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IMUNOLOGIA

Antiofídico de cascavel fica mais leve

Nova imunoterapia permitirá tratamento menos agressivo contra veneno da serpente

Extração do veneno é tradição secular, mas tratamento mudará

Eduardo Cesar

A cascavel é a serpente cuja picada causa mais mortes no Brasil. Duas pesquisas do Instituto Butantan (São Paulo) mostram que é possível usar fragmentos de anticorpos anti-veneno de cascavel que agiriam especificamente sobre o veneno, diminuindo os sérios efeitos adversos da soroterapia. Essa possibilidade de tratamento, menos agressivo que o convencional – adotado há mais de 100 anos e cuja aplicação é muitas vezes comprometida pelas reações adversas – tem mostrado bons resultados em laboratório, em testes com camundongos.

O veneno da cascavel (Crotalus durissus terrificus ) tem 65% de crotoxina, proteína que é seu principal componente ativo. Ela inibe os movimentos musculares: por isso, a vítima pode até parar de respirar se não tiver socorro adequado em tempo hábil, algo em torno de 2 a 6 horas. As conseqüências do envenenamento são bem conhecidas, mas pouco se sabe do efeito do veneno sobre as células e do desenvolvimento da resposta imune do organismo. Foi justamente a isso que se dirigiu o projeto Efeito do Veneno da Crotalus durissus terrificus (cascavel) sobre o Sistema Imune, do professor Ivan da Mota e Alburquerque, Liderança Científica do Laboratório de Imunopatologia do Instituto Butantan.

A crotoxina age na região de contato entre o nervo e o músculo, inibindo a liberação de acetil-colina ao nível das junções neuromusculares. Com isso, impede a transmissão do estímulo nervoso para o músculo se contrair: “Um dos primeiros sinais de que o veneno está agindo é a ptose palpebral – a pessoa não consegue abrir a pálpebra”, diz o professor Ivan.

Quando o organismo percebe a entrada de proteínas estranhas, reage contra elas produzindo anticorpos, formados por células sangüíneas chamadas linfócitos. Os linfócitos B produzem anticorpos que neutralizariam o efeito tóxico do veneno. Resultados anteriores obtidos no Laboratório de Imunopatologia mostraram que a crotoxina do veneno da cascavel diminui consideravelmente a resposta imune, de modo que o sistema imunológico da vítima produz menos anticorpos, sobretudo anticrotoxina, que neutraliza os efeitos da crotoxina.

Como a resposta dos linfócitos B é muito influenciada pelas citocinas (substâncias também produzidas por eles), a pesquisadora Diva Ferreira Cardoso, Ivan da Mota e sua equipe decidiram injetar em camundongos (Mus musculus ) tanto o veneno de cascavel quanto a crotoxina isolada. Então, acompanharam a produção de citocinas e anticorpos pelo animal, para estudar a ação do veneno sobre o sistema imunológico. Verificaram que tanto o veneno como a crotoxina isolada inibem a produção de citocinas e de anticorpos, mas que esse efeito supressor no sistema imunológico ocorre apenas sobre os linfócitos B (produtores de anticorpos), e não sobre os linfócitos T (responsáveis pela imunidade celular).

O projeto, iniciado em fevereiro de 1997 e terminado em 1999, recebeu financiamento da FAPESP e resultou na tese de doutorado de Diva Cardoso, além de um artigo na mais importante revista científica sobre venenos animais, Toxicon (Vol. 35: 607, 1997), assinado por Mota e Diva.

Eduardo Cesar Professor Ivan, do Instituto Butantan: orientador previu uso de anticorpos humanosEduardo Cesar

A partir de então, ambos decidiram continuar os estudos sobre o veneno, em busca de uma alternativa para o soro anticrotálico produzido em cavalos ou ovelhas. Eficiente na neutralização dos componentes tóxicos do veneno, esse soro retirado de animais imunizados com o veneno total causa, em 30% a 84% dos casos, as reações indesejáveis, que vão desde a chamada doença do soro até o choque anafilático. A doença do soro produz reações cutâneas que, em casos graves, causam insuficiência renal. Além disso, ocorre a diminuição de imunidade provocada pelo próprio veneno, o que resulta num quadro de resolução complicada.

Em relação ao mecanismo de ação do veneno, os pesquisadores também queriam responder a novas indagações. Uma delas era descobrir qual a dosagem de citocinas produzidas pelos linfócitos B e qual o efeito da crotoxina sobre a produção de citocinas por esses linfócitos.

No relatório de seu projeto, Mota já apontava, como objetivo futuro, a obtenção de “anticorpos monoclonais de origem humana para fins terapêuticos”, que inibissem os efeitos colaterais. Então, sua equipe iniciou novo projeto, no decorrer do qual a pesquisadora Diva Cardoso conseguiu um grande avanço: sintetizou um fragmento de anticorpo humano, exatamente a parte que se liga ao antígeno (o veneno). Esse pedaço do anticorpo com especificidade para o veneno (reconhece o veneno) é chamado anticorpo humano recombinante ou scFv. “Diva mostrou que as moléculas scFvs anti-crotoxina são capazes de neutralizar, potencialmente, a atividade enzimática e letal da crotoxina in vitro e in vivo, com animais de experiência”, revela Ivan da Mota.

O novo projeto – Caracterização do Potencial de Neutralização de Anticorpos Humanos Recombinantes (scFv) Anti-Crotoxina do Veneno do C. d. terrificus frente à Crotoxina dos Venenos de C. d. collineatus e C. d. cascavella – foi tema da tese de Diva e continua a ser desenvolvido pela biomédica Edna Cristina dos Santos, que tem bolsa da FAPESP para tese de mestrado, sob orientação de Ivan da Mota e com a colaboração do Hybridolab, do Instituto Pasteur, da França. Os pesquisadores têm pela frente um longo trabalho, que inclui mais testes com animais e humanos, até que o scFv possa ser usado na rotina de atendimento.

Um legado importante
Formada em Ciências (1982) pela Universidade Mackenzie, de São Paulo, Diva Ferreira Cardoso fez mestrado em Microbiologia e Imunologia (1992) na antiga Escola Paulista de Medicina (atual Universidade Federal de São Paulo) e doutorado em Imunologia (1999) no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Desde 1987 era pesquisadora científica no Laboratório de Imunopatologia do Instituto Butantan. Assinou dez trabalhos em publicações internacionais, sobretudo sobre veneno de cascavéis.

Foi a grande responsável pela obtenção do fragmento de anticorpo que poderá ser a diferença entre tratamento mais ou menos agressivo para as vítimas de picadas de cascavel. O importante trabalho da dra. Diva, interrompido por sua morte trágica, em dezembro de 1999, foi retomado por sua orientanda de mestrado Edna Cristina dos Santos sob a orientação do prof. Ivan Mota.

Segundo a apresentação do projeto, a “alternativa proposta para o melhoramento da soroterapia é a possível utilização de anticorpos homólogos (de origem humana), específicos para as principais toxinas do veneno, que possam evitar essas reações adversas. Anticorpos humanos recombinantes já vêm sendo usados com sucesso no tratamento de tumores, rejeição de transplantes, artrites reumatóides e alergias, sugerindo que sua utilização também é possível no tratamento dos acidentes crotálicos.”

Perfil: Ivan da Mota e Albuquerque, 79 anos, formou-se em 1947 pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco. Foi professor de Histologia na Faculdade de Medicina da USP e de Imunologia no Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Trabalha desde 1970 no Laboratório de Imunopatologia do Instituto Butantan.

Projetos
1. Efeito do Veneno da Crotalus durissus terrificus (cascavel) sobre o Sistema Imune.
2. Caracterização da Reatividade Cruzada e do Potencial de Neutralização de Anticorpos Humanos Recombinantes (scFv) Anti-Crotoxina do Veneno da Crotalus durissus terrificusfrente à Crotoxina de outros Venenos Crotálicos
Investimentos: R$ 12.091,76  e  US$ 36.200,37

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