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Andrew Simpson

Dificuldades superadas pela coragem de arriscar

O doutor Andrew Simpson, um amável e firme inglês de 45 anos, começou a chegar ao Brasil há 11 anos. Parece estranho, mas começou é exatamente o termo que se aplica ao caso, porque, a princípio, ele veio duas ou três vezes, para desenvolver alguns trabalhos temporários de pesquisa e mantinha seu vínculo institucional com o National Institute for Medical Research, em Londres. Na última dessas viagens, na véspera de seu retorno, muito triste ante a perspectiva de deixar o país, colocou-se diante de uma questão existencial crucial: “por que tenho que voltar?” Uma noite inteira de debate íntimo, solitário, levou-o na manhã seguinte à decisão que imediatamente comunicou a seus perplexos colegas ingleses e que transformaria a sua vida: permaneceria no Brasil.

Foi uma escolha feliz para a pesquisa brasileira e absolutamente compreensível partindo de uma pessoa que, ao lembrar dos passos iniciais para o desenvolvimento do projeto da Xylella diz: “aposto que foi o projeto de sequenciamento de genoma que começou pior preparado no mundo”, para acrescentar mais adiante: “quem quer chegar longe na vida não faz somente as coisas que são garantidas”. Na entrevista concedida a Pesquisa FAPESP, Simpson, pesquisador do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer e coordenador de DNA do projeto Genoma da Xylella fastidiosa, falou detalhadamente das dificuldades enfrentadas e superadas ao longo de sua execução. Abordou a importânciacientífica do projeto e, de passagem, falou das possibilidades comerciais que ele abre.

Como o senhor se sentiu sendo publicamente homenageado pelo governo paulista, em razão do sucesso do projeto da Xylella?
Ninguém imaginava ser recebido com tanta cerimônia, e obviamente não há nada melhor do quer ser publicamente reconhecido. Em alguns momentos, ao longo do projeto, pensei que não haveria qualquer comemoração, porque sempre trabalhamos com uma preocupação: “será que a gente vai conseguir?”. Pessoalmente, é uma coisa maravilhosa.

Alguma vez o senhor imaginou esse tipo de grande homenagem? Suponho que quando alguém começa uma carreira científica com garra se imagina recebendo um Nobel em algum momento.
É claro. Qualquer jovem entrando em qualquer profissão deve sonhar. Se começa no esporte, deve se imaginar recebendo a Copa do Mundo ou o prêmio mundial de Fórmula 1. Não há nada de errado em estimular a ambição das pessoas. Às vezes, temos de acordar às cinco da manhã para trabalhar e precisamos de um sonho. Por outro lado, não acreditamos muito que esse reconhecimento um dia chegue. Nossa festa não foi um Nobel, foi muito mais importante porque foi uma afirmação de uma nação, da importância da Ciência. O prêmio é o reconhecimento ao papel da Ciência no desenvolvimento do país.

O senhor sentiu que enfrentaria desafios maiores no Brasil do que na Inglaterra, devido à diferença de maturidade da pesquisa nos dois países?
No início, verifiquei que tudo aqui é um desafio. Até as coisas mais simples são mais difíceis de executar, mas senti muito entusiasmo dos pesquisadores para resolver os problemas. Nunca pensei que este país iria me oferecer a oportunidade de coordenar um projeto dessa magnitude, que é extremamente rara em qualquer país.

Existe uma grande expectativa em relação às aplicações deste projeto. Ainda se está longe de intervir sobre a patogenicidade da Xylella?
Sim. No começo dos anos 80, foi descoberta a Aids. Em poucos meses, foi identificado o vírus HIV, que causa a doença. Depois, foi feita a seqüência inteira do vírus, um ser simples, com meia dúzia de genes. Vinte anos mais tarde, ainda não temos nada que permita a cura definitiva. É errado pensar que apenas o conhecimento do genoma de um organismo leva imediatamente a qualquer intervenção ou cura. O importante é que o Brasil é suficientemente maduro e sofisticado para contemplar essa abordagem para o problema conhecido como “amarelinho”.

É muito sofisticado procurar conhecimento e fazer ciência como uma ferramenta para resolver problemas. Esse projeto, a meu ver, reflete o amadurecimento da nossa comunidade. O Estado também tem de ser suficientemente maduro para entender que essas descobertas não levam a uma solução imediata. Vai levar a uma solução e permitir a aplicação das ferramentas da biotecnologia, mas não podemos esperaruma solução para amanhã. O problema é complexoeleva mais anos de pesquisa.

Gostaria que o senhor comentasse as técnicas que foram utilizadas no Brasil pela primeira vez num projeto de seqüenciamento que jamais havia sido feito.
Seqüenciamento em si é uma ferramenta básica da biologia molecular que tem sido bastante utilizada no Brasil, mas para seqüenciar um gene, um plasmídeo ou um trecho pequeno, com um objetivo específico. A novidade é seqüenciar um genoma. É muito mais do que um aumento quantitativo. É uma mudança fundamental porque se tem de seqüenciar uma coisa completa. Não pode haver buraco e é preciso pegar e anotar e decidir o que é o quê. No início, seguimos um caminho que foi ótimo para a aprendizagem e certamente garantiu, no final, um projeto muito bom, mas não é exatamente o que as pessoas fariam para seqüenciar um genoma, que são os cosmídeos (grandes pedaços clonados de genomas). Depois, complementamos com outras abordagens, como as bibliotecas de lâmbda, que são pedaços grandes de genoma, não tão grandes quanto os cosmídeos. No final fizemos bastanteshot-gun sequency , o arroz-com-feijão do seqüenciamento, e coisas complexas, como o PCR (reação de polimerase em cadeia).

Quando se fala em plasmídeo e cosmídeo, a diferença é basicamente de tamanho?
Sim. Usamos fragmentos de 500 a 5 mil nucleotídeos, enquanto o plasmídeo tem 40 mil nucleotídeos. A diferença é que quando se seqüencia um cosmídeo se tem a intenção de seqüenciar tudo. Quando se faz um shot-gun, em princípio só se seqüenciam as extremidades e, em certos casos, quando é inevitável, se seqüencia tudo, uma, duas, três ou quatro cabeças (reads) de plasmídeos. Senão, é muito trabalho para pouco resultado.

Tudo aquilo que está sendo usado internacionalmente para seqüenciamento genético foi usado no projeto da Xylella ou alguma técnica mais nova ficou fora?
Uma técnica bastante utilizada em genomas grandes, que não utilizamos, foi a dos BACs (Cromossomos Artificiais da Bactéria), um pouco antiga. Ela é a base do projeto Genoma Humano e de outros projetos.

Especificamente, o que foi difícil nesse projeto?
Houve dificuldades a cada momento. Primeiro, foi difícil decidir qual organismo seqüenciar. Levou muito tempo. Foi difícil escolher os laboratórios, dos 100 inscritos apenas 35 foram escolhidos. Foi também muito difícil aprender a lidar com os equipamentos, ninguém tinha muita experiência e até erramos ao usar dois tipos de seqüenciadores, apenas um teria sido melhor. Então, não houve só dificuldades, houve erros, também. Depois disso, a logística para importar, instalar e treinar todo mundo para usar as máquinas foi um problema enorme. Havia experiência em montar centros de pesquisa, não em espalhar aparelhos em muitos lugares. Mas as equipes administrativas da FAPESP e do Instituto Ludwig conseguiram superar rapidamente as dificuldades, com muito trabalho e muito empenho.

E na parte científica, propriamente?
Quando começamos, ninguém conhecia a bactéria. Aposto que esse foi um projeto de seqüenciamento de genoma que começou pior preparado do que qualquer outro na história do mundo. Porque havia um coordenador que nunca seqüenciara um genoma, não trabalhara com bactéria e sequer sabia o que era a Xylella fastidiosa . Havia um coordenador de informática que nunca havia lidado com um projeto de DNA na vida e uma equipe espalhada por todo o Estado de São Paulo. Nenhum pesquisador havia seqüencionado nada e vários não sabiam quase nada de biologia molecular. Pior: ninguém no estado tinha a bactéria viva, muito menos DNA, muito menos ainda a biblioteca de DNA. Começamos sem qualquer evidência de que o trabalho iria funcionar.

Como fizeram?
Arrumamos a bactéria rapidamente. O que nos deu a confiança para iniciar o trabalho foi a promessa do professor José Bové (do Centro Nacional de Pesquisa Científica, da França) de fornecer a bactéria e o DNA que fosse necessário. E ele fez isso. No final, Marcos Machado, do Instituto Agronômico de Campinas, deu todo o DNA que eu logo usei no projeto. Esse não foi um problema, mas uma grande dificuldade, porque anunciamos que iríamos fazer uma coisa sem condições para fazer.

O senhor não achou que tudo era uma loucura de brasileiro?
Não. Foi confiança na habilidade da comunidade de executar qualquer tarefa dada. Não há nada de loucura. Na vida, temos de arriscar. Quem quer chegar longe na vida não faz somente as coisas que são garantidas. Mas confesso que, quando saiu o anúncio de que a gente ia fazer esse projeto, sem DNA e sem bactéria, deu uma certa ansiedade. Aí, decidi levar o projeto a sério, porque se não saísse iriam dizer que a idéia era boa, mas o coordenador era incompetente. Eu nunca tinha organizado um grupo desse tipo e não sabia como fazer. No final, quase não sei como fiz. Foi acontecendo no calor das coisas.

Antes da Xylella, o senhor tinha coordenado grupos de quantas pessoas?
Acho que o máximo foi tentar reunir minha família e ir para a praia, mas tenho de confessar que não consegui fazer muito bem… Na área científica, coordenei só um laboratório com meia dúzia de pessoas e não trabalhando em grupo. Normalmente, cada projeto tinha dois ou três pesquisadores envolvidos. Mas outra dificuldade no projeto da Xylella foi ter muita gente dependendo da rede de informática, que no início era precária. Houve dificuldades para transmissão e muitos não tiveram uma ligação adequada à Internet. Eu mesmo não tive, pois ainda estava usando modem, que é totalmente inadequado para esse tipo de trabalho.

Por estar fora da rede, eu tinha de ligar o telefone para saber se alguém havia seqüenciado algo naquele dia. A distância era uma dificuldade. A FAPESP havia assumido um projeto que precisava de agilidade e muito dinheiro para ser gasto num curto período de tempo e não sabíamos realmente como fazer. Uma equipe pequena trabalhou muito para enquadrar as regras da FAPESP dentro da necessidade do projeto. Tivemos momentos de sérios conflitos, quando se dizia “preciso disso para hoje” e como resposta se ouvia “mas não pode”.

A burocracia emperrou?
Apesar de toda agilidade e qualidade, a FAPESP, corretamente, tem um sistema de checking and balances que não é muito ágil. A dificuldade da importação de reagentes e os processos de alfândega complicam a pesquisa. Já com as pessoas, não tive dificuldade nenhuma. Dado o tamanho do grupo, houve muito poucos conflitos. Não tive nenhum problema com a qualidade científica da equipe, de altíssimo nível. O projeto é que é complexo. Tudo o que estávamos fazendo era inédito.

Um dos momentos mais desafiantes foi vencer os gaps que restavam e concluir ogenoma da Xylella, não?
Foi a parte mais difícil do genoma, que ficou mais difícil ainda para nós por dois motivos. Primeiro, eu não tinha a menor idéia de como fazer. Nunca havia feito e os papers não contam exatamente como fazer. Era preciso inventar uma solução. Segundo, tínhamos muito pouca informação sobre o genoma da Xylella antes de começar o seqüenciamento. Não sabíamos sequer o tamanho dos gaps, porque não sabíamos o tamanho total do genoma (2,7 milhões de pares de bases). Esse é um problema comum em projetos desse tipo, que acumulam muitos dados. Uma porção dos dados não está correta e deve ser excluída. Às vezes faltam dados, mas não se sabe quanto e onde. Ou há dados repetidos que não devem ser repetidos ou mesmo que devem ser repetidos, mas não se sabe isso. É um enorme quebra-cabeça.

Mas o que me agrada muito são esses pontos finais, o close, a anotation e o ato de escrever o paper, que também conseguimos fazer em grupo. Um ano atrás, quando já havíamos completado os cosmídeos, minha idéia era que os coordenadores fechassem os problemas e escrevessem o paper, mas rapidamente vi que isso teria sido um enorme erro. Primeiro, porque tenho um grupo pequeno aqui no Ludwig, e demoraria um tempo tremendo. É um perigo em termos de dinâmica de grupo concentrar em poucos os esforços de muitos. Inevitavelmente, muitos começariam a cobrar. Segundo, porque para acelerar essa parte final tive de envolver mais pessoas. Todo mundo se conheceu e entrou com sua cabeça no problema. Foi muito agradável. A idéia sempre foi que todo mundo participasse da anotation, mas funcionou muito bem com várias pessoas assumindo áreas que às vezes não eram de conhecimento delas, mas aprenderam e fizeram um excelente trabalho.

Dr. Simpson, para nossos leitores não biólogos, daria para lembrar novamente o que é anotation?
Anotation é o trabalho de identificar um pedaço da seqüência do genoma que representa um gene, que codifica uma proteína e, em seguida, decidir qual tipo de proteína é e qualsua função. Desse modo, descobrimos as prováveis funções biológicas da bactéria com a interpretação das seqüências do genoma.

Existe algum conjunto de gene em processo de patenteamento?
Sim. São genes que achamos que podem ter alguma relação com a clorose variegada dos citros ou algum valor comercial. Independentemente disso, estamos fazendo o pedido de patente. Estamos pedindo primeiro nos Estados Unidos.

Como o senhor situaria o Brasil no quadro internacional da pesquisa em genômica a partir do projeto da Xylella?
O Brasil torna-se um país participante. Já estávamos participando, porque há projetos genoma cooperativos, principalmente de parasitas, que contam com grupos brasileiros. Hoje não é mais notícia o seqüenciamento de uma bactéria, que já foi feito dezenas de vezes, mas em poucos países. Essa certamente é uma condição sine qua non para demonstrar que o Brasil é um país onde a genômica está sendo feita. Esse trabalho, na comunidade de especialistas em patógenos de planta, é muito bem visto. Estamos, sim, numa posição de liderança, mas a Xylella por si não é de grande importância. O fato de o projeto ter sido feito em um país do Mercosul vai chamar um pouco a atenção, mas não tanto. Seria notícia muito maior se Angola tivesse realizado um feito desse. Não creio que seja visto com tanta surpresa o fato de o Brasil tê-lo feito. Trata-se de um processo de desenvolvimento natural de nossa comunidade científica, que já publica bastante em revistas internacionais.

E qual é o impacto na comunidade científica brasileira?
O astral dos participantes é excelente. Dá uma grande confiança à comunidade científica saber que a sociedade como um todo está nos apoiando, dando os recursos necessários e a infra-estrutura suficiente para realizar projetos de maior porte, comemorando junto quando temos sucesso e percebendo que ciência faz parte do plano estratégico para o Brasil. Esse trabalho demonstra que a sociedade pode contar conosco. O fato de o projeto ter sido financiado mostra que, se a gente trabalha bem, há lugar para a ciência no Brasil. Nunca tive dúvidas, e no mundo inteiro também não há muita discussão, sobre a qualidade do cientista brasileiro. Temos uma comunidade de pessoas jovens, inteligentes e motivadas que ainda estão optando por fazer ciência. A surpresa, se houve, foi o Brasil colocar US$ 12 milhões num projeto científico. Essa decisão implica coragem, investimento e visão estratégica – agora, sabemos que existem. O complemento já sabíamos que existia: é o talento científico.

Qual é a importância econômica do projeto para o País?
A importância econômica potencial desse projeto apresenta dois aspectos. Um é o domínio do conhecimento sobre genomas e sua aplicação em agricultura, medicina e meio ambiente. É uma maneira de agregar valores a esses setores e de ajudá-los a se desenvolver. Torna-se possível monitorar melhor a pureza genética dos animais ou realizar testes genéticos em humanos, por exemplo. O outro aspecto é que a tecnologia por si é uma semente de uma nova vertente comercial, que é a própria biotecnologia. Hoje se pode pensar em criar uma capacidade de serviços ou de comércio internacional de tecnologias. Fora do Brasil já há interesse em alugar a Onsa (Organização para Seqüenciamento e Análises de Nucleotídeos), que chamou atenção também de indústrias brasileiras.

Na medida em que o Brasil é um país rico em biodiversidade, esse conhecimentose torna mais estratégico, não?
Certamente. Vamos ver como tudo se desenvolve, mas possivelmente se pode contemplar, com grande êxito, a aplicação de genomas em biodiversidade de plantas ou para preservação de espécies, mas não de imediato.

Qual é o lugar da genômica na ciência do século XXI?
Uma das ciências-chave do século XXI será a biotecnologia e biologia molecular, cuja base será a genômica. Em alguns anos, como já disseram, não haverá nenhum projeto de pesquisa de biologia que não utilize de uma maneira ou de outra o genoma. A genômica será uma das bases da ciência neste século. E vai mudar nossa vida.

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