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Tecnologia

Uma mudança de conceito com bases tecnológicas

Programa modernizou as principais bibliotecas do Estado

O Programa de Infra-Estrutura da FAPESP fez muito mais do que permitir a renovação das principais bibliotecas do Estado. Ele chegou num momento em que está ocorrendo uma verdadeira revolução no conceito de como deve funcionar uma biblioteca pública. “Está havendo uma mudança fundamental na filosofia de o que é uma biblioteca”, diz Rosaly Favero Krzyzanowski, que, como coordenadora das bibliotecas da Universidade de São Paulo (USP), acompanhou boa parte dessas mudanças e hoje, aposentada, trabalha como coordenadora operacional do Programa Biblioteca Eletrônica (ProBE) da FAPESP. Sem o apoio e os investimentos da Fundação, dificilmente as bibliotecas públicas do Estado teriam como acompanhar essas modificações.

Essa revolução, em grande parte, tem bases na tecnologia. Por exemplo, os arquivos deslizantes permitem que muito mais documentos sejam guardados num espaço muito menor. Houve avanços consideráveis nas técnicas e processos para a restauração e conservação de livros e outros documentos antigos. As redes de computadores, muitas vezes operando por meio de fibras ópticas, abriram novas perspectivas para as consultas. Hoje, o usuário pode entrar na rede de uma biblioteca de seu próprio laboratório ou mesmo de sua casa e obter a informação de que precisa de onde estiver. No caso de publicações e documentos antigos, isso diminui o manuseio e, conseqüentemente, ajuda a conservar a obra.

Há outras vantagens. Com a formação da rede e a padronização dos recursos, uma universidade pode agora centralizar a aquisição de livros e revistas. Ou seja, em vez de comprar um exemplar para cada uma de suas bibliotecas, pode obter um exemplar, colocar a publicação na rede e, assim, torná-la acessível a todos. A administração, incluindo aí os setores de empréstimo e circulação, também é facilitada. “Eliminamos muitas etapas de trabalho desnecessárias”, conta a coordenadora do sistema de bibliotecas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Maria Alice Rebello Nascimento. Com um único sistema, ela registra a compra de um livro, faz a catalogação com os dados já digitalizados, quando ele chega, e, depois, controla os empréstimos em todas as 19 bibliotecas do sistema.

Extensão
Isso é extremamente útil para sistemas que funcionam em mais de uma cidade. A Unicamp, por exemplo, além de 17 bibliotecas em Campinas, tem mais duas unidades, em Limeira e em Piracicaba. Mas, em extensão, nada se compara ao sistema da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que cobre o Estado de uma ponta à outra. A Unesp tem bibliotecas em nada menos de 16 cidades – Araçatuba, Araraquara, Assis, Bauru, Botucatu, Franca, Guaratinguetá, Ilha Solteira, Jaboticabal, Marília, Presidente Prudente, Rio Claro, São José dos Campos, São José do Rio Preto, São Paulo e São Vicente. O acervo sobe a mais de 800 mil itens. Estar longe, porém, não significa estardistante do conhecimento. Todas essas bibliotecas têm acesso a bases de dados eletrônicas, como a Athena, a ERL, o ProBE e a Web of Science.Surge, assim, um problema agradável, mas um problema. Há dados demais circulando pela rede e o usuário, nem sempre, tem tempo para caçar aquilo do que precisa em longas buscas na Internet. Surge, então, um dos novos papéis do bibliotecário, o de poupar etapas e indicar caminhos para os veios mais ricos de dados. “O perfil do bibliotecário mudou”, afirma Rosaly. “Sua principal função, agora, é a de trabalhar com o pesquisador na busca da informação”, diz.

Ou seja, o bibliotecário agora é um profissional que está disposto – e tem competência – para participar ativamente de uma pesquisa, indicando ao interessado os locais onde sua busca vai ser mais frutífera. Para isso, faz cursos constantes de atualização, algo que as reformas feitas com os investimentos da FAPESP não esqueceram de criar. Um ponto positivo é que a esmagadora maioria dos funcionários das bibliotecas renovadas, mesmo os mais veteranos, aceitou e aderiu com entusiasmo à nova situação. Foram raros os casos de não adaptação.

Manual-padrão
“As próprias salas em que são dados os cursos se tornaram viáveis com os investimentos da Fapesp”, lembra Rosaly. Não se trata de enormes instalações. Identificado o problema, são formados os chamados agentes multiplicadores, que fazem um curso e recebem um manual-padrão pronto a servir de base para a fase seguinte. “Esse é o treinamento das bibliotecárias de referência, as bibliotecárias de frente, que trabalham com o usuário”, diz a professora. Elas organizam programas de treinamento dentro de suas unidades. Há casos em que são dados cursos também para os usuários. Esses cursos, quase sempre, servem para mostrar a melhor maneira de usar as bases de dados.

As necessidades de formação também não esquecem o pessoal auxiliar. A instalação dos portões de controle eletrônico de saída de material, por exemplo, levantou a necessidade de o pessoal do balcão aprender a trabalhar com as etiquetas de códigos de barra. Mesmo a técnica de pegar e recolocar os livros nas estantes é alvo de cursos para os funcionários. Eles precisam aprender a pegar um livro pelo meio da lombada, não pelo alto, para conservar melhor a encadernação; a deixar espaços entre os livros, para melhorar o arejamento e impedir que as capas colem; e a manejar a espátula, o pincel especial com o qual os documentos são limpos, para evitar que o pó fique preso nos livros e revistas.

Esses cuidados simples convivem com equipamentos de alta tecnologia. A onda de renovação e os recursos tornados disponíveis pelo Programa de Infra-Estrutura levaram às principais bibliotecas de São Paulo máquinas que parecem ter saído de projetos espaciais. Numa delas, o livro é colocado numa mesa especial, com um armário transparente, e limpo com uma espécie de aspirador de pó, manejado por luvas que penetram no seu interior. Tem impacto importante também ensinar aos funcionários tarefas que antes eram feitas fora do local. Vários deles, por exemplo, fazem pequenos trabalhos de restauração em livros e outros documentos, o que poupa tempo e dinheiro para a biblioteca.

Informática
“Um bom bibliotecário tem que ser também um pesquisador”, declara a coordenadora Maria Alice, da Unicamp. A adaptação às mudanças na rotina de trabalho exigiu e continua a exigir grande empenho dos profissionais. Na Unicamp, todos os funcionários das bibliotecas participam, com freqüência, de cursos e workshops. A universidade montou também programas de treinamento para os usuários e, com esse objetivo, criou um laboratório de informática especial. Não foi só isso. “O trabalho desenvolvido hoje pelo bibliotecário requer uma interação mais ativa”, declara Maria Alice. “Antes, ele simplesmente preparava o material, colocava na estante e esperava o público aparecer. Hoje, ele tem que tomar decisões, muitas delas sobre assuntos complexos.”

Ela cita um exemplo. Muitas vezes, cabe ao bibliotecário a palavra decisiva sobre a aquisição de um pacote de publicações. Não é uma escolha fácil. Ele deve levar em conta, por exemplo, se o material é importante para as linhas de pesquisa desenvolvidas pela universidade e pensar no seu custo/benefício, não só no valor da aquisição. “Para realizar um bom trabalho, o bibliotecário hoje precisa saber como estão a ciência e a tecnologia no país”, diz Maria Alice. “Ele precisa dominar a política, para estar em consonância com esse contexto”, acrescenta.

Atualização
Nada mudou mais a biblioteca do que a automação, diz Maria Alice. Mas a mudança exigiu muito mais que o domínio das ferramentas da informática. “Além de conhecer e saber usar as ferramentas à sua disposição, o bibliotecário foi obrigado a ampliar sua visão”, afirma a coordenadora. Ele não lida mais apenas com seu acervo, fisicamente disponível na biblioteca, mas com um universo muito mais amplo, o espalhado pela rede. O papel do bibliotecário inclui o de saber indicar o melhor para o usuário dentro desse universo. Isso não é possível sem uma constante atualização, sem saber o que há de novo na rede, o que, por sua vez, exige muita pesquisa.

As mudanças também trouxeram novas necessidades, entre elas a de melhorar a requalificação dos profissionais que já atuam na área e a formação de novos funcionários. “O mercado hoje carece de profissionais mais qualificados, especialmente dentro das universidades, que são o núcleo do desenvolvimento científico do país”, diz Maria Alice. Isso não se aplica apenas a questões de curto prazo. “Estamos lidando com um universo novo e há dificuldades de várias ordens”, ela prossegue. “Elas vão desde as novas técnicas operacionais na área de informática até uma melhor compreensão da política tecnológica do país e como a biblioteca se insere nesse contexto.”

A informatização também ampliou os contatos para a troca de documentos com bibliotecas do exterior. Maria Cristina Olaio Villela, diretora técnica da biblioteca da Escola Politécnica da USP, conta que seu organismo participa, por meio de um convênio com a Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, de um consórcio chamado Istec (Ibero-American Science and Technology Education Consortium). Outro convênio a liga à British Library, considerada um modelo de eficiência, pois atende qualquer pedido em menos de 24 horas.

Métodos diferentes
Formada na década de 1960, Maria Cristina confirma que houve uma revolução na sua área. “Quase tudo o que aprendi durante minha formação está ultrapassado”, ela diz. “Os processos de catalogação e classificação de obras ainda são os mesmos, mas a forma de disponibilizar o acervo aos usuários é completamente diferente”, acrescenta.

A assistente técnica da Coordenaria Geral de Bibliotecas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Margarida Ferreira, formou-se em 1983 e aprendeu por iniciativa própria tudo o que sabe sobre informática. Mesmo assim, para ajudar os funcionários a trabalhar com os novos programas, traduziu para o português o manual de formato de registro eletrônico da Biblioteca do Congresso, o Marc 21. Esse formato, adotado pelas principais bibliotecas do mundo, padronizou a linguagem dos catálogos eletrônicos. A tradução foi publicada pela própria Unesp e está sendo adotada em outros lugares.

“O universo da biblioteca cresceu e isso exige uma mudança de postura”, afirma Margarida. Seu trabalho a faz manter contato com os funcionários de todas as bibliotecas da Unesp, espalhadas pelo Estado. “O ritmo acelerado do desenvolvimento da informática faz com que todos os dias apareça uma novidade, algo a ser superado”, ela conta. “Alguns ainda não conseguiram compreender que essa agitação faz parte da nova dinâmica da profissão. Às vezes, me perguntam: quando tudo vai voltar ao normal? Mas a profissão mudou, e isso não tem volta.”

Número limitado
O importante é que essas mudanças estão ao alcance de todos, pelo menos no Estado. Uma queixa freqüente, de pesquisadores de fora do Estado de São Paulo, é a de que muitas vezes são instalados em suas bibliotecas equipamentos monousuários, que funcionam com CD-ROMs, ou pequenas redes nas quais os CD-ROMs são instalados ou gravados num computador principal e seus dados ficam disponíveis apenas em um número limitado de micros. Isso, além de obrigar o pesquisador a ir à biblioteca para consultar as informações, cria outro problema: o usuário precisa agendar previamente sua visita, para ter certeza de que poderá acessar os dados no momento em que chegar ao local.

Nas reformas feitas em São Paulo, o material está disponível inclusive para os alunos de graduação. “O aluno, dentro da universidade, acessa tudo o que está disponível”, diz a professora Rosaly. Há a firme intenção de acostumar o estudante desde o início a fazer pesquisas na Internet, inclusive para seus trabalhos de curso. “Nossa intenção é a de que o aluno se torne um pesquisador”, ela diz. Rosaly afirma que, no início, havia uma preocupação com a possibilidade de que os alunos de graduação usassem mal o acesso à Internet e, inclusive, foram tomadas medidas para controlar seus passeios pela rede.

Hoje, essa preocupação praticamente desapareceu. “A conscientização dos alunos de graduação está muito boa”, afirma a professora. “Sentimos que seu trabalho está cada vez mais consciente.” Quanto à pós-graduação, nunca houve grandes problemas. “A pós-graduação é um dos grandes drenadores de todos os produtos da nova biblioteca”, ela diz. “O aluno precisa produzir suas monografias e, como futuro pesquisador, procura trabalhar de maneira eficiente em suas buscas e pesquisas”, acrescenta. Quanto aos pesquisadores, há alguns que ainda preferem ir à biblioteca para trabalhar. Mas a maioria somou o acesso on-line ao seu dia-a-dia e busca informações dos micros instalados em seus próprios laboratórios.

Entre os projetos para o futuro, está a digitalização das teses diretamente na rede. O mestrando ou doutorando iria preparando seu material na rede e, no momento em que sua tese fosse aprovada pela banca examinadora, o texto ficaria imediatamente disponível na Internet. As indicações gerais para a realização do trabalho estariam disponíveis on-line e informações mais detalhadas, se necessário, poderiam ser obtidas na biblioteca. Haveria um cuidado especial para otimizar a participação dos orientadores.

Padronização
A preocupação com as teses se explica. Elas estão colocadas entre os documentos mais importantes das bibliotecas universitárias e sua digitalização está entre as prioridades dos novos programas, agora que as necessidades mais urgentes foram atendidas. Esse trabalho envolve, também, uma nova filosofia. “Essa noção envolve uma padronização que é uma nova atitude das bibliotecas”, explica Rosaly. Antes, uma revista era apenas um documento a mais, que podia ser consultado. Hoje, ela se transformou na origem de textos completos, que servem como fontes de informação e são colocados de maneira independente na rede.

Para chegar a isso, foi necessária uma mudança total nos métodos de trabalho e na cabeça das pessoas. “Passou-se de um mundo mais fechado, dentro da unidade, para a visualização de um contexto maior, de padrão internacional”, diz Rosaly. O padrão internacional não é exagero. As reformas das bibliotecas, arquivos e museus de São Paulo estão inspirando não só outras instituições brasileiras, mas também organismos da Argentina, do Uruguai e da Venezuela. E são aprovadas mesmo nas altas esferas mundiais. O sistema de catalogação adotado pela USP, por exemplo, não é reconhecido só no Brasil. Ele é oficialmente aceito pela própria Biblioteca do Congresso de Washington, uma das mais importantes instituições da área no mundo.

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