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Heloísa Liberalli Bellotto

Um Brasil com contornos mais nítidos

Aumenta a consistência do retrato do país

Para a historiadora que chefiou o resgate dos documentos referentes a São Paulo no Arquivo Ultramarino, não se devem esperar informações espetaculares do Projeto. Mas está para vir um quadro muito mais claro ·e consistente do que era a vida e o jogo do poder no Brasil Colônia.

Qual o ponto de partida para o trabalho de descrição e microfilmagem dos documentos referentes à capitania de São Paulo existentes no Arquivo Ultramarino de Lisboa?
Os trabalhos de descrição dos documentos referentes à Capitania de São Paulo começaram em 1998. Estavam dentro da seqüência da programação do Projeto Resgate. Soubemos que teríamos de trabalhar com duas vertentes. Uma era a revisão de um catálogo preexistente, finalizado e publicado em 1954, por ocasião do quarto centenário da cidade de São Paulo pelo historiador Alfredo Mendes Gouveia. Seria feito o confronto entre o catálogo e a documentação que ele descrevia. A segunda parte do trabalho seria a descrição de outros documentos, isto é, a elaboração de verbetes descritivos do restante dos documentos referentes a São Paulo. Esse material ainda não tinha sido submetido à descrição porque estava inserido, quando foi feito o trabalho de Mendes Gouveia, em outros conjuntos. Estava em outros lugares do arquivo.

Havia muito material?
As peças documentais descritas no catálogo totalizavam 5.113, e as inéditas, a serem trabalhadas, 1.383. Primeiro, fixamos e redigimos os verbetes. Depois, eles foram impressos e recortados. Numa etapa seguinte do trabalho, que já era da alçada dos funcionários do Arquivo Ultramarino, esses verbetes foram presos aos respectivos documentos, para assim constarem na microfilmagem. Isso e a passagem dos fotogramas para CD-ROM foram atividades de grupos portugueses e brasileiros alheios à nossa equipe, que era encarregada apenas do trabalho científico propriamente dito.

Esse trabalho de descrição exige conhecimentos históricos, mas também preparo em paleografia, em muitos momentos. É possível descrever um pouco o processo de um trabalho dessa natureza e as suas diversas etapas?
A primeira parte é a leitura e análise dos documentos. Depois, vem o trabalho de síntese, aquele que conduz à elaboração de um verbete unitário de catálogo. O verbete, por sua natureza, precisa ser conciso. Mas não pode esconder informações necessárias à compreensão prévia do que a arquivística chama de estrutura e substância do documento. Este trabalho, sim, tem as suas exigências. Além da necessidade do conhecimento da história, há a necessidade de conhecimentos de diplomática.

O que é diplomática?
Trata-se da área das ciências documentárias que se ocupa não só da estrutura formal do documento e da sua natureza jurídica, mas que também analisa o seu contexto de produção. Seu raio de ação desenvolve-se entre a actio, isto é, a ação, o fato, o processo/procedimento jurídico-administrativo, e a conscriptio, isto é, a sua concretização, enquanto veículo documental, válido para produzir efeito jurídico. Só fazendo uso desses conhecimentos o documentalista, ao redigir o verbete descritivo, será capaz de estabelecer aquele elo suficiente e necessário entre o documento e o pesquisador.

Quantas pessoas se envolveram no trabalho de descrição dos documentos de São Paulo e quanto tempo levou esse trabalho?
Foram cinco os integrantes do Projeto Resgate a compor a equipe para São Paulo. Dois eram arquivistas do Arquivo do Estado de São Paulo, historiadores e bolsistas do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), Eliane Bisan Alves e José Roberto de Souza. Havia também uma historiadora, mestranda em História do Brasil da Universidade Clássica de Lisboa e bolsista da Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses de Portugal, a portuguesa Paula Gonçalves. Tínhamos ainda um historiador que já atuara em arquivos brasileiros e no trabalho do Projeto Resgate para outras capitanias, bolsista do CNPq e doutorando em Paleografia da Universidade Nova de Lisboa, Gilson Sérgio Matos Reis. Finalmente, eu, professora da pós-graduação em História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e do curso de Arquivística do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e, além disso, bolsista de pós-doutorado da FAPESP.

Quanto tempo levou o trabalho?
O ciclo completo do trato dos documentos foi de 14 meses. Teve lugar de junho de 1998 a agosto de 1999. O cronograma cumprido foi de cerca de três meses para as tarefas iniciais, oito meses para a elaboração dos verbetes e três meses para a revisão final, que incluía correção de texto, ajustes topográficos, equivalência de notações (chamadas de cotas, na terminologia arquivística portuguesa) e a substituição de unidades de arquivamento, as capilhas.

Há fatos e situações novas relatados nesses documentos? É possível descrever descobertas ou curiosidades neles reveladas?
O que o Projeto Resgate traz de novo é o que poderíamos chamar de um certo preenchimento, uma certa reintegração entre os cheios e os vazios no tecido esgarçado da história. Foi com essa expressão que alguém já adjetivou aquela construção que o historiador vai elaborando, ao amalgamar os dados obtidos nos documentos com a sua própria percepção e compreensão dos momentos estudados e a partir, mesmo, das outras ferramentas que fazem parte da sua formação profissional. No ponto de vista do Projeto Resgate, não interessa tanto dizer que ele traz à luz fatos ou situações antes não conhecidas, descobertas ou curiosidades, e sim afirmar que ele torna a história do Brasil colonial mais consistente, menos permeável, mais nítida em seus contornos e mais suscetível de ser entendida numa macrovisão de espaço, tempo e circunstâncias. Isso, a meu ver, é infinitamente mais importante.

Ainda há espaços não cobertos?
É preciso ter-se em mente que o Arquivo Histórico Ultramarino custodia os documentos produzidos, recebidos e acumulados pelo Conselho Ultramarino e pela Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, no exercício das suas funções, no período em que existiram. Não é um arquivo total da história do Brasil, mesmo porque isto não existe, os arquivos são sempre institucionais. Por exemplo, o Conselho Ultramarino só foi formado depois da restauração, depois que Portugal recuperou sua independência da Espanha. Além disso, ele não cobria todas as áreas das relações entre o Brasil e a administração de Lisboa. Nesse sentido, ali não estão, por exemplo, os atas das chancelarias, os atas dispositivos da Coroa, os registras das outras agências governamentais do governo central. Também não se encontram os atas da área judiciária, da área financeira e da área militar, mesmo quando dizem respeito às colônias. Estes documentos, em Portugal, acham-se nos arquivos nacionais da Torre do Tombo, no arquivo histórico do Tribunal de Contas e em vários outros arquivos.

O que há, então, nesse trabalho?
O que vamos encontrar no Arquivo Histórico Ultramarino é o pulsar administrativo, é o dia-a-dia da governação colonial. Isso porque o Conselho Ultramarino, além de estudar relatos, requerimentos e petições, faz análises e emite as consultas, que são pareceres elucidativos para as resoluções a serem baixadas pelo rei. Fazia isso, além de exercer outras funções administrativas que lhe foram delegadas, relativas ao manejo dos domínios ultramarinos. Percorrer a documentação que foi objeto do Projeto Resgate é flagrar, no seu real tempo e lugar, as atitudes e comportamentos dos provedores, ouvidores, governadores, vice-reis e capitães-generais, sargentos-mores, oficiais das câmaras municipais e, sobretudo, pessoas, sejam funcionários civis, militares ou eclesiásticos, sejam povo simplesmente. É acompanhá-los, nos relatórios formais, nas queixas e solicitações, nas intrigas e prestação de contas, nas obediências e desobediências ao governo metropolitano. Também é possível detectar, de forma inequívoca, as reações desse governo metropolitano, em suas mais variadas nuances, durante quase 200 anos.

Como historiadora, como a senhora avalia o Projeto Resgate e as possibilidades de estudo que se abrem para os historiadores brasileiros?
Como historiadora que, para sua tese de doutoramento, anos atrás, utilizou largamente a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino e ainda a vem utilizando, compreendo quanto o Projeto Resgate alarga as possibilidades da pesquisa no material existente nesse arquivo. Os novos dados agora revelados e a facilidade de acesso representada pelo suporte em microfilme e em CD-ROM complementam informações e respondem a indagações que, durante anos, haviam ficado sem resposta. Além disso, vai ser possível a pesquisa quase que simultânea em documentos das várias antigas capitanias brasileiras, o que era bastante complicado de ser feito no recinto do próprio arquivo, como é natural. Ora, isto facilita enormemente a confrontação de dados, em qualquer momento em que ela se fizer necessária.

Como a senhora vê a atual situação da historiografia brasileira?
A historiografia brasileira, durante muito tempo, de certo modo, deixou de lado a história colonial, isto é, a história luso-brasileira dos séculos 16 ao 19. Não sei se esta mudança ocorreu pela oportunidade de revisitação proporcionada pelas comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, ou se apareceu, nos últimos tempos, um esforço voltado para aquele período da nossa história. Havia um problema a mais. Os estudos de história colonial tinham ficado marcados pela sua inserção num tipo de historiografia tradicional, positivista, pouco científica e, num certo período, muito ligada, em suas publicações e em seus congressos e seminários, ao próprio salazarismo, o governo de tipo ditatorial que dominou Portugal da década de 1930 à de 1970. A atual “saúde”, se me for permitido usar essa expressão, que encontro na historiografia colonial, será sensivelmente beneficiada pelo Projeto Resgate.

Quais áreas ou temas serão mais beneficiados?
Abrem-se na área da história do Brasil possibilidades de pesquisa em campos antes pouco explorados. Posso citar o direito administrativo luso-brasileiro, as relações sociais entre os colonos e os funcionários vindos do reino, as disputas de jurisdição geopolítica entre sesmarias, comarcas, distritos, municípios, capitanias e governos gerais. Vamos poder também estudar melhor as lutas pelo poder entre as autoridades delegadas, sobretudo entre capitães-generais e ouvidores ou bispos, entre provedores e ouvidores, entre estes e os juízes de fora, etc., questões muito freqüentes na documentação do Projeto Resgate. E não serão só os historiadores os que vão ganhar mais recursos. Outras áreas do conhecimento também terão suas pesquisas facilitadas.

Com a colaboração de pesquisadores dos dois países?
Tudo isso poderá ser objeto de pesquisas conjuntas. Na área da diplomática histórica, que tão pouco tem sido alvo de estudos teóricos ou aplicados no Brasil, há todo um campo virgem a explorar. O estudo do funcionamento das instituições, sua base legal, os documentos que são produzidos, recebidos e acumulados no seu processo decisório não um exemplo. Os interessados poderiam analisar a estrutura formal de cada espécie ou tipo de documento, além de sua tramitação habitual ou homogênea, desde a gênese da conscriptio até a consecução final pretendida pela actio. Isso viria a enriquecer de maneira bastante ampla a pesquisa sobre a história.

Como assim?
No momento em que se torna senhor dos processos administrativos, que aprende como se originam, atuam e vigoram os atos normativos, comprobatórios e de informação, o historiador pode iluminar sua própria análise e fazer generalizações. Um dos integrantes da equipe de São Paulo do Projeto Resgate, Gilson Sérgio Matos Reis, está preparando seu doutorado, na Universidade Nova de Lisboa, justamente na área da diplomática, com uma tese sobre o funcionamento do Conselho Ultramarino, nos seus 70 anos iniciais. Ele analisa toda a legislação que comanda a empresa da colonização de Portugal, dos meados do século 17 aos inícios do 18. A tese vai levantar e descrever a trama de documentos entre a colônia e a metrópole, os contextos de produção, a tramitação e o arquivamento final dos documentos ascendentes (dos súditos para a Coroa) e dos documentos descendentes (da Coroa para os súditos).

O que podemos concluir?
Esses estudos revelarão, mais do que as hipóteses há muito levantadas pelos historiadores, que houve, seguramente, nas relações entre o Estado português e a colônia brasileira, uma governação legal, aparente, controlada e sobreposta. Mas nem por isso ela era mais poderosa do que uma outra, que funcionava nas entrelinhas, nos bastidores. Essa autoridade estava à margem dos textos. Mas podemos detectar sua presença até por esses mesmos textos. Contribuir para desvendar toda essa trama é o fascinante trabalho que está à espera dos usuários do Projeto Resgate.

Heloísa Liberalli Bellotto:  A professora Heloísa chefiou, em Lisboa, a equipe encarregada do resgate dos documentos do Arquivo Ultramarino relativos à Capitania de São Paulo. Ela é professora do curso de pós-graduação do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e do curso de especialização em Arquivística do Instituto de Estudos Brasileiros, da mesma universidade. Formou-se e obteve o doutorado em História na USP. Tem ainda o grau de bacharel em Biblioteconomia e fez cursos de especialização em Arquivística na França, Espanha e nos Estados Unidos.

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