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Saúde Pública

Menos mortes pelo ar

Grupo internacional mostra benefícios da queda da poluição atmosférica na saúde pública de quatro grandes metrópoles

A mera redução de 10% na concentração de dois poluentes – material particulado (fumaça preta) e ozônio -, por tecnologias alternativas já disponíveis à queima de combustíveis fósseis, seria suficiente para evitar, em quatro grandes cidades das Américas, 64 mil mortes prematuras, 65 mil casos de bronquite crônica e 37 milhões de faltas ao trabalho nos próximos 20 anos – o que de quebra traria grande redução de gastos e benefícios para a economia em geral.

O alerta, desta vez, não é de ecologistas. São epidemiologistas dos Estados Unidos, Chile, México e Brasil que chamam a atenção para a necessidade de se conter o aquecimento global e suas desastrosas conseqüências, provocados pela emissão dos gases do efeito estufa. Ao estudar os efeitos da poluição sobre a saúde das populações de Nova York, Cidade do México, Santiago do Chile e São Paulo, os pesquisadores mostraram que a redução das emissões dos gases do efeito estufa, como prevê o Protocolo de Kyoto, traria benefícios imediatos à saúde pública.

O objetivo deles – que desenvolveram estimativas quantitativas a partir de trabalhos publicados – foi levantar argumentos que ajudem a resolver o atual impasse nas discussões sobre o Protocolo de Kyoto. A empreitada reuniu Luis Cifuentes, da Pontificia Universidad Católica de Chile, em Santiago; Victor H. Borja-Aburto, da Secretaria da Saúde da Cidade do México; George Thurston, da New York University School of Medicine, Nova York; Devra Le Davis, da Carnegie Mellon University em Pittsburgh, Estados Unidos; e Nelson da Cruz Gouveia, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP).

Para cumprir a meta de Kyoto, os países signatários têm prazo até 2008-2012 para reduzir em pelo menos 5% suas emissões poluentes em relação ao volume lançado em 1990. Isso pode implicar mudanças nos padrões de crescimento econômico em termos de queima de combustíveis. Contudo, praticamente todos os países aderiram, com exceção dos Estados Unidos, que, embora isolados nessa posição, podem comprometer os objetivos do acordo internacional. “Os Estados Unidos sozinhos respondem por cerca de um quarto das emissões de todo o planeta”, lembra Gouveia. Divulgada em artigo que o grupo publicou na revista Science de 17 de agosto, a pesquisa mostra que, se os Estados Unidos reduzissem suas emissões na proporção combinada no Protocolo, poderiam evitar, de imediato, 18.700 mortes e 3 milhões de faltas ao trabalho por ano.

Embora estudo e projeções – para o período 2001-2020 – se baseiem só em dados das quatro metrópoles, o debate foi ampliado com dados de outros países e estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), que prevêem 8 milhões de mortes ligadas à poluição até 2020. No final – e contrariando a teoria dos que pretendem desqualificar os efeitos da redução de emissões, como demorados, caros demais e reduzidos – afirmam categoricamente que a adoção gradativa de tecnologias de produção de energia limpa traria benefícios imediatos a cerca de 3 bilhões de habitantes de centros urbanos. “Se os países adotassem hoje medidas disponíveis de combate à poluição, como melhorar o transporte público, usar combustíveis mais limpos e adotar tecnologias para reduzir a emissão veicular, eles passariam imediatamente a salvar vidas e a prevenir um grande número de doenças limitantes, que têm sérias implicações socioeconômicas.”

Veículos culpados
Os principais poluentes atmosféricos são material particulado (composto de poeira e partículas inaláveis resultantes da queima de combustíveis), monóxido de carbono (CO), dióxido de enxofre (SO2), dióxido de nitrogênio (NO2) e ozônio (O3), que na alta atmosfera protege a Terra dos raios ultravioleta, mas na baixa atmosfera é extremamente prejudicial ao homem, aos animais e às plantas. Em São Paulo, onde circulam 30% da frota nacional, como nas demais metrópoles, os maiores responsáveis pela poluição são os veículos automotores. “Eles despejam na cidade 98% do monóxido de carbono, cerca de 60% do material particulado e algo em torno de 50% a 90% dos outros poluentes”, revela Gouveia.

A qualidade do ar paulistano já foi pior. Na década de 80, o nível médio de material particulado girava em torno de 75 mg/m3 (microgramas por metro cúbico), bem acima dos 50 mg/m3 tidos como limite aceitável pela OMS. Com a introdução dos veículos a álcool, menos poluidores, e a adição do álcool anidro à gasolina como antidetonante, no lugar do tóxico chumbo tetraetila, a média anual de material particulado caiu – oscila entre 50 e 60 mg/m3 -, apesar do aumento da frota. Para a melhora contribuiu a resolução federal de 1986 que criou o Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), impondo limites cada vez menores de emissão de poluentes para veículos novos. Hoje, segundo a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), os automóveis poluem 90% menos que nos anos 80.

Ainda assim, São Paulo é uma das metrópoles mais poluídas: pesquisa do Imperial College de Londres lhe dá o quinto lugar numa lista encabeçada pelo Cairo (Egito), seguido por Xangai (China), Cidade do México e Karachi (Paquistão). Em melhor situação estão Nova York, no 11º lugar, e Londres, no 12º, provavelmente graças à boa infra-estrutura de transporte coletivo – sobretudo metrô.

Rodízio inútil
Sob pena de multa, de 1996 a 1998 o paulistano foi proibido pelo governo estadual de usar o carro um dia por semana durante o inverno, conforme o algarismo final da placa. Enquanto o atual rodízio municipal busca reduzir congestionamentos, o estadual pretendia diminuir a poluição. “Mesmo retirando das ruas a cada dia 20% da frota de veículos leves, a medida não surtiu o efeito esperado”, diz Gouveia. Ele comparou os índices de poluição de agosto nos três anos de rodízio com o dos três anos anteriores. A poluição de fato baixou cerca de 17%, mas não necessariamente devido ao rodízio. Segundo esse estudo, a redução resultou, em boa parte, de uma conjunção de fatores ambientais – temperatura, umidade do ar, chuvas e ventos que contribuíram para a dispersão dos poluentes.

Para Gouveia, o rodízio fracassou por ter deixado de fora os maiores poluidores, cerca de 400 mil veículos a diesel que despejam 12,4 mil toneladas de material particulado por ano na região metropolitana. A experiência também não deu muito certo na Cidade do México e em Santiago do Chile. “Quanto mais tempo dura o rodízio, menos efeito ele tem”, diz. Mas não se descarta a restrição em casos de crise aguda, como ocorre em Paris e outras cidades européias. “Ainda assim, como medida isolada, traz poucos benefícios.”

Crianças e idosos
Gouveia concluiu um projeto em que avalia os efeitos nas faixas etárias mais afetadas – crianças e idosos – e os resultados do rodízio estadual, comparando a evolução dos índices dos principais poluentes com as internações hospitalares de crianças até 5 anos e idosos acima de 64 anos entre 1996 e 1998. O cruzamento das medições das 12 estações de monitoramento do ar da Cetesb com os registros das internações hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS) mostrou, por exemplo, que os maiores índices de internações e de poluição coincidiram com o inverno. Baixas temperaturas já favorecem o aumento de quadros agudos e óbitos por doenças respiratórias, o que a poluição só agrava.

Houve aumento de internações de idosos por doenças circulatórias relacionado a altos níveis de monóxido de carbono, que diminui a oxigenação do sangue e pode ser mortal em ambiente fechado. Em crianças e idosos, as internações por doenças respiratórias foram associadas a monóxido de carbono, partículas inaláveis e dióxido de enxofre. “Em geral, nos dias mais poluídos, o número de internações por doenças respiratórias cresce cerca de 10% e a mortalidade geral aumenta entre 4% e 6%”. Entre os picos de poluição e internação, pode haver uma defasagem de até três dias, “talvez o tempo necessário para a poluição exercer seu efeito deletério”.

Outra conclusão: os idosos são mais afetados. Exceto as partículas inaláveis, os poluentes tiveram efeitos duas vezes maiores em idosos para internações por doenças respiratórias do que em crianças. Como essas doenças estão entre as que mais matam no país – se as cardiovasculares são as que mais matam idosos, as respiratórias vêm em terceiro lugar para eles e em primeiro para as crianças -, os dados podem ajudar na formulação de políticas de saúde.

Risco de retrocesso
Pode-se aproveitar boas experiências do exterior. “Mas medidas isoladas não vão surtir o efeito necessário”, alerta Gouveia. “São Paulo precisa de um plano de medidas integradas, capazes de atacar o problema em várias frentes. Além de reduzir as emissões dos veículos, é preciso implementar a inspeção anual de toda a frota e investir no transporte coletivo.”

O perigo é o crescimento da frota de veículos. Nos últimos 20 anos, a de São Paulo cresceu 215%, cerca de 12 vezes mais que o aumento da população, de 18%. Em média, há 170 mil veículos novos por ano. E, estima-se, os níveis de material particulado aumentam 20 mg/m3 para cada 100 mil veículos novos – e o efeito da redução das emissões pelos veículos novos acaba se diluindo. Gouveia valoriza a busca de alternativas tecnológicas para a substituição dos combustíveis fósseis, como as células de combustível. “São soluções de longo prazo”, diz. “Até lá, não podemos ficar de braços cruzados enquanto tanta gente adoece e morre.”

Limites à frota poluente

Criado em 1986, o Proconve estabeleceu limites de emissões a serem respeitados a partir de 1988 por todo veículo novo produzido no país ou importado. Inspirado em similares de países desenvolvidos como Estados Unidos e Japão, o programa estabeleceu estágios diferenciados de redução de emissões para veículos leves (a gasolina e álcool) e pesados (a diesel), bem como para ônibus urbanos.

Os veículos leves tiveram de passar, por exemplo, da emissão máxima de 24 g/km (gramas por quilômetro rodado) de monóxido de carbono (CO) em 1989 para 12 g/km em 1992 e 2 g/km em 1997. Também foram fixados limites para a emissão de monóxido de carbono em baixa velocidade e para as emissões de hidrocarbonetos ou combustível não queimado (HC) e óxidos de nitrogênio (NOx). Os carros a álcool tiveram ainda fixados limites para a emissão de aldeídos.

A redução dos níveis de poluentes foi gradativamente obtida por meio de medidas tecnológicas como a generalização do uso do catalisador e da injeção eletrônica, a melhoria dos combustíveis e lubrificantes e do rendimento dos próprios motores. Com as medidas do Proconve, a emissão de poluentes nos veículos automotores novos de todo o país chegou a 90% no final da década de 90 em relação à situação anterior ao programa. 

O Projeto
Poluição do Ar, o Rodízio de Veículos e Efeitos na Morbidade dos Idosos no Município de São Paulo (nº 98/11171-9); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenador Nelson da Cruz Gouveia – Faculdade de Medicina da USP; Investimento R$ 8.850,00

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