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arquitetura

Pelo menor preço e espaço, a melhor casa

Estudo mostra como a arquitetura moderna brasileira articulou-se com o desenvolvimentismo

“Que se racionalizem os métodos de construção, de modo a se obter pelo menor preço, a melhor casa.” O lema do presidente Getúlio Vargas foi seguido à risca, mas com criatividade, pelos arquitetos dos primórdios do modernismo no Brasil. Como mostra a pesquisa Habitação Econômica e Arquitetura Moderna no Brasil, os projetos de habitação social no período de 1930 a 1964 buscavam aliar economia, prática e técnica à estética.

“Apesar de buscar racionalidade e economia, os projetos eram mais flexíveis que os atuais. Hoje há quitinetes de apenas 24m2, é o extremo da miniaturização”, explica a Maria Ruth Amaral de Sampaio, coordenadora-geral do projeto. “As plantas não apresentavam a solução padronizada e monótona das produções feitas pelo BNH/Cohabs das últimas décadas”, completa o arquiteto Nabil Bonduki.

O projeto, com apoio da FAPESP, reuniu pesquisadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e do Departamento de Arquitetura da Escola de Engenharia de São Carlos, USP, centrando-se em São Paulo, embora também tenham sido analisados exemplos no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Natal, Belém, Florianópolis e Brasília.

“O nascimento da habitação como uma questão social significou não só a formulação de uma nova proposta de arquitetura e urbanismo, mas de produção, com a incorporação dos pressupostos do movimento moderno que propunham a edificação em série, com padronização e pré-fabricação”, explica Maria Lucia Gitahy. O trabalho quis recuperar essa história, a planta e as origens dessas construções, analisá-las in loco, registrá-las, catalogá-las, conversar com os pioneiros desses projetos, estudar a legislação e a normatização dos materiais, identificar as origens da habitação social no que antecede à criação do Banco Nacional de Habitação (BNH).

Para abranger esses aspectos, os idealizadores, os professores Nabil e Maria Ruth, resolveram dividir o projeto em cinco frentes, cada qual com um coordenador: 1) Produção habitacional realizada pelo poder público, Dr. Nabil Bonduki (EESC); 2) Zonas laboratoriais das cidades novas, Carlos Roberto Monteiro de Andrade (EESC); 3) Promoção privada da habitação econômica, Maria Ruth Amaral de Sampaio (FAUUSP); 4) Construção civil habitacional, Paulo César Xavier Pereira e Maria Lucia Caira Gitahy (FAU/USP) e 5) Legislação habitacional, Sarah Feldman (EESC).

O projeto contou com jovens alunos, como Georgia Novis de Figueiredo, da FAU/USP, com 17 anos. “Foi importante verificar como a indústria de construção civil regrediu, tornando o trabalho mais segmentado. Hoje há o profissional que só sabe assentar tijolos, o outro, piso, etc. “Tal entusiasmo se estende a outros pesquisadores, como Adriano Bosetti, de 24 anos. Ele finaliza artigo sobre análises de edifícios do eixo da nova avenida 9 de Julho, exemplo da ânsia modernista da época: colocar abaixo vários quarteirões para reconstruí-los. “A abertura da avenida 9 de Julho propiciou um novo espaço para a verticalização, onde quase uma centena de edifícios foi erguida pela força dos empreendedores privados que se fizeram expressar em seus grandes edifícios de dezenas de apartamentos”, explica.

Público x privado
A produção pública e a privada acabam se relacionando. “O Estado não deu conta de atender a toda a demanda, mas tomou a dianteira e serviu de guia para a produção privada”, sintetiza Maria Ruth. A partir de 1930, a concepção keynesiana e a ascensão do fascismo e do socialismo criaram um clima favorável à intervenção do Estado na economia e no provimento da moradia aos trabalhadores. A questão assumiu papel fundamental nas realizações do Estado Novo, emergindo como aspecto preponderante das condições de vida do operariado.

A habitação aparece como fator decisivo para a criação do “homem novo”. A ordem era eliminar os cortiços, a insalubridade, e dar ares de metrópole a uma cidade com resquícios lusitanos. A atuação do Estado na produção direta de conjuntos habitacionais e no financiamento de moradias para trabalhadores deu-se por meio da criação de órgãos federais ou regionais de produção, como os Institutos de Aposentadoria e Pensões (1938), a Fundação da Casa Popular (1946) e o Departamento de Habitação Popular do Distrito Federal. “Esses órgãos atendiam famílias de baixa renda, mas não exclusivamente, já que, ligados a carteiras de aposentadoria, abrangiam diversas classes de trabalhadores, do peão de fábrica ao engenheiro”, ressalta Nabil.

Em 1942, num contexto em que 70% dos domicílios ainda eram alugados, o governo interfere no mercado de locação, congelando todos os aluguéis por meio da Lei do Inquilinato. “A lei acabou gerando uma redução das construções nesse período, pois mostrava aos proprietários e capitalistas a intenção de uma política de restrições”, completa Maria Ruth.

A ênfase na habitação social permanece durante o pós-guerra. O governo Dutra, por exemplo, sente a necessidade de se contrapor ao avanço do Partido Comunista do Brasil nos grandes centros, temendo que a insatisfação gerada pela crise de habitação e de abastecimento em geral pudesse causar perigosas rebeliões.”Os governos populistas trataram a questão da moradia mais como instrumento para assegurar apoio eleitoral aos partidos governistas do que como política pública”, analisa Nabil.

Nabil Bonduki conclui que a proliferação de órgãos públicos promotores de habitação social e a escassez de resultados gerou uma política miúda de clientela e uma visão pouco abrangente da questão habitacional. “Se os institutos mais entravaram do que contribuíram para a consolidação de uma política de habitação social, por outro lado, realizaram uma produção significativa,de grande valor arquitetônico e urbanístico, que introduziu tendências urbanísticas inovadoras.”

Influência européia
Mais do que estilo, o moderno aparece como causa para os arquitetos da época. Viu-se com freqüência na habitação social o caminho para modificar as condições de classe trabalhadora, introduzindo novos hábitos e um modo de vida “moderno”, capaz de romper o atraso do país. Para Lúcio Costa, a casa moderna seria o instrumento de libertação dos trabalhadores.

O ideal de casa moderna era um projeto com o máximo de aproveitamento de espaços úteis e o mínimo de gastos, maior aproveitamento do terreno, redução da área útil da habitação e conseqüente diminuição de unidade métrica das obras, tais como gastos com instalações de esgotos, água, entre outros. Era uma influência da arquitetura moderna européia de proposta utilitarista, segundo a avant-garde na Alemanha, França, Áustria, Suíça, Holanda e Bélgica. A forma deveria estar determinada por uma função interna e uma estrutura necessária, militava-se por uma Neue Wohnkultur , uma nova cultura do “morar”.

Esse repertório chega ao Brasil por meio de profissionais brasileiros que estudaram ou estagiaram no exterior – como Attílio Corrêa Lima e Carmen Portinho – diretamente pela passagem de arquitetos estrangeiros ou ainda de livros e revistas importadas. Corbusier, que esteve no Brasil nos anos 1929 e 1936, proferindo conferências e, na segunda viagem, para dar consultoria sobre os projetos do Ministério de Educação e da Cidade Universitária, seduziu profundamente os urbanistas da época. O raciocínio que seguia a lógica da articulação de muitas células foi um marco decisivo. “Em São Paulo, tiveram influência, além de Warchavchik e Le Corbusier, alguns arquitetos estrangeiros que vieram exercer a profissão, como Franz Heep e Rino Levi”, explica Maria Ruth.

A pesquisa aponta que, quanto aos materiais, não houve grande diferença entre as construções estatais e as privadas. Os blocos prensados de concreto foram usados em substituição aos tijolos de cerâmica e às placas compensadas e revestidas para divisões internas. “O maior uso do cimento era uma novidade para todos, as vantagens econômicas eram consideráveis”, explica Maria Lúcia. “Além da mudança visível de tipologia material, houve uma organização da empresa, a atividade da construção começava a assumir um caráter mais empresarial, surgindo num contexto de evolução dos profissionais liberais, dos engenheiros e arquitetos”, conta Paulo César.

“As habitações econômicas produzidas pela iniciativa privada investiram na verticalização, já as financiadas pelo poder público exploraram experiências com blocos de no máximo quatro ou cinco pavimentos, casas geminadas, sobrepostas ou isoladas. Mas a variedade das produções no período é muito grande, sendo impossível generalizar”, sintetiza Maria Ruth. Nesse contexto experimental, merece destaque o Pedregulho, imenso edifício serpenteante, no Rio de Janeiro, do arquiteto Affonso Eduardo Reidy, financiado pelo poder público.

Em Pedregulho, a exemplo da Gávea e Deodoro, concretizou-se a rua suspensa proposta por Le Corbusier, com acesso ao terceiro andar por uma ponte suspensa, aproveitando o desnível do terreno. Foram implantadas áreas comerciais, de serviços e recreação. “Pedregulho precisa ser situado no contexto de um ciclo de projetos habitacionais e não como uma obra de exceção, apesar de seu enorme significado ser indiscutível”, alerta Nabil. É o caso das unidades de habitação de Le Corbusier, que geraram um grupo expressivo de projetos habitacionais, sobretudo os destinados à classe média, com obras promovidas pela iniciativa privada. São exemplos os edifícios projetados por Niemeyer (Copan, JK, Montreal), Abelardo de Souza (Nações Unidas), Zarzur e Kogan (São Vito, Paim), entre outros.

O Copan (Companhia Pan Americana de Hotéis), obra de Niemeyer, foi um dos pioneiros nesse sentido, composto de quase 1.200 apartamentos de diferentes programas organizados em setores estanques. À moradia estavam associados hotel, serviços de lazer, comércio e área livre presente em um amplo terraço-jardim.

Inchaço populacional
Com o inchaço populacional, ao pobre, em geral, restavam os cortiços ou a construção de uma casa com as próprias mãos. As ações do Estado e da iniciativa privada não deram conta de atender à demanda, mesmo com a criação do BNH. Os números são taxativos: 100 milhões de pessoas passaram a viver na cidade nos últimos 60 anos no país. A saída para grande parte da população foi o auto-empreendimento, já que os trabalhadores só se tornavam proprietários depois de décadas de muito trabalho e poupança.

A partir dos anos 40, há uma tendência forte do crescimento da periferia. Intensificam-se os loteamentos periféricos e os assentamentos informais. Na ausência de uma ação mais efetiva do governo, a Lei do Inquilinato foi sucessivamente prorrogada com o argumento de que era preciso resolver o problema da habitação antes de se liberar os aluguéis. Crescem as favelas em São Paulo, os mocambos em Recife, os alagados em Salvador, num período de contradições. Enquanto os trabalhadores sofrem com a falta de moradia, cidades como São Paulo são renovadas por novas avenidas e “embelezadas” por arranha-céus.

O projeto da FAPESP conclui mostrando como o período de 1930 a 1964 foi modelar para a construção social no país, na medida em que a política habitacional do BNH, a partir de 1964, é voltada para o produtor e não para o usuário final. “Predominaram, salvo raríssimas exceções, projetos medíocres, uniformes, monótonos e desvinculados do meio físico e da cidade, uma intervenção urbanística muito inferior à dos IAPs”, sintetiza Nabil.

É difícil precisar o porquê de essas construções permanecerem, ainda hoje, como exemplos sociais no país. “Havia, sem dúvida, uma menor pressão do caráter financeiro, o que possibilitava um certo dinamismo e liberdade de criação. Era um enfrentamento muito mais com o capital comercial do que com o financeiro”, afirma Paulo César. Num momento em que se assiste hoje a um processo de liquidação da herança Vargas com a privatização do espaço urbano, a pesquisa serve como contraponto. “Talvez a maior contribuição deste trabalho seja o resgate de uma produção arquitetônica de grande qualidade e desaparecida na historiografia. E a formação de um novo tipo de documento, o depoimento desses pioneiros”, diz Paulo César.

Os resultados desse denso trabalho poderão ser vistos em breve com a publicação de uma série de artigos dos pesquisadores, livro destinado a entrevistas e perfis biográficos dos pioneiros dessa construção e também CD-ROM com a catalogação desses exemplos, no mínimo, “áureos” de habitação social no país.

PERFIL
Maria Ruth Amaral de Sampaio é graduada em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Fez curso de especialização na École Pratique de Hautes Etudes, Sorbonne. Doutorou-se na FAU-USP, onde defendeu tese de livre-docência e tornou-se professora titular. Foi presidente da Comissão de Pesquisa da FAU-USP e, desde 1998, é diretora da faculdade.

O Projeto
Habitação Econômica e Arquitetura Moderna no Brasil (1930-64)
Investimento
R$ 98.527,95

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