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URBANISMO

Zona Leste de São Paulo enfrenta o novo milênio

Pesquisa traça origens e destinos da região paulistana

A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora e coordenadora do mestrado de urbanismo da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, acaba de completar Reestruturação Urbana da Metrópole Paulistana: Análise de Territórios em Transição . Resultado de 10 meses de pesquisa, o trabalho faz uma análise profunda das transformações ocorridas na Zona Leste de São Paulo, neste final de século, e traça o novo perfil econômico e urbano da região. Patrocinado pela Fapesp, o trabalho é fundamental para a consulta de quem se preocupa com o reordenamento territorial urbano de São Paulo.

Com o auxílio de pesquisa da FAPESP – R$ 40 mil para a aquisição dos equipamentos necessários, entre computadores, software e scanners -, uma verba de R$ 30 mil proveniente do Sesc Belenzinho e do projeto Arte Cidade e em parceria com o Instituto Polis (organização não-governamental que trabalha com políticas urbanas e municipais), Raquel coordenou uma equipe de cinco pessoas, entre estudantes da PUC de Campinas e pós-graduandos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), de março de 1999 e janeiro deste ano.

“Observamos os sinais da transformação econômica e comercial e das formas de trabalho, na passagem da industrialização de São Paulo para a terceirização e quisemos verificar o impacto dessas mudanças em lugares tomados pela indústria”, conta Raquel. “Nos centramos na Zona Leste para trabalhar em uma escala menor e mais detalhada e porque é ali que estão acontecendo as principais mudanças.”

Em mais de 200 páginas, documentadas com tabelas, mapas e fotografias aéreas, Raquel radiografou a região baseada na observação das indústrias, comércio e mercado imobiliário residencial. “Cartografamos esse novo espaço, fizemos cartas temáticas como uma espécie de atlas da Zona Leste.” Raquel e sua equipe utilizaram os cadastros do Senai sobre a estrutura industrial de São Paulo, de 1968 e 1993, e os registros de lançamentos imobiliários do município paulista, de 1985 a 1999, arquivados pela Embraesp.
“Para cada tema que focalizamos, usamos uma base de dados; depois, sobrepusemos as planilhas e cruzamos informações até verificaro que permaneceu e o que já não existe na região.” Na etapa final, Raquel também utilizou os resultados da Pesquisa da Atividade Econômica Paulista (Paep), feita pela Fundação Seade. A urbanista traçou, assim, o novo perfil daquele território formado pelo conjunto de distritos situados a leste do centro histórico e do eixo Tamanduateí.

O resultado final surpreendeu. “Tomamos um susto porque a conclusão é bem diferente daquela que imaginamos no início: além de a indústria continuar existindo, ela cresceu, embora tenha se modificado”, observa ela. “O que mudou foi sua inscrição territorial, antes implantada ao longo das ferrovias, hoje espalhada por toda a cidade.”

Outra mudança verificada sobre aquele território é que as grandes indústrias manufatureiras deram lugar às pequenas e médias empresas industriais. “Antes elas empregavam até 500 trabalhadores, hoje não usam a mão-de-obra de mais de 100 pessoas.” De acordo com Raquel, isso não se deve às novas máquinas e à tecnologia de ponta, mas sim à terceirização que, hoje, domina a economia da cidade. “As empresas são prestadoras de serviços para a indústria.”

Perfil histórico
Na introdução de seu trabalho, a urbanista recorre à história para localizar a formação do perfil anterior da Zona Leste. Recorda que no final do século 19, tempos áureos do café, a cidade viveu seu primeiro surto industrial, baseado principalmente na indústria têxtil e alimentícia. “Ocupando as várzeas por onde passavam as ferrovias, constituiu a grande região operária de São Paulo: sua Zona Leste-Sudeste”, escreve Raquel. O primeiro dos 114 mapas que a urbanista apresenta mostra a cidade em 1877. Demonstra que, enquanto a colina histórica – ou centro velho – encontrava-se já ocupada e arruada, a várzea inundável do Tamanduateí a leste permanecia despovoada.

“Conforme a cidade cresce e aumenta a concorrência pelo solo urbano, instala-se a segregação no espaço, e nesse ponto inicia-se a história da ocupação das terras de várzea.” Em paralelo aos trilhos do bonde e do trem, em um plano horizontal, começaram a surgir os galpões de tijolos, vilas e cortiços, oficinas e vendas, povoados por milhares de trabalhadores que chegavam à cidade, ocupando-a de maneira intensa e rápida.

Por outro lado, as colinas a sul e oeste, secas e ventiladas, eram procuradas pelas elites, para uso residencial. Surgiram, assim, os Campos Elíseos, primeiro, e Higienópolis, Paulista e Jardins em seguida. “A cidade fortemente dualizada entre as terras altas ricas e qualificadas e as terras baixas pobres e insalubres é uma das dominantes por meio da qual se poderia descrever São Paulo durante todo o século 20”, prossegue Raquel.

“A barreira representada pelas ferrovias – a Santos/Jundiaí, ao longo da várzea do Tamanduateí, e a Central do Brasil, ao longo da várzea do Tietê – e pelas indústrias (que até os anos 30 ocuparam todo o território da orla ferroviária em busca de uma situação favorecida do ponto de vista do escoamento da mercadoria), com suas poucas possibilidades de transposição, era a muralha que dividia claramente o território da cidade.” Com base nos mapas que apresenta para comprovar a evolução da ocupação da cidade, Raquel conclui que o poder público atua historicamente no sentido de reforçar a barreira e as diferenças.

A identidade dominante da região Leste foi se constituindo a reboque da industrialização e da habitação operária, consolidando-se em um ponto que a urbanista chama de “Posição Leste”: “É a posição das várzeas industriais ferroviárias e proletárias, dos conjuntos habitacionais, das baixadas e sua relação com as áreas de consumo e moradia de alta qualidade do outro lado da cidade.” É, também, de acordo com ela, a posição dos investimentos públicos apenas funcionais – e não urbanísticos – chegando muito após os lugares terem sido povoados. “É a luta contínua por espaços de vida e cidadania por parte daqueles que fazem da região a sua casa”.

As mudanças ocorridas na cidade traçaram o novo perfil da Zona Leste, agora retratado por Raquel. “É de onde se sente com mais contundência a transformação industrial,  pelo desaparecimento do emprego, da identidade operária e pela desintegração do próprio espaço urbano anteriormente estruturado pela indústria”, escreve. E é, segundo diz, de onde se assiste ao surgimento aleatório de focos de dinamismo econômico e poder de consumo, provocando a concentração do comércio em shopping centers e hipermercados e a verticalização imobiliária da região. “A verticalização da periferia, com o surgimento de novos edifícios de dois dormitórios e até de quatro dormitórios de alta renda em bairros como Tatuapé, Mooca e Vila Prudente, é um fenômeno residencial intenso”, diz.

Raquel observa também que o termo “desindustrialização” não se aplica ao atual estágio do parque industrial da capital. “A concentração de empresas de potencial inovador, a exportação de plantas menos dinâmicas e a grande dispersão das pequenas e micro novas indústrias pela cidade indicam que se trata de um amplo processo de reconversão industrial.” Em outras palavras, as indústrias de hoje na Zona Leste aboliram as chaminés e o maquinário pesado e foram substituídas por outras mais enxutas. “Houve uma mudança radical da indústria e o emprego industrial sumiu”, diz ela.

Ordenamento futuro
A estrutura urbana que se insinua a partir daí caracteriza-se por dispor de um capital que se comporta de forma menos direcionada do que já foi. “Isso não significa que esteja se produzindo uma cidade melhor ou mais homogênea, já que mesmo megainvestimentos em regiões de urbanização incompleta não repercutem em melhora alguma em seu entorno: sua forma de inserção tem sido de forma a recortar e fragmentar o tecido circundante e, sobretudo, não estabelecer qualquer relação com este”, escreve Raquel.

A urbanista conclui que uma intervenção pública no sentido de dirigir o reposicionamento da Zona Leste é fundamental. “Por enquanto, todo o crescimento urbano da região é pautado pelo mercado. Seu futuro dependerá da política urbana adotada na cidade de São Paulo, onde o mercado lidera e a intervenção do poder público é escassa.”

Apesar do trabalho minucioso que a urbanista realizou para analisar a Zona Leste, para ela, sua pesquisa apenas dá uma “pincelada” na nova realidade da região. Assim, ela planeja novo projeto para desenvolver pesquisa detalhada do atual perfil de suas indústrias.

De acordo com as observações que a urbanista fez sobre dados da pesquisa da Paep utilizados em seu trabalho, hoje em São Paulo predominam empresas de alta tecnologia. “É a indústria do software , programas produtivos de qualidade e informatização da gestão, que têm um impacto muito grande e economizam mão-de-obra.”O conteúdo de Reestruturação Urbana da Metrópole Paulistana: Análise de Territórios em Transição , também pode ser encontrado em CD para consulta, posterior distribuição e possível venda.

Raquel utilizouo mesmo método em outra pesquisa patrocinada pela FAPESP, em 1997, sobre o impacto da aplicação de instrumentos urbanísticos em cidades do Estado de São Paulo com mais de 20 mil habitantes. Em tempo de eleições municipais, o documento pode ser de extrema importância para um projeto de governo sério.

PERFIL
Raquel Rolnik
é arquiteta formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Doutorou-se em História Urbana na Universidade de Nova York. Foi diretora de Planejamento do munícipio (1989 a 1992). É coordenadora do mestrado em Urbanismo da PUC de Campinas.

Projeto
Reestruturação Urbana da Metrópole Paulistana: Análise de Territórios em Transição
Investimento : R$ 40 mil

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