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Bioquímica

Remédios do mar

Pesquisa de recursos marinhos encontra substâncias antitumorais em esponjas e tunicados do litoral

ARQUIVO JOSÉ CARLOS FREITASAscídia Didemnum granulatum: substâncias contra tumoresARQUIVO JOSÉ CARLOS FREITAS

Segundo país com a maior costa contínua no mundo, o Brasil tem um litoral que se estende por cerca de 8 mil quilômetros e só perde para o da Austrália. É uma posição privilegiada para a exploração racional de recursos marinhos, o que inclui a obtenção de substâncias com potencial de uso em sistemas biológicos, como as que foram pesquisadas num projeto temático sobre recursos renováveis do litoral paulista.

Pesquisadores de várias instituições, que se concentraram no estudo de poríferos (esponjas) e tunicados, descobriram num desses seres vivos duas substâncias com potencial farmacológico inédito em tumores, para as quais já se fez pedido de patente. Encontradas no organismo de um tunicado – a ascídia Didemnum granulatum -, as substâncias granulatimida e isogranulatimida são apenas dois dos compostos inéditos que foram isolados e identificados.

Novas espécies
Antes do estudo, havia só 34 espécies de esponjas identificadas na área. Coletas que os pesquisadores fizeram no canal e na costa da ilha de São Sebastião aumentaram esse número para mais de 140 espécies – quase metade das cerca de 300 já registradas na costa brasileira. Das esponjas retiradas numa faixa de cerca de 50 quilômetros de extensão, no perímetro do canal, dez eram inéditas para a ciência – entre elas a Aplysina caissara, também com potencial antitumoral.

Para coletar e estudar esponjas e tunicados, o biólogo e taxonomista Eduardo Carlos Meduna Hadju mergulhou mais de 200 vezes na costa de Ilhabela. Por quase dois anos, ele praticamente morou em São Sebastião. Hadju, que é pesquisador do Museu Nacional da Universidade do Brasil e no início do projeto estava vinculado à Universidade de São Paulo (USP), recebia duas ou três vezes por ano a visita de Roberto Gomes de Souza Berlinck, um pós-doutorado em química de animais marinhos da USP de São Carlos. Com Hadju, que havia levantado a distribuição das espécies na região, Berlinck selecionou os animais coletadospara a extração de substâncias e enviou os extratos para o laboratório do biólogo José Carlos de Freitas, coordenador do projeto, para testes farmacológicos.

Patente contra câncer
Os extratos das substâncias coletadas são feitos de modo muito simples. O animal é posto no álcool – etanol ou metanol – e as substâncias que contém se dissolvem nesse meio. Depois que o álcool evapora, o extrato é submetido a um teste farmacológico preliminar realizado pela equipe de Freitas, que dirige o Centro de Biologia Marinha (Cebimar) da USP. Durante estágio no exterior, Berlinck também submeteu 40 extratos a um teste novo, que acabara de ser desenvolvido no Canadá. Alguns extratos se revelaram ativos e o que mostrou melhor desempenho – ou seja, maior atividade na menor concentração – foi justamente o retirado da ascídia Didemnum granulatum encontrada no litoral de São Paulo e Paraná.

Junto com Raymond J. Andersen, da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, Berlinck descobriu a granulatimida e a isogranulatimida, substâncias com potencial farmacológico inédito em tumores. Em março de 1998, a universidade canadense fez em nome de ambos um pedido de patente dessas substâncias, o que está sob avaliação.

O teste farmacológico foi feito em células humanas de câncer de mama e detectou, basicamente, a interferência das substâncias na organização do DNA (ácido desoxirribonucléico, portador do código genético) durante o processo da divisão celular. Nesse processo, as substâncias inibem o chamado ponto de checagem G2. As células fazem duas paradas para verificar a integridade do material genético. A primeira parada, ou ponto de checagem G1, acontece logo depois da divisão celular, para verificar se o material genético não foi danificado no processo. Então a célula tem um certo tempo de vida, que nos mamíferos é de 24 horas, antes de se dividir novamente.

Nesse período, cada célula faz nova verificação bioquímica, o ponto de checagem G2. “Cerca de 50% das células de tumores sólidos”, explica Berlinck, “não têm o ponto de checagem G1 ativo e esse é um dos motivos pelos quais elas são, digamos, anormais. Se você inibe o ponto de checagem G2 – como fazem a granulatimida e a isogranulatimida -, começa uma alta mortalidade de células durante a divisão, porque o DNA já está muito danificado e não serve mais para manter a célula viva”. Os pesquisadores associaram radioterapia às novas substâncias, para inibir totalmente o funcionamento do DNA e garantir a morte das células. A dose de radiação foi baixa e o resultado mostrou a ação seletiva da granulatimida e da isogranulatimida.

Infecção hospitalar
Entre os compostos inéditos isolados durante as pesquisas estão quatro alcalóides – haliclonaciclamina E, arenosclerina A, B e C – obtidos na esponja Arenosclera brasiliensis, que só existe no Brasil. Esses compostos mostraram atividade citotóxica e antibiótica contra microrganismos resistentes a antibióticos – os que causam infecções hospitalares. Noutra esponja, a Aplysina caissara, que também só existe aqui, a equipe detectou grande quantidade do alcalóide aeroplisinina-1, também com potencial de ação antitumoral. Nos anos 60, pesquisadores italianos já haviam encontrado noutra esponja a mesma substância, que hoje passa por testes clínicos em seres humanos. Caso os resultados sejam positivos, o Brasil poderia fazer maricultura da Aplysina caissara e se tornar fornecedor desse alcalóide.

Para o coordenador Freitas, quanto mais se conhece a biodiversidade marinha, maior a probabilidade da descoberta de substâncias com potencial farmacológico, porque a diversidade química está diretamente ligada à biológica. Poríferos e tunicados, em especial, são fontes potenciais de compostos bioativos. O pesquisador acentua que “esses grupos também têm importância estrutural em diversos ecossistemas e são uma das prioridades globais no estudo da biodiversidade marinha”.

Presença no AZT
Muitas substâncias já foram isoladas em todo o mundo na pesquisa com organismos marinhos, mas poucas estão em testes clínicos. Todo o processo, da descoberta de uma substância até sua chegada ao mercado exige, cerca de 15 anos, entre estudos, testes e aprovação de patente. No entanto, derivados sintéticos da espongouridina e da espongotimidina, substâncias isoladas de esponjas nos anos 50, foram para o mercado como antileucêmico e antiviral e serviram de modelo para o desenvolvimento do AZT, remédio básico no tratamento da Aids.

Em tese, qualquer substância pode ser sintetizada, mas a síntese pode demorar muito tempo, enquanto num organismo cultivado e manejado a biossíntese é bem rápida. “Por isso”, acentua Freitas, “há necessidade da interação dos químicos com os biólogos marinhos, conhecedores dos ciclos de vida detalhados dos animais e do meio ambiente adequado para a sua criação”.

Busca e monitoramento
O coordenador ressalta que a pesquisa com substâncias do mar tem duas facetas: “Uma é fazer um rastreamento bioquímico de produtos naturais, para verificar atividades biológicas e identificar moléculas ainda desconhecidas da ciência, até com bioatividades também inéditas”. “A outra linha”, prossegue, “é o monitoramento dos efeitos de moléculas já conhecidas, no ambiente e na saúde das pessoas”. Freitas, que também é pesquisador do Centro de Toxinologia Aplicada – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) qualificados pela FAPESP -, tem, por exemplo, um aluno encarregado de monitorar a presença de toxinas no pescado e nos frutos do mar consumidos por caiçaras e turistas no litoral de São Sebastião.

Uma das substâncias nocivas é a tetrodotoxina, que foi identificada na década de 50, existe em qualquer mar e é encontrada em peixes, algas, tunicados e outros organismos marinhos. A tetrodotoxina já matou muitas pessoas no Japão, mas hoje, graças ao monitoramento, isso é raro. No litoral brasileiro, um peixe rico em tetrodotoxina é o baiacu-rouba-isca ou baiacu-pintado (Sphoeroides spengleri), odiado pelos pescadores tanto por roubar a isca do anzol como por sua toxicidade: ingerir 50 gramas dele é uma sentença de morte. Por experiência e tradição, os caiçaras sabem que esse peixe não deve ser consumido, ao contrário do baiacu, de maior porte, cujos filés são encontrados nas peixarias.

Também o fenômeno ambiental da maré vermelha pode levar toxinas direta ou indiretamente ao ser humano. Trazida pela proliferação de um dos pequenos organismos do plâncton marinho – ora um, ora outro -, às vezes a maré vermelha é causada por uma espécie tóxica. Organismos filtradores, como mexilhões e tunicados, acabam por concentrar a toxina – o que causa problemas, como diarréias, em quem os ingere.

A maioria das marés vermelhas acontece com a proliferação de alguma alga microscópica, mas também podem ser provocadas por animais: no litoral paulista, já houve uma causada pelo protozoário ciliado Mesodinium rubrum e outra pelo tunicado Weelia cilindrica. Freitas, que nasceu em São Sebastião e é filho de pescador, pretende prosseguir com essas pesquisas. Há muitas outros outros estudos em desenvolvimento na USP para investigar novas substâncias, encontradas em algas, anêmonas e outros organismos marinhos. Para esse tipo de pesquisa, é crucial o trabalho dos taxonomistas como Hadju, que criou, com verba do projeto, a página Porifera Brasil (www.geocities.com/labpor), além de um CD-ROM em versão demo, que identificam esponjas do canal de São Sebastião.

Esponjas e tunicados, organismos filtradores

Conhecidos como esponjas, os poríferos são os animais pluricelulares mais primitivos que existem. Surgiram há mais de 1 bilhão de anos e, embora habitem quase todos os ambientes aquáticos, predominam no mar. Animais filtradores, têm a estrutura do corpo porosa, daí o nome Porifera dado ao seu filo – uma das divisões da taxonomia ou ciência da classificação dos seres vivos. As esponjas habitam águas rasas ou profundas e fixam-se na areia, no lodo ou sobre as rochas. A grande variação de formato e cores faz com que às vezes sejam confundidas com algas ou outros organismos. Seu tamanho vai de alguns milímetros até mais de 1 metro de altura, em algumas espécies. As colônias que formam podem recobrir vários metros do substrato aquático.

Algumas, como as do gênero Spongia, encontrado no México e no Japão, têm o corpo sustentado por fibras de espongina – proteína semelhante ao colágeno – dispostas de tal modo que as tornam apropriadas ao uso como esponja de banho. Outros grupos de esponjas não são macios: têm o esqueleto formado por espículas de sílica ou carbonato de cálcio e também há casos em que o esqueleto é de calcário maciço.

O biólogo Eduardo Hadju explica que as esponjas retiram os nutrientes necessários à sua sobrevivência de partículas orgânicas transportadas pelas correntes aquáticas. Essas partículas circulam no organismo por um sistema de canais exclusivo – o sistema aqüífero. O pesquisador trabalha na revisão taxonômica de uma subordem de esponjas da classe Demospongiae, grupo muito abundante e pouco investigado do litoral brasileiro.

Ascídias
Já os tunicados, em geral não têm nomes populares, com exceções como a piúra, que no Chile é coletada para consumo humano. São invertebrados marinhos revestidos por uma espécie de túnica, formada por tunicina, substância semelhante à celulose, e compõem o subfilo Tunicata ou Urochordata. Trata-se de um grupo primitivo do filo Chordata em que a distinção típica dos cordados – o tubo nervoso dorsal – só está presente na fase de larva. Na escala evolutiva, os tunicados estão mais próximos dos vertebrados, que também são um subfilo dos cordados.

Entre os tunicados, o projeto dedicou-se principalmente ao grupo das ascídias, encontradas em todo o mundo, desde a zona entre-marés até profundidades de mais de 8 mil metros, solitárias ou agrupadas em colônias. Elas também se alimentam por filtração da água e a maioria vive presa a rochas, cascos de embarcações e conchas, ou ancorada na areia ou no lodo. Quem procura ascídias pode encontrar desde uma pequena mancha em cima de uma rocha até um animal com 10 centímetros de altura e dois sifões visíveis: um que traz água para dentro do corpo, com alimento e oxigênio, e o outro que leva a água para fora junto com produtos de excreção e gás carbônico.

O Projeto
Recursos Marinhos Renováveis do Litoral Paulista. Biodiversidade de Porifera (Demospongiae) e Chordata (Tunicata) – Taxonomia, Química e Farmacologia (nº 96/04316-5); Modalidade Projeto temático; Coordenador José Carlos de Freitas – Instituto de Biociências e Centro de Biologia Marinha (Cebimar) da USP; Investimento R$ 600.000,00

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