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GENÔMICA

Orestes decifra drosófila

Grupo de Ribeirão Preto descobre 91 genes do inseto-modelo graças à técnica brasileira

Inseto mais comum nos laboratórios do mundo, a drosófila ou mosca-das-frutas – Drosophila melanogaster, observada comumente em volta de bananas maduras – acaba de passar por uma releitura. Em outubro do ano passado, uma equipe da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), de Ribeirão Preto, concluiu uma pesquisa que descobriu 91 genes novos do inseto e gerou seqüências que contribuem para a definição do transcriptoma – conjunto de todos os ácidos ribonucléicos (RNAs) de um organismo, que formam seu código genético. Com isso, abriu caminho para análises mais precisas de como os genes agem e se relacionam na drosófila.

Estudado há cerca de 90 anos, o inseto de no máximo meio centímetro de comprimento tem sido usado na busca do entendimento das doenças e disfunções humanas e está na base da evolução da genética: foi adotado como modelo em laboratório por ter cromossomos grandes, facilmente visíveis ao microscópio, e reproduzir-se com relativa rapidez – de dez a 12 dias.

Pesquisa global
A pesquisa da equipe da USP foi motivada pela publicação da primeira versão da seqüência do genoma – o conjunto dos genes – da drosófila, com resultados da leitura de cerca de 120 milhões de pares de base da molécula de ácido desoxirribonucléico – o DNA, portador do código genético em cada célula. Anunciado em março de 2000, o seqüenciamento do genoma de drosófila resultou de uma megaoperação, envolvendo o grupo do Projeto Genoma de Drosophila de Berkeley (BDGP), da Universidade da Califórnia, e a empresa americana Celera Genomics.

Espera-se que a seqüência finalizada dos genes, com 180 milhões de bases, seja liberada neste ano.No entanto, em organismos complexos, a leitura da seqüência genômica por si só não permite a identificação correta de todos os genes. Nesses organismos, partes do DNA que constitui o gene são retiradas durante a formação do RNA mensageiro – a molécula que carrega a informação para ser traduzida em formação de proteína. Daí a necessidade de obter as seqüências presentes nos RNAs. Para isso, o grupo californiano BDGP usa a técnica de ESTs (Expressed Sequence Tags ou etiquetas de seqüências expressas), que resulta em leituras das pontas dos RNAs, mensageiros.

A equipe brasileira de 15 pesquisadores, contudo – por sugestão da diretoria científica da FAPESP, que financiou a pesquisa -, empregou uma técnica nova em estudos dessa natureza: a Open Reading Expressed Sequence Tags (etiquetas da fase aberta de leitura de seqüências expressas), conhecida pela sigla Orestes. Criada no Brasil e utilizada na pesquisa do Genoma Humano do Câncer, também financiada pela FAPESP em parceria com o Instituto Ludwig de São Paulo, essa técnica foi desenvolvida por pesquisadores desse instituto, que a repassaram à USP de Ribeirão.

A técnica Orestes difere da metodologia clássica no estudo da drosófila porque não prioriza a leitura das extremidades, mas das partes centrais das seqüências dos RNA mensageiros – onde tendem a concentrar-se as informações do código genético que são traduzidas em proteínas.

Caminho valioso
Maria Luísa Paçó-Larson, coordenadora do estudo da USP, aponta outra diferença: o método brasileiro é um valioso caminho para a detecção das moléculas de RNAs mensageiros pouco abundantes e por isso difíceis de clonar por técnicas usuais. Assim, a pesquisa comprovou a validade da técnica: “Constatamos que o método Orestes pode gerar informações novas sobre seqüências expressas e que complementam as obtidas com os métodos convencionais”, diz Maria Luísa. Em tempo recorde, de abril a setembro, a equipe obteve e analisou 10.092 leituras de seqüências Orestes de drosófila. “Contando com a colaboração dos pesquisadores do Instituto Ludwig e do Hemocentro de Ribeirão Preto, nossa equipe foi responsável pela execução de todo o processo: extrair RNAs, gerar perfis, clonar, produzir e analisar as seqüências”, diz a pesquisadora.

As análises da equipe validaram 91 genes novos. Com base na similaridade com proteínas de outros organismos, metade desses genes foi anotada como codificadores de proteínas de diversas funções – regulatória, enzimática e estrutural, por exemplo. Também foram identificadas outras 113 seqüências, derivadas de regiões não classificadas como genes com base na análise da seqüência genômica. “Detectamos fragmentos de genes não caracterizados e também seqüências para as quais não existia nenhuma EST, um material absolutamente novo em termos de seqüência expressa da drosófila”, revela Maria Luísa. Ou seja: abriu-se o caminho para a formulação de análises mais precisas quanto ao papel desses novos genes no organismo.

Estudo acelerado
Existem cerca de 90 mil ESTs de Drosophila, segundo os relatórios do BDGP. “Esses ESTs contribuíram para identificar cerca de 40% dos genes previstos pela análise da seqüência genômica liberada no relatório de março de 2000 do BDGP”, diz ela. Para identificar os outros 60% de genes, o BDGP iniciou um novo projeto para gerar 200 mil ESTs, a um ritmo de 4 mil por mês.Para Maria Luísa, é possível acelerar essa marcha sem perder qualidade. “Com base nos dados obtidos nesse experimento piloto, achamos que o método Orestes pode complementar os dados gerados pelos outros projetos”, afirma. Baseada na experiência adquirida no Genoma Humano do Câncer, ela calcula que se podem fazer cerca de 10 mil Orestes por mês com um seqüenciador capilar – uma espécie de carro de luxo último tipo dos equipamentos de laboratório.

Sem levar em conta a abordagem, é clara a importância do seqüenciamento do genoma da drosófila: por analogia, pretende-se conhecer melhor o genoma humano. Dos 280 genes humanos associados a doenças ou malformações, 177 já foram encontrados nos cromossomos do inseto. São os chamados genes ortólogos – com semelhanças que podem ser funcionais e, por isso, permitir uma abordagem mais precisa de fenômenos genéticos.

Muitas mutações
Há outras questões abertas. Há um século os estudiosos da mosca-das-frutas procuram entender como um organismo com genoma relativamente limitado – só quatro pares de cromossomos -pode acionar mecanismos sutis e variados de resposta ao ambiente. Nos anos 50, o geneticista Crodowaldo Pavan descobriu variações locais e sazonais de insetos em 35 localidades de 17 regiões brasileiras – havia uma acentuada variação na concentração de indivíduos, mesmo em lugares próximos. Como regra geral, o ambiente pode variar pouco, mas as drosófilas variam muito – uma das razões pelas quais se tornaram modelo em estudos de biologia evolutiva. A leitura do genoma traz ferramentas valiosas para esses estudos.

Em outubro, o BDGP liberou a segunda versão da seqüência genômica, com seqüências novas e a correção de 330 dos gaps ou lacunas deixados. E, segundo o relatório mais recente do grupo de Berkeley, provavelmente em meados do ano estará disponível a versão final da seqüência do genoma. Maria Luísa acredita que, com esse material, se poderá fazer a listagem mais correta dos genes previstos. Fecham-se assim as lentes sobre o material genético da mosca-das-frutas e crescem as expectativas. “No momento em que tivermos todos os RNAs, poderemos gerar filtros com todas as seqüências e analisá-las em uma drosófila com malformação para tentar entender o processo que a tornou defeituosa”, exemplifica Ricardo Gelerman Pinheiro Ramos, um dos biólogos do projeto desenvolvido em Ribeirão Preto.

De tirar o fôlego
A importância da conclusão do seqüenciamento vai bem além da genética. O pesquisador inglês Jonathan Hodgkin assinalou recentemente na revista Nature que hoje o mundo tem um consistente banco de dados genômicos, “algo de tirar o fôlego”, com dados suficientes para ocupar os biólogos pelas próximas décadas: “Nada parecido aconteceu antes na história da ciência, nem deve acontecer outra vez”.

No início de novembro, quando a equipe de Ribeirão Preto finalizava o artigo com os resultados do seu estudo, pesquisadores da Universidade Yale avaliavam a possibilidade de o texto ser publicado num periódico científico internacional. Maria Luísa afirma que as seqüências brasileiras serão depositadas no maior banco de dados aberto ao público, mantido pelo Instituto Nacional do Câncer (NCBI) dos Estados Unidos.

Enquanto aguarda as respostas, Maria Luísa esboça outro projeto com o objetivo de gerar e analisar cerca de 200 mil seqüências expressas do genoma da drosófila, o equivalente a 20 vezes o volume de material explorado até agora. “Não sabemos se um dia vai estar inteiramente compreendido o genoma de um organismo complexo como a Drosophila. Mas, dada a sua importância como modelo experimental, todo avanço nesse sentido é relevante.”

O PROJETO
Projeto Piloto do Método Orestes (Open Reading Frame Expressed Sequence Tags) em Drosophila melanogaster
Modalidade
Subprojeto do Projeto Genoma Humano do Câncer
Coordenadora
Maria Luísa Paçó-Larson – USP de Ribeirão Preto
Investimento
US$ 37.500,00

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