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André Goffeau

Uma proposta de especialização em genoma de patógenos

O belga André Goffeau, respeitado pesquisador do Instituto Curie, em Paris, foi o coordenador do projeto de seqüenciamento do genoma da levedura, feito por uma grande rede de cerca de 100 laboratórios europeus, e concluído em 1996. Quando a FAPESP começou a discutir, ainda no primeiro semestre de 1997, a possibilidade de realizar em São Paulo o seqüenciamento de um microorganismo, Goffeau foi o primeiro especialista estrangeiro chamado a opinar sobre o assunto. E sua avaliação, de que São Paulo estava preparado para o empreendimento, teve um grande peso na decisão da FAPESP de propor o seqüenciamento da X. fastidiosa. Como se poderá ver por sua entrevista, Goffeau jamais encontrou razões para se arrepender de sua opinião.

Ele se mostra um entusiasta absoluto do feito realizado pelos pesquisadores paulistas, não poupa adjetivos de louvação à estrutura montada para o primeiro seqüenciamento completo de um genoma no Brasil, nem à FAPESP, cuja eficácia qualifica de extraordinária, identificando-a como o primeiro fator de sucesso do projeto. Sua idéia sobre o que o Brasil deve fazer daqui por diante em genômica é, com certeza, polêmica. O país, aconselha ele, deve se concentrar em genomas bacterianos patogênicos, realizando um projeto desses a cada ano, e dessa forma se consolidar como a liderança mundial nesse campo. “Por ora – incentiva – vocês já bateram os Estados Unidos. Eles não têm um genoma fitobacteriano. O de vocês é o primeiro”.

O projeto da Xylella fastidiosa foi concluído com êxito. O que o senhor poderia acrescentar à opinião que deu sobre ele, em novembro passado?
Em novembro, a seqüência já estava completa, os buracos já tinham sido fechados, portanto nós estávamos bastante satisfeitos. Restava a incerteza sobre a capacidade de a rede fazer uma anotação correta dos genes, quer dizer, a determinação da função de genes por análise informática.

Mas ainda faltava seqüenciar uma base em novembro, não é mesmo?
Não, na última vez em que estive no Brasil antes da conclusão do projeto, os pesquisadores me disseram que naquele dia mesmo fechariam a última lacuna. Portanto, o que era preciso era ter uma confirmação da segunda parte. Não se sabia como a anotação havia se desenrolado, sobretudo porque era um trabalho feito por uma rede, com muitos laboratórios, e isso jamais havia sido feito no Brasil ou em qualquer outro país. Normalmente, as anotações vão para um número limitado de pessoas. Desde então – não faz muito tempo: dezembro, janeiro, fevereiro – tornou-se claro que a anotação é muito boa.

E o senhor já viu os resultados da anotação?
Não de maneira detalhada, mas eu vi as duas versões do manuscrito. Li em detalhe e, para mim,está muito claro que a anotação foi bem-feita e, inclusive, apresentou resultados ao mesmo tempo totalmente inesperados e interessantes, no sentido de que se definiu uma série de regiões e de genes possivelmente relacionados à virulência e à patogenicidade da Xylella fastidiosa .

Há nove genes encontrados na bactéria que estão relacionados à clorose variegada dos citros (CVC), não é mesmo?
Já não sei mais se são nove, mas há toda uma série de genes que podem estar relacionados, quer seja com a virulência, quer seja com a goma (N.R. – a goma xantana, que, nas laranjeiras afetadas pela CVC, bloqueia o xilema da planta, prejudicando a circulação da seiva). Há o operon, que sintetiza a goma, que não é um gene, mas vários genes, e depois há toda uma série de outras seqüências que poderiam estar relacionadas com a adesão da bactéria ao inseto (N.R. – a cigarrinha transmissora da CVC) e com a virulência em geral. Então, tudo isso é verdadeiramente exciting, como se diz em inglês.

Em paralelo, há mecanismos de patogenicidade que eram esperados, como a secreção pelo complexo três, e que não se confirmaram, da mesma forma que os genes da virulência clássica em patógenos de animais não foram encontrados. Ao mesmo tempo, encontramos toda uma série de genes que dão verdadeiramente uma imagem interessante da patogenicidade e pelo menos duas classes de genes que não estão presentes que não foram encontrados em outros patógenos, sobretudo animais. Isso é muito interessante e prova que a anotação foi bem-feita, na minha opinião, justamente porque ela trouxe resultados. É isso que é novo nesses últimos meses: o interesse e, provavelmente, a qualidade da anotação, com a detecção de uma seqüência de candidatos a genes relacionados à virulência.

Podemos falar sobre o começo do projeto? Quer dizer, o que o levou a pensar, em 1997, que o Brasil seria realmente capaz de realizar um projeto genoma?
Há duas coisas a dizer. O Brasil manteve por pelo menos dez anos, mas talvez por mais tempo, uma política de enviar pesquisadores ao estrangeiro – aos Estados Unidos e à Europa – para pós-doutoramento, quase todos, ou a maioria deles, com uma bolsa financeiramente excelente, por três anos. Era, assim, uma política geral, que o Brasil liquidou há muitos anos. Essa política foi às vezes criticada num certo sentido, dizia-se que custava muito caro, os melhores nem sempre voltavam, e, uma vez que tivessem voltado, ficavam sem meios para trabalhar, quer dizer, sem ter como utilizar o conhecimento adquirido.

Mas para mim ficou muito claro, pela primeira vez, que foi graças a essa política, que durou muitos anos, que o Brasil teve a capacidade de assimilar quase instantaneamente uma tecnologia relativamente nova, para o país, pelo menos, que é o seqüenciamento genético. E em todos os seus aspectos: o da seqüência, mas também o da informática, o de mapeamento do genoma e, agora, o da anotação. E, portanto, não se trata de um milagre. Tudo ocorreu porque havia competência, uma reserva de competência no Estado de São Paulo, que foi mobilizada logo em seguida para esse novo projeto. Foi, portanto, uma demonstração de que aquela política foi útil e isto deve ser dito claramente.

E o senhor crê que essa política deveria continuar nos próximos anos?
Eu diria que sim, porque é sempre perigoso pensar que se pode formar pesquisadores localmente tão bem quanto nos EUA ou na Europa. Pois mesmo na Europa eu exijo que todos os meus estudantes que querem fazer pesquisafaçam um curso nos EUA, de maneira a aprender outros métodos, outras abordagens, outras formas de trabalhar, e estou convencido de que é indispensável continuar a fazer isso. É preciso continuar e o projeto genoma da Xylella é uma demonstração de que isso não é dinheiro perdido. A outra coisa que é preciso dizer: todos os pesquisadores brasileiros proclamam que sua limitação não é o conhecimento científico e, no Estado de São Paulo, nem mesmo é o dinheiro, mas a burocracia.

A burocracia?
Em particular, eles dizem que não têm acesso aos produtos e aos equipamentos que vêm quase todos dos EUA, às vezes da Europa, porque os procedimentos aduaneiros são extraordinariamente ineficazes; e a burocracia universitária, assim como a do governo, exige que se faça o planejamento das despesas com mais de um ano de antecedência.

E no caso da Xylella?
No caso da Xylella, processou-se um curto-circuito sobre esse sistema graças à ação da FAPESP, que interveio oficialmente ou oficiosamente para acelerar esse processo. Mas na vida cotidiana essas mesmas regras continuam a existir e são sempre um fator limitante da pesquisa brasileira. Não posso ficar fazendo julgamentos, mas é uma comédia.

E como poderemos, em sua opinião, resolver o problema da burocracia?
Creio que a primeira coisa é ser muito claro em relação a esse problema, que nunca foi realmente exposto pela imprensa. Dizer claramente isso: “É nosso fator limitante”; e agir no nível dos governos e dos políticos dizendo: “É isso que limita nossa pesquisa, não é nossa competência, não é nem mesmo o dinheiro; são os papéis que os senhores nos fazem preencher com coisas inúteis”. Como estrangeiro, posso dizer isso facilmente, porque não estou envolvido, mas para os brasileiros talvez seja muito difícil, não sei. Em todo caso, eu queria sublinhar muito claramente esses dois pontos relevantes: um, o fecundo resultado da política de enviar brasileiros ao exterior; dois, os problemas burocráticos que, no caso da Xylella, foram resolvidos eficazmente graças a uma ação pontual da FAPESP.

Podemos usar a conclusão do Projeto Xylella como um marco, algo que poderá dividir a ciência brasileira num antes e num depois do genoma? Como o senhor vê essa questão?
Para mim – e não tenho nenhuma dúvida – se o Projeto Xylella for de fato publicado na Nature (e acho que o será, porque o artigo é muito bom), será como um tiro de canhão na cena internacional. Há só quatro países no mundo que fizeram um genoma completo dentro de seu próprio país – desde a obtenção do DNA até a análise informática, passando pelas seqüências: os Estados Unidos, o Japão, a Alemanha (com um genoma) e a Suécia (também com um genoma). Nem a França, nem mesmo a Inglaterra, com o enorme Sanger Center, fizeram, que eu saiba, um genoma inteiro sozinhas. Foi sempre um trabalho de colaboração. Creio que o Brasil marca de verdade um ponto importante, porque está realmente na ponta da competição. E isso será bastante considerado durante um tempo. Geralmente essas coisas têm um efeito psicológico durante uns meses, um ano, talvez, mas, se o Brasil vai manter esse lugar que alcançou, vai depender do que será feito e publicado no futuro.

Quais as suas expectativas quanto ao futuro do Brasil na genômica?
O Brasil pode se tornar muito competitivo nesse domínio, diante da Suécia, Japão, Alemanha,França e Reino Unido. Mas paraisso é preciso que faça outros genomas com a mesma eficácia, isto é, genomas bacterianos patogênicos. O país pode ocupar muito bem esse campo, desde que se especialize. Tem toda a estrutura para fazê-lo e há um segundo genoma similar em curso, o Xanthomonas. Eu diria muito claramente que em vez de diversificar, em vez de estudar outros genomas de plantas, de parasitas, e mesmo de doenças humanas, o Brasil deveria se especializar em genomas bacterianos patogênicos. Poderia se especializar nisso tudo que os pesquisadores já sabem fazer bem e, portanto, podem fazê-lo rapidamente, tanto que tem um segundo projeto sendo feito. Mesmo a Tiger, que é a grande estrela do seqüenciamento americano, não fez mais que dez genomas bacterianos em quatro anos. O que mostra que o Brasil pode rapidamente ocupar esse nicho do genoma bacteriano patogênico de plantas, animais ou humano, em vez de se dispersar.

Como pensar nisso, quando já há projetos genoma de outra natureza em curso?
Sei que é muito difícil agora, quando já há projetos como o da cana-de-açúcar e o do câncer. São projetos que, na minha opinião, terão menos impacto porque não são de um genoma inteiro; são aquilo que chamamos de ESTs, etiquetas. São úteis, mas provocam menos impacto psicológico e científico que o genoma inteiro – talvez não científico, mas decerto psicológico. Como estratégia, eu diria, se estivessem em jogo o meu dinheiro e o meu país: “especializemo-nos no genoma bacteriano fitopatogênico e outros”.

Terminado o projeto da levedura, a rede de laboratórios europeus formada para desenvolvê-lo também acabou. Mas no Brasil a ONSA deverá continuar seu percurso. Qual a sua opinião sobre isso?
Eu repito o que disse: com a infra-estrutura que foi construída e a competência que foi estabelecida, o Brasil deve se especializar em genomas bacterianos patogênicos. E, por exemplo, apresentar todos os anos um novo genoma de bactéria fitopatogênica, de maneira a ocupar esse campo como líder mundial bem antes dos Estados Unidos. É possível fazer isso mantendo a rede de laboratórios. A competência existe, o dinheiro existe, a única coisa que impediria esse caminho seria o foco das estratégias. Penso que é claro como resposta: eu aconselho fazer um genoma fitobacteriano a cada ano, como objetivo.

Em algum momento o senhor duvidou da possibilidade de sucesso do projeto?
Na verdade não, mas o período difícil, que tomou quase seis meses, foi o fechamento dos últimos 14 gaps. Naquele momento pensamos que talvez fosse mesmo impossível fechá-los. A rede brasileira respondeu a isso tentando, em paralelo, todas as abordagens prováveis. Tentaram de tudo ao mesmo tempo, de modo que no Brasil o shot-gun, uma biblioteca lâmbda, lâmbda dúplex, cromossoma walking e, finalmente, cada uma dessas abordagens foi útil e pôde fechar uma lacuna. Em novembro, fechou-se o último buraco graças a uma seqüência de shot gun. Mas alguns também foram fechados por lâmbda, outros por dúplex, cromossomo walkingprimer ex-tension. Isso mostra, mais uma vez, que a competência está presente no Brasil. Ela não é aparente, não sei por que, mas fazer o fechamento do genoma, com todas as abordagens ao mesmo tempo, mostra uma competência que estava no país e não era utilizada.

O senhor quer acrescentar mais alguma coisa?
Na minha opinião, são cinco os elementos do sucesso do projeto brasileiro – e estamos falando de um verdadeiro sucesso, quase único, para além dos esforços europeus de seqüenciamento em rede da levedura e do Bacilus suptilis. E é preciso ser muito claro sobre esses cinco elementos: número um, e é o principal, como eu jamais havia visto antes, é a eficácia da FAPESP. É uma coisa extraordinária e, nesse caso, foi algo fenomenal. Podemos nos perguntar por quê. É devido a fatores humanos, com certeza, e o empenho pessoal determinou que se fizesse isso muito rapidamente e de maneira eficaz, e se escapou da burocracia. A segunda razão é que o financiamento estava disponível e não foi jamais um fator limitante.

Essas são as duas razões principais do sucesso. A terceira, talvez, é que o projeto teve um comitê de consultores independente da política local. Escapou-se da política local porque havia esse board de pessoas que davam conselhos, que nem sempre foram seguidos, mas que permitiram um processo de tomada de decisões alheio à influência da política local do país. Penso que isso foi importante na eficácia da FAPESP, que pôde sempre dizer “sim, nossos conselheiros estrangeiros disseram isso e aquilo e, portanto, não podemos nos deixar levar por considerações locais”. Compreende? Houve esse board independente, cujas opiniões foram muito consideradas. A quarta razão é realmente extraordinária e inesperada, acho que foi mesmo uma sorte: vocês tiveram uma informática rigorosa, um pessoal de informática rigoroso. É um verdadeiro milagre! Isso também é resultado da política a longo prazo de enviar pessoas ao exterior. E essas pessoas foram muito determinantes.

Seu rigor, sua competência e sua determinação são um verdadeiro milagre. O último fator do sucesso foi a boa vontade reinante entre todos os pesquisadores. Não houve muitas, aliás, quase nenhuma pessoa que puxasse o tapete. Não sei se isso vai continuar no futuro, mas durante esses três anos a coesão foi exemplar. E isso acho que se deve ao coordenador do projeto. Ele teve uma atitude que favorecia acima de tudo a colaboração, e não a impressão de que alguns estariam tirando proveito em particular do projeto. Assim, repito: a eficácia da FAPESP, o financiamento do qual depende a infra-estrutura, o comitê externo, a informática de Campinas e a ação do coordenador do ponto de vista psicológico, que é mais importante que o técnico.

E havia, enfim, a competência necessária para fazer todas as abordagens ao mesmo tempo. Havia sempre alguém, em algum lugar, que tinha a competência. A receita do milagre é tudo isso. Não sei se vai continuar. Agora os outros estados brasileiros também vão tentar fazer genoma (o Rio de Janeiro vai tentar…), não sei se vai dar certo por muitas razões, mas uma delas é que os outros estados vão ter dificuldade de fazê-lo sem contar com a eficácia da FAPESP.

Isso é um problema para o Brasil? A eficácia dos outros laboratórios…
Para mim não são os laboratórios, mas a estrutura, eles não têm a FAPESP, não têm dinheiro suficiente, não têm acordo, foco. De todo modo eles vão fazer, mas não sei se vai dar certo. Aqui em São Paulo o objeto a ser seqüenciado foi muito bem escolhido: é um pequeno genoma. E, entretanto, ele mostrou ser muito difícil de seqüenciar. E ele tem uma grande importância para a economia. Os outros estados dificilmente escolherão tão bem. O que quero dizer é que os outros estados somente copiarão e, assim, o Estado de São Paulo contribuiu mostrando muito bem o exemplo.

O Rio de Janeiro já declarou sua intençãode seqüenciar o Trypanosoma cruzi.
Creio que isso será difícil, porque o genoma é bem maior. De outro lado, há muitos outros países do mundo que vão fazer o Trypanosoma ou uma parte dele, quer dizer, será um esforço muito diluído no tempo e também geograficamente, e poderá não ter o mesmo impacto. Acho que não é uma escolha tão boa quanto foi a de São Paulo. Certamente é importante ter esse genoma, mas isso tomará vários anos e, além disso, ele não será totalmente brasileiro como o da Xylella; será 30%, 10% brasileiro, uma vez que há outros países que também fazem outros cromossomos do genoma do Trypanosoma. É por isso que digo: não cometam esse mesmo erro. Concentrem-se em pequenos genomas bacterianos fitopatogênicos e sejam os mais fortes do mundo; por ora, vocês já bateram os Estados Unidos: eles não têm um genoma fitobacteriano, o de vocês é de fato o primeiro.

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