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Ecologia

Amazônia digitalizada

A partir de imagens de satélite, surge um retrato completo e detalhado de todo o território amazônico - e, logo, de todo o país

EMBRAPA - CNPMMapa-síntese de 228 imagens do satélite Landsat: definição de até 30 metrosEMBRAPA - CNPM

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) conseguiu fazer com que os mais de 5 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia Legal caibam em nove CDs. Ao juntar imagens fornecidas pelo satélite Landsat, a Embrapa Monitoramento por Satélite, de Campinas, montou a fotografia completa, mais atual e com a maior definição já feita do território amazônico nacional: 30 a 90 metros por pixel (ponto), entre 11 e 16 vezes mais detalhada que as anteriores. Cada pixel do mosaico, de emendas invisíveis, corresponde a 30 ou 60 metros – exceto nos territórios do Amazonas e do Pará, onde equivale a 90 metros. Até então, o retrato de satélite da Amazônia de maior definição tinha pixels equivalentes a 1 quilômetro.

Por fornecer dados apurados sobre recursos naturais e impactos ambientais das atividades rurais e urbanas, o mosaico facilita o zoneamento ecológico e econômico da região, instrumento decisivo para planejar e racionalizar a ocupação, de modo a minimizar danos ambientais. Com as imagens também se identificam, por exemplo, novas áreas com potencial para o ecoturismo: é o caso da região de Barcelos, Amazonas, no norte do rio Negro. Elas ajudam a identificar áreas com potencial ou restrições para uso agrícola, sobretudo nos Estados de Mato Grosso, Tocantins e Maranhão.

O mosaico forneceu ainda uma visão inédita da magnitude das florestas de bambus gigantes do Acre e do Amazonas, presentes em solos influenciados no passado pela atividade vulcânica dos Andes. A comparação das novas imagens com as anteriores mostra ainda a dimensão e a rapidez da savanização da floresta pelo uso excessivo do fogo em áreas de Cerrado. Isso é particularmente visível no norte do Pará, onde o Cerrado, ao longo de toda a sua borda de centenas de quilômetros, avança dezenas de metros por ano.

A Embrapa também está na fase final do retrato por satélite do Nordeste, que deverá jogar muita luz na discussão sobre os impactos da eventual transposição do Rio São Francisco, sobre a conveniência de expansão da irrigação, os impactos da seca e a intensidade do desmatamento da Caatinga. Até o fim do ano, a empresa pretende concluir o retrato de todos os Estados.

Menos focos
O ecólogo Evaristo Eduardo de Miranda, gerente de pesquisa da Embrapa Monitoramento por Satélite e responsável pelo projeto, conta que a idéia de produzir o mosaico de imagens de satélite é antiga, mas só se tornou viável há dois anos, com o financiamento do Programa de Infra-Estrutura da FAPESP para a modernização das redes de computadores da empresa. “Não tínhamos capacidade para analisar, selecionar e processar tantas imagens, com tantos detalhes”, lembra. O empurrão final foi dado pelo aumento das queimadas. “O Ministério da Agricultura entendeu que multas e leis não bastavam: era preciso oferecer alternativas tecnológicas aos agricultores para substituírem as queimadas em diversas situações”, revela o pesquisador.

Com as informações de dez anos de monitoramento de queimadas por satélite, a Embrapa chamou a atenção do ministério para o fato de 75% do problema concentrar-se em quatro Estados: Mato Grosso, Tocantins, Pará e Maranhão. “Propusemos identificar os municípios onde o problema era mais grave e concentrar neles a campanha para aproveitar melhor os recursos”. Isso exigia mosaicos de imagens de satélite com um nível de detalhe muito maior que os disponíveis.

No início de 2000, o ministério financiou a compra das imagens, que passaram a ser processadas. Em um mês e meio, o trabalho estava pronto. Mostrava não só onde se concentrava o problema, mas o tipo de uso do solo feito em cada área, o que ajudou a levar tecnologias alternativas adequadas a cada caso. Impressionado, o ministro decidiu financiar a compra das imagens do restante da Amazônia e depois de todo o país. O resultado foi que, depois de anos de crescimento ininterrupto das queimadas, pela primeira vez no ano passado, o número de focos registrados no país caiu. A redução média foi de 24,5% nos Estados onde o governo promoveu a campanha direcionada pelo satélite e de só 8,6% nos demais.

Internet e CDs
Além de orientar campanhas oficiais de combate às queimadas, o mosaico da Amazônia é um instrumento poderoso para que organizações não-governamentais monitorem os impactos ambientais. Muitas imagens já são usadas por estudantes de segundo grau, pois parte do material foi disponibilizada em junho pela Internet (www.cdbrasil.cnpm.embrapa.br). Mais de 90% das 228 imagens que compõem o mosaico são de 1999 e 2000. Só foi aproveitado material mais antigo quando as imagens atuais tinham qualidade inferior ou muitas nuvens. “Fizemos um retrato fiel da Amazônia na virada do milênio e o colocamos ao alcance do público em geral: nunca ninguém viu o conjunto da região toda com essa riqueza de detalhes”, diz Miranda.

O material também está disponível em nove CD-ROMs, um para cada Estado amazônico, a R$ 40,00 cada. Os CDs podem ser adquiridos no site da Embrapa citado acima ou pelo telefone (019)3252-5977. E, a pedido, a Embrapa disponibiliza gratuitamente os CDs para instituições brasileiras de pesquisa. Também há cópias de uma grande fotografia de alta definição da Amazônia, com quase 3 metros de extensão.Os CDs oferecem quatro zooms sucessivos sobre o mapa geral de cada Estado, chegando a uma proximidade que corresponde mais ou menos ao que se vê de helicóptero em condições de poucas nuvens.

É possível distinguir rios, praias fluviais, estradas, cidades, montanhas, pastagens, áreas queimadas e desmatadas, culturas agrícolas diversas, bem como as paisagens naturais da região – florestas alta e baixa, várzea, mangue, cerrados, lavrados e até as florestas de bambus. Os CDs também oferecem orientação básica para o usuário interpretar as imagens.

O projeto confirmou certos estudos e trouxe surpresas, como a intensidade da urbanização e a grande extensão do uso de queimadas em áreas indígenas. Chamou atenção especial a reserva dos tiriós, na fronteira com o Suriname, onde a faixa queimada tem mais de 100 quilômetros de largura. Muitas tribos usam o fogo há milhares de anos para caçar ou preparar terras para plantio.

Cidades desmatam
Ao cruzar as informações de seu mosaico com as do satélite do programa DMSP (Defense Meteorological Satellite Program), que fornece imagens noturnas do planeta, a Embrapa mapeou mais de 1.300 cidades, vilas e povoados amazônicos que dispõem de eletricidade – a estimativa oficial era de que fossem menos de mil.

O trabalho confirmou que hoje são as cidades que comandam o desmatamento: a maioria das áreas desmatadas concentra-se num raio de 30 quilômetros em torno das zonas urbanas. “Hoje é principalmente o investimento urbano no campo que está desmatando e não tanto as grandes fazendas ou o pequeno agricultor tradicional”, diz Miranda. “Descobrimos, por exemplo, que uma cidade praticamente desconhecida como Itaituba, um fim de linha da Transamazônica, no Pará, tem um entorno muito mais desmatado que Manaus. Falta investigar por quê.”

O mosaico mostra até mesmo a intensidade da contaminação causada pelas fundições de gusa na região da cidade de Açailândia, no Maranhão: a fuligem impregnada nas ruas e nos telhados transformou a cidade numa mancha roxa escura. Mesmo pequenas áreas de garimpo podem ser localizadas. Isso porque o satélite registra em tons bem distintos as águas barrentas (azul claro) e as translúcidas (negro). Como o garimpo revolve a margem do rio, cria uma mancha bem visível. “Na origem dessas manchas, quase sempre vemos uma área desmatada”, conta o pesquisador.

O trabalho evidencia a ocupação ilegal, especialmente em Rondônia. Aqui, a pista não é a cor, mas a forma. Segundo Miranda, numa área de pequenas propriedades – identificada por manchas geométricas na beira de estradas -, uma entrada estreita que acaba numa grande área desmatada é indício certo de ocupação ilegal e devastadora. Também se pode observar quão invadidas ou cercadas por fazendas estão as áreas indígenas no Pará, Mato Grosso e Tocantins.

Alternativas à queimada
De positivo, confirmou-se o aumento de produtividade nas culturas de grãos e de algodão no sul do Maranhão e no Mato Grosso: embora a área plantada não tenha aumentado, a produção agrícola não parou de crescer nos últimos anos, como revelam as imagens. Acredita-se que as imagens podem ser úteis até no combate ao gafanhoto – praga no Mato Grosso -, pois permitem localizar e qualificar o tipo de hábitat onde ele se reproduz, para direcionar o monitoramento da espécie em função das condições climáticas, com o objetivo de agir ao primeiro indício de superpopulação.

Quanto às alternativas à queimada, é preciso identificar primeiro o que se pretende com ela. Nas regiões de pastagem, como Mato Grosso, sul do Pará e Ilha do Bananal, no Tocantins -, a queimada costuma servir para combater o carrapato ou eliminar a palha do solo, para que o pasto germine mais cedo. Contra o carrapato, basta deixar a pastagem sem gado por dois ou três meses. E, para garantir alimentação ao gado, recomenda-se armazenar pasto no fim do verão para o uso no inverno. A propósito,os pesquisadores lembram que, sem queimada, a produtividade do pasto aumenta.

Na agricultura, a queimada elimina restos da última safra a fim de facilitar um novo plantio. No caso, a alternativa depende do tamanho da propriedade – o que se pode avaliar nas imagens orbitais. De qualquer modo, há equipamentos, manuais ou motorizados, que permitem o plantio na presença da palha ou a incorporação dela ao solo.

Impulso à pesquisa
O retrato amazônico nos CDs deve baratear e acelerar projetos de monitoramento de impacto ambiental. Alejandro Dorado, doutor em gestão ambiental pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), exemplifica: “Para fazer minha tese, tive de comprar 28 imagens de satélite ao preço de R$ 1.000 cada e passar meses selecionando e montando os trechos com menos nuvens. Agora, tudo isso já está pronto nos CDs”. Como as imagens correspondem exatamente às cartas (mapas) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e podem ser facilmente impressas em papel ou transparências, os CDs permitem que qualquer geógrafo atualize essas cartas.

Mesmo em pesquisas que transcorrem há anos, as imagens permitem saltos qualitativos. É o caso do estudo do impacto ambiental da colonização em Machadinho do Oeste, norte de Rondônia, numa área de 5 mil quilômetros quadrados com 10 mil colonos. A pesquisa acompanha 500 propriedades rurais há 16 anos, a partir de 250 variáveis de meio ambiente, atividade econômica e indicadores sociais. Classificadas as propriedades conforme sua situação nessas três áreas, foram selecionadas 36 com bom desempenho em todas e fez-se um estudo sobre os padrões de exploração adotados.

Observou-se a diversificação espacial do uso da terra em cada propriedade, proporção entre culturas perenes e anuais e associação de pecuária com agricultura. “Com as imagens de satélite mais detalhadas podemos agora observar cada propriedade e obter muito mais informações. Hoje temos uma das mais completas bases de dados sobre impacto ambiental e sustentabilidade da agricultura na Amazônia.”

Zoneamento estadual
Com as imagens, a Embrapa ajuda o Maranhão a fazer zoneamento econômico e ecológico: assim, identificados problemas e vocações de cada área, pode-se traçar uma política de desenvolvimento sustentável. Já se revelou a dimensão do desmatamento da faixa oeste às margens da ferrovia de Carajás, a invasão por madeireiras de reservas indígenas e unidades de conservação – como a Reserva do Gurupi – e a modernização das culturas de soja e algodão no sul maranhense. “As informações fornecidas pelas imagens, já disponíveis na Internet (www.ma.gov.br), são analisadas junto com as comunidades de cada região maranhense para buscar os melhores caminhos para conciliar desenvolvimento e preservação”, diz Miranda.

Cores e Timor Leste
O aumento da capacidade de processamento de imagens da Embrapa gera subprodutos. Ao tratá-las no computador, pode-se obter informações mais detalhadas (15 metros) e abrangentes (registro da luz em sete faixas visíveis e invisíveis ao olho humano). Isso porque o computador distingue 256 tons de cinza, enquanto o olho humano só diferencia cerca de 13. “Identificando a qual desses tons corresponde a água contaminada por sedimentos, por exemplo, podemos pedir ao computador para colorir artificialmente esses pontos, de forma que nos permita enxergar poluiçõesque na realidade são invisíveis a olho nu. Isso já se faz com o despejo de esgoto doméstico em rios e lagos”, diz Miranda.

Outro subproduto foi um presente. Durante o dramático processo de independência do Timor Leste, a Embrapa decidiu dar ao país seu retrato tirado do espaço: www.cnpm.embrapa.br/projetos/timor/index.html. Comovido ao ver a imagem em papel fotográfico de quase 3 metros de extensão, um líder timorense disse: “Há 20 anos luto pelo meu país, mas é a primeira vez que o vejo inteiro”. O pôster registra exatamente um dos dias do grande massacre promovido pelas milícias pró-Indonésia. Incêndios, fumaça e destruições são perfeitamente visíveis. “Acabamos produzindo um documento histórico da independência do Timor”, comemora o pesquisador.

O Projeto
Expansão da Rede Local da Embrapa Monitoramento por Satélite (nº 96/10284-9); Modalidade Programa de Infra-Estrutura; Coordenador Evaristo Eduardo de Miranda – Embrapa Monitoramento por Satélite; Investimento R$ 115.320,00

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