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Carlos Henrique de Brito Cruz

Em busca do equilíbrio no quadrante de Pasteur

Nos últimos anos, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) vem adotando uma nova estratégia. É a de dar uma atenção muito especial às questões de difusão do conhecimento e da aplicação do conhecimento, ao lado da preocupação já histórica, da qual não se afastou, com a geração do conhecimento. Essa estratégia é importante porque, na visão da FAPESP, um dos grandes desafios da ciência e tecnologia no Estado de São Paulo é o que se pode fazer para transformar o conhecimento gerado no Estado em mais riqueza, em mais desenvolvimento econômico e social.

Num discurso recente, o presidente do Banco Central dos Estados Unidos, Alan Greenspan, destacou os avanços tecnológicos dos últimos anos, que permitiram às indústrias do seu país operar com maior produtividade. O que ele destaca é a importância que vem tendo, para o desenvolvimento da economia dos Estados Unidos, o avanço da tecnologia e a capacidade de formar e educar pessoas. Esse avanço ocorre sem que seja esquecido o papel do Estado de garantir um ambiente no qual a inovação tecnológica seja algo desejável, possível e estimulado. Esse é o assunto que estamos discutindo neste Fórum. Nosso interesse é o de determinar o que poderemos fazer para que a inovação seja algo desejado, possível e estimulado no Estado de São Paulo, pois esperamos que isso nos traga desenvolvimento econômico e, juntamente com isso, o desenvolvimento social. A FAPESP tem dado contribuições importantes para esse objetivo.

A FAPESP começou a ser criada em 1947, quando, por iniciativa de um grupo de pesquisadores e professores do Estado de São Paulo, foi inserido um artigo na constituição estadual estabelecendo que o governo estadual propiciaria o amparo à pesquisa por meio de uma fundação e estabelecendo que ela teria direito a não menos de 0,5% da sua receita ordinária. O decreto que criou a FAPESP é de 1962, no governo de Carlos Alberto Carvalho Pinto.

Uma alteração na Constituição do Estado, em 1988, foi mais além. Estabeleceu o percentual da arrecadação destinado à FAPESP em 1% e teve uma redação muito mais de acordo com os tempos modernos. Essa redação não falava apenas da pesquisa científica. Falava de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico. Reconheceu a proximidade entre ciência e tecnologia. Ela admitiu o fato de que a tecnologia avança quando a ciência avança. Reconheceu que a tecnologia contribui para o avanço da ciência, e vice-versa.

A estrutura da Fundação compreende um Conselho Superior, composto de 12 membros. Cabe a esse órgão estabelecer estratégias e acompanhar os vários programas da Fundação. Seis de seus membros são indicados pelo governador do Estado de São Paulo e seis representam a comunidade envolvida com a pesquisa científica e tecnológica. Para executar as atribuições da Fundação, há três diretores, um diretor-presidente, um diretor científico e um diretor administrativo.

Cabe à diretoria científica selecionar os projetos que a FAPESP vai apoiar. Essa seleção é feita, invariavelmente, com base em pareceres obtidos de especialistas no campo envolvido. Esses especialistas não precisam necessariamente ser da área acadêmica. É um compromisso importantíssimo para a Fundação respeitar a opinião dessas pessoas. Reconhecemos que, eventualmente, podem ser cometidos erros. Mas a Fundação prefere errar com os pareceristas do que desmoralizar um sistema que tem trazido tantos acertos.

Desde 1962, a FAPESP desenvolve atividades que podem ser resumidas em apoio a bolsas de estudo e auxílios à pesquisa. Desde 1994, porém, ela vem criando novos programas. Esses novos programas visam à ampliação da base científica em São Paulo e à difusão e aplicação do conhecimento. Um desses programas tem como objetivo estabelecer uma infra-estrutura de pesquisa no Estado de São Paulo e atrair jovens pesquisadores, para que venham trabalhar em São Paulo e ajudem, assim, a descentralizar a atividade de pesquisa científica, levando seu trabalho a instituições com menos massa crítica que as tradicionais. Várias universidades novas e departamentos mais recentes usaram esses programas para criar linhas de pesquisa e trazer geradores de conhecimento para o Estado.

Há mais. Por exemplo, trabalhamos com a pesquisa aplicada ao ensino público e encorajamos parcerias entre universidades e escolas públicas para desenvolver atividades destinadas a melhorar, especialmente, o ensino das ciências e da matemática nas escolas do Estado. Estimulamos parcerias para o desenvolvimento tecnológico e para apoiar a pesquisa na pequena empresa. Não são só as pequenas empresas que se beneficiam desses programas, para aumentar sua produtividade. A FAPESP também apóia projetos de parceria entre as universidades e as grandes empresas.

O Programa Genoma é desenvolvido em parceria com iniciativas empresariais. O Fundecitrus foi e é um parceiro importante para o genoma da bactéria Xylella. O Instituto Ludwig, um organismo particular internacional, participa do genoma do câncer e a Copersucar do estudo do genoma da cana-de-açúcar. Há várias outras atividades, como um programa destinado a desenvolver políticas públicas que possam ser aplicadas em áreas como educação, saúde, emprego e segurança; o Biota, o estudo da biodiversidade no Estado; a compra de livros para as bibliotecas acadêmicas; e um programa, em parceria com a Capes, um organismo do governo federal, para a formação de professores de ciências e matemática.

A FAPESP pode realizar todas essas atividades porque o Estado de São Paulo apóia a Fundação. Os recursos vindos do Tesouro do Estado, 1% da receita tributária estadual, foram, em 1998, de R$ 192 milhões. A FAPESP conta, também, com uma receita patrimonial. Como poucas fundações brasileiras, a FAPESP estabeleceu um patrimônio. Desse patrimônio, formado por imóveis, ações e outros investimentos, a Fundação recebe outros R$ 190 milhões por ano. Ou seja, com o patrimônio que estabeleceu, a FAPESP dobra o investimento que o Estado de São Paulo pode fazer em ciência e tecnologia.

Diante do valor dos investimentos feitos pela FAPESP no Estado, de cerca de R$ 300 milhões por ano, cria-se, às vezes, a falsa impressão de que a ciência e a tecnologia de São Paulo podem funcionar apenas com os recursos da Fundação. Trata-se de um equívoco de grandes proporções. Os recursos da FAPESP representam uma quantia considerável. Mas são inferiores, por exemplo, aos investimentos feitos no Estado pelas agências federais, como o CNPq e o Capes. Elas aplicam em São Paulo, especialmente em bolsas de estudo para pós-graduação, cerca de R$ 400 milhões por ano.

O total aplicado pela FAPESP não representa a maior parte dos investimentos feitos no Estado de São Paulo. Mas sua parte é importantíssima, pois a FAPESP tem recursos para apoiar projetos. O custeio de projetos, os investimentos, a compra de equipamentos e material de consumo fazem uma enorme diferença. Até recentemente, as agências federais não tinham essa disponibilidade, a de apoiar outras atividades a não ser dar bolsas de estudo para pós-graduação, bolsas de estudo para pesquisas.

A maior fatia dos investimentos da FAPESP é na área de ciências da saúde. Em segundo lugar, vem a área de engenharia e, em terceiro, a de ciências biológicas. Essa hierarquia mudou bastante nos últimos anos. A área de engenharia teve um desenvolvimento muito importante, em função da qualificação das atividades de pesquisa nesse setor. Essa área foi, assim, se posicionando de forma a obter cada vez mais recursos por meio do sistema seletivo de mérito adotado pela FAPESP. Isso é algo muito positivo para a capacidade de o Estado gerar inovação. A pesquisa na área da engenharia está muito próxima da pesquisa que vai gerar inovação de forma mais rápida. E, obviamente, é muito positivo para nós, da Fundação.

De qualquer maneira, estamos muito satisfeitos pelo fato de a maior parcela dos investimentos estar na área das ciências da saúde. Não só se trata de uma área importantíssima socialmente, mas de uma área na qual o Estado de São Paulo tem uma enorme capacitação para gerar conhecimento e gerar inovação.

Nos seus primeiros 30 anos, a FAPESP se aperfeiçoou em fazer de maneira excelente o auxílio à pesquisa e às bolsas de estudos numa área mais acadêmica. De 1990 para cá, porém, primeiro lentamente, depois muito rapidamente, dirigiu-se a várias outras áreas também importantíssimas para o Estado, por meio da criação de tantos programas, muitos deles relacionados justamente com a questão da difusão e aplicação do conhecimento.

Existe um assunto que aparece com freqüência nos debates sobre os investimentos nessa área. É a questão de se deve investir mais em pesquisa básica ou na pesquisa aplicada ou tecnologia. Há um argumento que fundamenta em parte a ação da FAPESP, o de que essa divisão de pesquisa em básica e aplicada é um equívoco. É tão equivocada como aquela divisão antiga, quando se falava em “pesquisa pura”, o que transformava automaticamente todas as outras pesquisas em “impuras”.

Essa classificação leva à idéia de que a pesquisa básica não pode ter aplicação e a pesquisa aplicada não pode ser fundamental. Trata-se de um equívoco gravíssimo do ponto de vista do conhecimento. O problema está em grande parte nessa classificação de natureza unidimensional, onde se quer achar que, quanto mais básico, menos aplicável, e vice-versa.

Por isso, gostei muito de uma classificação que aprendi recentemente, num livro chamado O Quadrante de Pasteur. Nele, o autor usou dois eixos, não apenas um, para classificar as atividades de pesquisa. Um eixo, o vertical, associaria o projeto de pesquisa à sua relevância como gerador de conhecimento fundamental, aquele que leva a ciência a obter muito mais conhecimentos depois dele. O outro eixo, o horizontal, é a sua relevância em termos de aplicações, econômicas ou sociais, imediatas.

A partir daí, podemos dividir o plano em quatro quadrantes. Em baixo, fica uma área que o autor chamou de quadrante de Thomas Edison. É um quadrante de alta relevância para aplicações e pouca relevância para o conhecimento fundamental. Os trabalhos de Edison foram importantíssimos para o desenvolvimento da tecnologia. Mas, do ponto de vista do conhecimento fundamental, sua contribuição foi pequena. São atividades importantíssimas, mas, geralmente, muito mais realizáveis no âmbito empresarial do que no âmbito acadêmico, em especial porque a aplicação está próxima, logo ali.

Do outro lado, fica o quadrante de Niels Bohr. Poderia ser chamado também de quadrante de Albert Einstein. É o quadrante dos projetos de pesquisa feitos com o objetivo de avançar o conhecimento e só isso. É fato, também, que esse avanço do conhecimento humano pode gerar mais tarde aplicações capazes de revolucionar as vidas de todos nós. Mas esse não é o objetivo imediato.

Mas, talvez, o mais fascinante de todos seja o quadrante de Louis Pasteur. Nele cabe a pesquisa que ao mesmo tempo faz avançar o conhecimento humano, a ponto de ser fundamental, e tem aplicações e relevância econômica e social imediatas. Nós, da FAPESP, achamos especialmente fascinantes os assuntos que podem entrar no quadrante de Pasteur. A Fundação acredita que esse quadrante é um lugar no qual o papel do Estado, como estimulador da pesquisa, deve ser muito importante.

É claro que a FAPESP continua a se interessar, como sempre se interessou, pelo quadrante de Bohr. E também se interessa, progressivamente, cada vez mais pelo quadrante de Edison. Mas conserva a idéia de que, nesse quadrante de Edison, é melhor fazer as coisas em parceria com as empresas, pois, se estamos falando numa aplicação, é preciso existir um aplicador. Então, as parcerias com as empresas são importantíssimas.

Mas, sobre o último quadrante, existe uma frase da qual gosto muito, de autoria do próprio Pasteur. Ele dizia que não existe ciência aplicada, mas sim aplicações da ciência. O estudo das aplicações da ciência é muito fácil para qualquer um capaz de dominar o saber e a teoria. Esse é o grande desafio que se abre diante do Estado de São Paulo. Ao mesmo tempo em que desenvolve a capacidade de olhar para o abstrato e o geral, para o saber e para a teoria, como dizia Pasteur, ele também deve olhar para as aplicações que trarão, para o Estado, o desenvolvimento econômico e social.

O professor Carlos Henrique de Brito Cruz é presidente do Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) desde setembro de 1996. É também diretor do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nascido no Rio de Janeiro e criado em São Paulo, formou-se em Engenharia Eletrônica, em 1978, pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), de São José dos Campos. Fez mestrado e doutorado na Unicamp, onde começou a lecionar em 1982 e é titular da área de Eletrônica Quântica. Foi diretor do Instituto de Física e pró-reitor de Pesquisa da Unicamp. Sua principal área de interesse na pesquisa é o estudo dos fenômenos ultra-rápidos, os eventos que acontecem em menos de 1 psicossegundo, e sua aplicação ao estudo dos materiais, especialmente na área de telecomunicações. Faz suas pesquisas no Grupo de Fenômenos Ultra-Rápidos e Comunicações Ópticas do Departamento de Eletrônica Quântica do Instituto de Física da Unicamp. Depois da graduação, passou nove meses em Roma, trabalhando na Universitá degli Studi, e, entre março de 1986 e agosto de 1987, foi pesquisador residente nos Laboratórios Bell, da ATeT, em Holmdel, New Jersey. Publicou mais de 50 trabalhos em revistas especializadas e recebeu 1.240 citações na literatura internacional, entre 1980 e 1993.

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