez. E é um exercício interessante comparar o que está dito no então boletim da Fundação com o que de fato ocorreu. Primeiro, o número de bases da Xylella revelou-se cerca de um terço maior do que indicava a estimativa inicial, o que faz de seu genoma o quinto mais extenso já completamente seqüenciado. E ainda assim, o trabalho foi concluído cerca de quatro meses antes do prazo previsto: em janeiro, e não em maio de 2000.

Em segundo lugar, o salto de competência científica registrado na pesquisa em biologia molecular em São Paulo, em decorrência do projeto da Xylella , foi certamente maior e mais facetado do que ousavam imaginar seus mais visionários formuladores. Em relação a número de laboratórios capacitados, por exemplo, hoje existem, não 30, mas cerca de 60 grupos de pesquisa espalhados pelo estado de São Paulo com conhecimento e domínio das técnicas mais modernas de pesquisa em biologia molecular.

Sobre isso, Marco Antonio Zago, professor titular do Departamento de Hematologia e Hemocentro da Medicina da USP de Ribeirão Preto e coordenador de um dos laboratórios de seqüenciamento da Xylella diz que, “além da importância de seu resultado específico, é preciso ressaltar exatamente a mudança drástica, fundamental, operada na pesquisa biológica em São Paulo pelo projeto, na medida em que permitiu a capacitação em termos de infra-estrutura e competência técnica de um número muito grande de laboratórios espalhados pelo estado”. Zago não tem dúvida de que esses laboratórios encontram-se num patamar comparável aos dos melhores grupos de pesquisa dos países mais desenvolvidos para responder, como diz Perez, “a um futuro, mais que promissor, exigente”.

Em relação à competência científica, a área de bioinformática merece uma referência especial. Ela era crucial para se fazer o seqüenciamento, mas, ao mesmo tempo, nova e carente de quadros no País, de tal forma que chegou-se a pensar na alternativa de resolver o problema via cooperação internacional. A idéia foi sugerida por André Goffeau, um dos três integrantes do comitê internacional (Steering Committee) de assessoramento ao projeto da Xylella – os outros dois são Steve Oliver, da Universidade de Manchester e John Sgouros, do Imperial Cancer Research Fund, em Londres.

Goffeau, respeitado pesquisador belga do Instituto Curie, coordenador do seqüenciamento do genoma da levedura, concluído em 1996 por uma rede de cerca de 100 laboratórios europeus, propôs que se contratasse um dos especialistas que haviam trabalhado nesse projeto. A hipótese foi descartada quando o grupo que discutia inicialmente o projeto – Perez, Reinach, Simpson, Paulo Arruda, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas-Unicamp, Marcos Machado, do Instituto Agronômico de Campinas, Márcio de Castro, da Esalq, Juliano Aires e Ademerval Garcia, do Fundecitrus, Ricardo Brentani e Joaquim Machado, do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer e Goffeau, entre outros – soube que dois jovens pesquisadores da Unicamp já vinham trabalhando nessa área.

Eram João Meidanis e João Setúbal, logo chamados para se agregar ao grupo e que terminariam ocupando a função-chave de coordenadores de bioinformática do projeto. A solução revelou-se perfeita: no último parecer do Steering Committee sobre o projeto, extremamente positivo, há um destaque para “o excepcionalmente alto nível de competência profissional demonstrado pelos dois coordenadores de bioinformática, combinado com a disposição de ajudar, sempre, a resolver os problemas”. Do laboratório dos dois Joões começam a sair novos especialistas em bioinformática, e ali afirmou-se, por coincidência, um terceiro João, o Kitajima. Isso é de grande importância, porque a essa área que, segundo a própria explicação de Setúbal, viabilizou o trabalho de tratamento e análise de enormes volumes de dados na biologia, conferindo-lhe uma dimensão quantitativa inteiramente nova, parece reservado um lugar muito especial no desenvolvimento científico do século 21.

Um olhar mais amplo sobre a questão do salto de competência obriga ainda a incluir uma brilhante realização paralela obtida no curso do projeto da Xylella fastidiosa: a nova metodologia de seqüenciamento ORESTES, sigla de Open Reading Frames EST Sequences . Embora não tenha sido utilizada com a bactéria da CVC, foi impulsionado por seu trabalho como coordenador de DNA nesse projeto que Simpson aperfeiçoou, junto com talentosos jovens cientistas de seu laboratório no Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer, o método sobre o qual já vinha trabalhando há alguns anos.

Diferentemente das outras metodologias em curso, que propiciam o seqüenciamento das extremidades dos genes, o método ORESTES permite alcançar sua área central, de fundamental importância porque aí se concentra sua região codificadora de proteínas. O método vem sendo usado com grande sucesso no projeto paulista do Genoma Humano do Câncer. Um artigo a seu respeito está prestes a ser publicado numa revista científica internacional e ele é objeto de um pedido de registro de patente depositado no escritório norte-americano pelo Instituto Ludwig, com a concessão de metade dos direitos à FAPESP.

O vigor conquistado da ONSA
Em relação ao objetivo do projeto da Xylella de gerar dados e idéias novas para resolver o problema da CVC, o caminho proposto pela FAPESP foi o projeto Genoma Funcional. Lançado em 30 de outubro de 1998, ele desafiava os pesquisadores paulistas especializados em doenças de plantas e áreas afins a trabalhar com novas hipóteses sobre a praga do amarelinho, a partir dos genes da bactéria que vinham sendo biologicamente identificados pelos laboratórios da rede ONSA. Hoje, 21 projetos de pesquisa estão sendo desenvolvidos no âmbito do Genoma Funcional da X. fastidiosa e há uma expectativa de que possam oferecer um caminho efetivo de controle da clorose dentro de alguns anos.

E, para concluir a análise do saldo entre o proposto e o realizado pelo projeto da Xylella , uma questão decisiva para seu êxito: o modelo implantado de trabalho cooperativo em pesquisa. A ONSA revelou-se um modelo que efetivamente conseguiu criar uma nova cultura sobre o modo de fazer pesquisa em São Paulo. Antes de indicar como e por que ele conseguiu isso, vale lembrar que a ONSA foi a base a partir da qual a FAPESP transformou o Projeto Genoma numa coisa muito maior, o Programa Genoma-FAPESP, constituído no primeiro semestre de 1999, com essa seqüência de lançamento de projetos:-Genoma Humano do Câncer, em 26 de março, num esquema de parceria entre a FAPESP e o Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer;- Genoma da cana-de-açúcar, em workshop internacional nos dias 12 e 13 de abril, com apoio da Copersucar (Cooperativa dos Produtores Paulistas de Cana-de-Açúcar);- Genoma-Xanthomonas, em junho, para seqüenciamento da bactéria Xanthomonas axonopodis pv citri, causadora do cancro cítrico, com apoio do Fundecitrus.

A essa altura, os projetos do programa Genoma da FAPESP representam investimentos globais de aproximadamente US$ 35 milhões, incluindo-se os aportes de R$ 5 milhões do Ludwig para o Genoma-Câncer, cerca de US$ 1 milhão do Fundecitrus para os dois projetos genoma ligados à citricultura e US$ 500 mil da Copersucar em apoio ao Genoma-Cana. Chega-se ao custo total com os investimentos no projeto Genoma Funcional da Xylella.

Mas quais as razões do sucesso do modelo de trabalho concretizado pela Onsa? Já em maio de 1998, a renovação que ele estava trazendo ao ambiente da pesquisa paulista era, graças à percepção de Perez e Simpson, assim descrita no Notícias FAPESP 31: “Um fenômeno novo está ocorrendo na organização da pesquisa e na própria produção de ciência no Estado de São Paulo. (…) ele se manifesta numa cooperação entre pesquisadores em escala jamais vista no País, num ritmo de produção que lembra mais uma linha de montagem industrial do que a investigação científica tradicional, e numa velocidade de obtenção de resultados surpreendente numa atividade que, pelo menos no Brasil, sempre foi vista como descomprometida com a ação do tempo”.

Explicava-se que o acontecimento novo se revelava na consolidação de uma estrutura de pesquisa leve, flexível e eficiente, um instituto virtual sem paredes, descentralizado e baseado na idéia de rede de laboratórios, tomada de empréstimo a alguns grandes projetos internacionais, à qual, no entanto, a iniciativa paulista agregara “princípios de liderança e hierarquia próprios de um instituto convencional, chegando a uma receita, no mínimo, original”.Uma chave da questão parece estar justamente aí: “Primeiro, o projeto da Xylella funcionou muito bem por causa do estilo de coordenação de Simpson.

Ele tem a capacidade de agregar pessoas, entende suas limitações e suas qualidades, cobra sem ferir e sem ser paternalista”, diz Luiz Eduardo Camargo. Em segundo lugar, ainda de acordo com Camargo, a network da Xylella foi de alta eficiência, até pela sintonia que se conseguiu para a troca de informações, graças ao trabalho do Centro de Bioinformática. “E finalmente, tudo funcionou bem pela sensação de bem estar que prevalecia nas reuniões do grupo”.

Mais velho e mais experiente, o professor Zago vai praticamente pela mesma linha na avaliação das razões do sucesso do trabalho na ONSA. “Trabalhar em rede era um enorme desafio, porque não tínhamos a cultura da cooperação”, diz. Segundo ele, a personalidade de Simpson, a percepção dos pesquisadores de que acabara a competição entre eles e chegara o momento de se unir para competir com os grupos de fora e resultados rápidos, porque o grupo se unia para resolver os problemas, foram os componentes básicos do excelente funcionamento do projeto.

Excelência reconhecida pelo Steering Committee quando disse, em seu parecer de 10 de novembro último, que a rede estava funcionando em São Paulo “ainda melhor do que funcionou na Europa” e recomendou à FAPESP esforçar-se para incorporar tudo que fora listado de positivo no projeto da Xylella aos projetos genoma futuros. Dessa lista constam, entre outras coisas, “o excelente espírito de grupo construído na rede” e “o modo entusiasmado, positivo e acolhedor com que Andrew Simpson exerceu seu papel de coordenador de DNA”.

Simpson, por sua vez, afirma que “o segredo do sucesso do projeto foi a dedicação intensa de jovens pesquisadores e o aproveitamento do enorme talento disponível entre o grupo”. Segundo ele, “esses talentos precisam ser valorizados e precisam saber que são valorizados”. Tudo deu certo com a Xylella . Agora o futuro, dizem os pesquisadores num coro virtual, está aberto para novos e maiores desafios.

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