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Astronomia

Mais perto dos asteróides

Um dos maiores levantamentos sobre os menores corpos do Sistema Solar ajudará a entender sua formação

Amanhecia num dia de setembro último no extremo sul do deserto chileno do Atacama quando a astrofísica Daniela Lazzaro tirou os olhos da tela do computador ligado ao telescópio e respirou aliviada, depois de ter passado a noite observando asteróides a centenas de milhões de quilômetros. Era o ponto final de 1.300 horas e 135 noites de observações em cinco anos, que produziram um dos mais amplos estudos sobre a composição dos asteróides e deverão ajudar a entender a formação e evolução do Sistema Solar.

“Na reunião da Sociedade Astronômica Brasileira em agosto”, diz Daniela, “apresentei os resultados quase finais desse grande levantamento da composição de asteróides, em desenvolvimento desde 1996, assim como foram apresentados os trabalhos de alunos meus que trabalham com dados desse levantamento. Temos bastante resultados”. E exemplifica: “Entre os resultados importantes obtidos até agora eu poderia citar: a descoberta de alguns objetos com composição bastante rara, um deles tema de artigo publicado na revista Science em junho de 2000; a análise da distribuição de composições em alguns grupos e famílias de asteróides, comprovando uma origem distinta; e a análise da distribuição total de composições no cinturão de asteróides, mostrando que é diferente da considerada até o presente.

Com cerca de 800 asteróides observados, nosso levantamento já é o segundo maior do mundo em número de objetos.” Todo o trabalho foi feito no telescópio de 1,52 metro do European Southern Observatory (ESO), em La Silla, e faz parte de um convênio com o Observatório Nacional (ON) do Rio de Janeiro, onde Daniela trabalha. Pelo convênio, o ON usa metade do tempo do telescópio. O levantamento e todos os dados estarão à disposição a partir de dezembro pela Internet, em www.on.br.

O método de análise foi a espectroscopia de reflexão, que permite apurar a composição química e mineralógica da superfície de um asteróide a partir do princípio de que diferentes materiais refletem a luz distintamente. Os principais minerais encontrados foram piroxênio, olivina, níquel-ferro, feldspatos e minerais enriquecidos com carbono e orgânicos.

Testemunhas do começo
Asteróides são blocos de pedra de vários tamanhos localizados predominantemente no Cinturão de Asteróides, uma faixa situada entre Marte e Júpiter, distante entre 1,5 e 5 unidades astronômicas (UA) da Terra. Cada UA equivale a 150 milhões de quilômetros, distância média entre a Terra e o Sol.Como são bem menores que os planetas, os asteróides preservam materiais dos estágios finais de formação do Sistema Solar, que não sofreram uma significativa evolução térmica, química e tectônica após um processo de aglomeramento chamado acreção.

Daniela explica o processo: “Todos os corpos do Sistema Solar foram formados a partir da acreção de pequenos corpos, chamados de planetesimais, de tamanhos entre alguns centímetros e alguns metros. Quanto maior o corpo, mais planetesimais foram aglomerados. A acreção em si já gera um calor interno: logo, quanto maior o corpo, mais calor interno ‘primordial’ – calor oriundo do processo de acreção – esse corpo terá. Maior calor leva a maiores transformações químicas e mineralógicas. Mais ainda: quanto maior o corpo, maiores pressões são geradas.

Essas pressões também levam a transformações químicas e mineralógicas. Por outro lado, um corpo pequeno terá pouco calor primordial, assim como pequenas pressões internas: logo, os materiais que inicialmente tiveram acreção serão mantidos inalterados, ou pouco alterados.” É por isso que os asteróides são chamados objetos primordiais. Há 30 mil deles catalogados. “Eles são fundamentais para se entender os mecanismos que deram origem ao Sistema Solar que observamos hoje”, acentua Daniela.

O estudo, que analisou a composição mineral da superfície de 830 asteróides, só perde em número para o levantamento disponibilizado este ano pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), que abrangeu 1.200 asteróides. “Nosso estudo e o do MIT são muito similares, mas se concentram em regiões distintas do Cinturão de Asteróides – ou seja, em grande parte são complementares. A maioria dos objetos observados por nós não foi observada por eles e vice-versa, já que desde o início existiu uma boa cooperação entre as duas equipes.”

As observações no Chile permitiram várias conclusões. Foi possível confirmar que “famílias” de asteróides, partes de um corpo maior que sofreu uma forte colisão, apresentam o que os pesquisadores chamam de relação genética entre seus membros. Foram analisadas três grandes famílias: Flora, Themis e Eunomia. Em Flora e Eunomia, o principal mineral encontrado foi o piroxênio. “Do ponto de vista mineralógico, os membros de cada família têm o mesmo perfil entre si e diferente das outras famílias. Ou seja, cada grande família foi resultado de uma colisão diferente”, diz Daniela.

O mesmo não pode ser dito dos “grupos dinâmicos”, aglomerações de asteróides posicionadas em pontos específicos do Cinturão, que sofrem influência gravitacional de Júpiter. A pesquisa em detalhe de dois desses grupos, Phocaea e Hungaria, mostrou que eles não têm uma composição semelhante e que cada asteróide revela uma origem. “Nesse caso, não existiu um corpo grande que se quebrou. Cada asteróide veio de um lugar diferente e está ali por processos dinâmicos, como a força gravitacional de Júpiter”, explica a astrofísica.

Efeito radioativo
O modelo baseado na influência do Sol na composição mineralógica dos asteróides do Cinturão é contestado pelos dados gerados na pesquisa. Segundo o modelo, os asteróides teriam chegado à composição atual conforme o grau de aquecimento que sofreram a partir de suas distâncias do Sol. Asteróides mais próximos do astro, por exemplo, teriam sido aquecidos e passado por transformações que determinaram suas composições mineralógicas. Já os mais distantes do Sol não teriam sofrido os efeitos do aquecimento e seriam, portanto, mais primitivos.

As observações em La Silla contestam essa separação da composição dos asteróides do Cinturão, segundo sua distância até o Sol. Em vez disso, uma das hipóteses consideradas é a possível presença de materiais radioativos nos asteróides. Quantidades distintas desses materiais levariam a distintos graus de aquecimento. “O Sol não deve ser o único culpado pelo aquecimento maior que alguns asteróides sofreram”, afirma Daniela. “Na realidade, o que ocorre é que materiais radioativos decaem e nesse processo geram calor. Quanto mais desses materiais um asteróide tiver juntado durante sua formação, mais calor será gerado posteriormente no processo de decaimento radioativo, fato que levará a modificações químico-mineralógicas.”

Rocha basáltica
O estudo também levou ao descobrimento de três asteróides com composição rara. Eles têm uma superfície de rocha basáltica, criada pela erupção de vulcões e antes só encontrada em seis corpos do Sistema Solar – Terra, Lua, Marte, Vênus, Io (lua de Júpiter) e no asteróide Vesta, que tem 500 quilômetros de diâmetro. Até então, considerava-se que fossem raros os corpos celestes com resquícios de atividade vulcânica.

A equipe do ON constatou a composição basáltica de Magnya, asteróide de 30 quilômetros que é provavelmente fragmento de um corpo maior. O achado, publicado no artigo de Science, mostrou que esse asteróide, de apenas 30 quilômetros de diâmetro, pode ter sido o que restou de um corpo celeste maior, que teria passado por intensa atividade vulcânica. “As teorias de formação de corpos basálticos no Cinturão terão de ser revistas. A composição de Magnya implica que pelo menos um segundo asteróide basáltico, além de Vesta, foi formado”, Daniela enfatiza. Ela acha que os meteoritos basálticos que caem na Terra podem ser outros pedaços da fragmentação do corpo maior que deu origem a Magnya.

Em 2001, além de Magnya, a equipe do ON encontrou mais dois asteróides com composição basáltica. São os fragmentos de Vesta maiores e mais distantes desse asteróide já descobertos. “Isso comprova que a família de Vesta se estende muito além dos limites atuais”, diz Daniela. Outra parte do estudo mostrou ainda que os asteróides com superfície de piroxênio e olivinas são os mais abundantes no Cinturão. Antes, acreditava-se que os do tipo carbonáceo predominavam.

Os principais achados da missão observacional deverão ser publicados na revista de astronomia Icarus, dos Estados Unidos. “A pesquisa insere o Brasil com destaque na área de astrofísica do Sistema Solar”, diz Daniela. A pesquisadora acha que recursos minerais oriundos de asteróides, como titânio e ferro, podem futuramente ser usados na Terra, e a pesquisa do Observatório servirá de referência para esse trabalho. “Esses dados são fundamentais para a escolha de asteróides a serem visitados por missões espaciais”, observa ela.

Com os dados, foi possível obter a distribuição precisa de composições físico-químicas no Cinturão de Asteróides como um todo. “Esse trabalho será fundamental para o entendimento da formação e evolução do Cinturão e do Sistema Solar”, diz Daniela, que trabalhou em conjunto com pesquisadores do Instituto Astronômico e Geofísico da Universidade de São Paulo (IAG-USP), do MIT e do Laboratório de Jato-Propulsão da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos.

Do grande Ceres aos pedregulhos

Também chamados de “planetas menores”, por orbitarem o Sol como planetas, eles se concentram numa faixa entre Júpiter e Marte, chamada Cinturão de Asteróides, mas há muitos outros espalhados desde a órbita da Terra – com a qual podem chocar-se de vez em quando – até para lá da órbita de Saturno. O maior asteróide é Ceres, com 1.000 quilômetros (km) de diâmetro, descoberto em 1801. Há mais 15 com diâmetro superior a 240 km e muitos que não passam de pedregulhos. Todos juntos não chegariam à metade do tamanho da Lua.

As observações diretas de asteróides são feitas basicamente a partir da Terra, como o exaustivo estudo brasileiro no observatório de La Silla. Já a primeira imagem espacial de um asteróide com alta resolução foi obtida de Gaspra em 1991, pela sonda americana Galileo. Dois anos depois, a mesma nave chegou bem perto do asteróide Ida. Em 1997, a grande aproximação da sonda Near com o asteróide Mathilde permitiu constatar que ele é rico em carbono. Imagens do grande Vesta, com cerca de 500 km de diâmetro, foram fornecidas pelo telescópio espacial Hubble.

Há asteróides que se situam em rota de colisão com a Terra. Daniela Lazzaro distingue três tipos deles: “Meteoróide é um pequeno asteróide que pode entrar na atmosfera da Terra. Meteoro é o que de fato entra na atmosfera e, devido ao atrito com ela, chega a ficar incandescente, risca o céu e se desintegra totalmente: é popularmente chamado de ‘estrela cadente’. E meteorito é um pequeno asteróide que entra na atmosfera, mas não se desintegra totalmente ao atravessá-la, e chega a atingir a superfície. Sobra um pedaço no chão, ou até se forma uma cratera”. Esse é muito importante para os estudos astrofísicos e, sempre que encontrado, é analisado em laboratório. “Já que não podemos ter um asteróide em laboratório, pelo menos temos um pedacinho dele”, diz Daniela.

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