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Psiquiatria

Enzima denuncia Alzheimer

Identificada molécula que pode servir para diagnosticar doença anos antes de sua manifestação

MIGUEL BOYAYANPaciente de Alzheimer: objetivo do estudo não é tratamento, mas evitar que a doença se manifesteMIGUEL BOYAYAN

Uma equipe da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) obteve uma vitória importante na luta contra o grande desafio do mal de Alzheimer: compreender o mecanismo da degeneração cerebral que caracteriza a doença para estabelecer um diagnóstico precoce e preciso. Wagner Farid Gattaz, Cássio Bottino e Orestes Forlenza, do Instituto de Psiquiatria, identificaram uma enzima – a fosfolipase A2 – que esperam poder ser um eficiente marcador biológico para a detecção precoce da doença ou mesmo a chave de sua cura. A partir da medição dessa enzima no sangue, eles pretendem atuar na prevenção de Alzheimer vários anos antes de a doença se manifestar.

Atualmente, embora se baseie em evidências clínicas, o diagnóstico de Alzheimer é dado como “possível” ou “provável”. Certeza mesmo, só na autópsia, quando o cérebro revela seu terrível estado de degradação: tecido cerebral atrofiado, fibras nervosas emaranhadas, neurônios invadidos por placas da proteína beta-amilóide. Os pesquisadores acreditam que os primeiros sintomas do mal de Alzheimer, normalmente só aparentes depois dos 60 anos de idade, sejam o ponto culminante de um processo silencioso que começa de 20 a 30 anos antes – mas pode deixar suas marcas no sangue desde o início.

Gattaz examinou o sangue de idosos saudáveis e o comparou com amostras coletadas de pacientes de Alzheimer e de transtorno cognitivo leve (TCL) – distúrbio caracterizado apenas por declínio de memória. Os dois grupos apresentaram diminuição dos níveis de fosfolipase A2 (ou PLA2), enzima que atua no metabolismo dos fosfolípides, componentes da membrana celular. Além disso, quanto mais comprometidas as funções cerebrais, menores eram as taxas da fosfolipase.

Esquizofrenia e demência
As primeiras hipóteses sobre a ação da fosfolipase no cérebro são da década de 80, quando Gattaz estava na Universidade de Heidelberg, Alemanha, e estudava os mecanismos da esquizofrenia. A fosfolipase era então pouco conhecida. Descobriu-se que, além de ser produzida como enzima digestiva pelo pâncreas, está presente em todas as células, inclusive os neurônios: “A membrana dos neurônios é formada por uma camada dupla de fosfolípides. É nessa camada, fronteira da célula com o meio externo, que estão os neurorreceptores – responsáveis pela transmissão de informações de um neurônio a outro. Alterando a composição dessa membrana pela ação de enzimas, você altera sua arquitetura e, conseqüentemente, a ação dos neurorreceptores”, explica Gattaz.

Sua hipótese inicial foi conceber a esquizofrenia como doença do pâncreas, e não do cérebro. Supôs que pudesse ter um mecanismo semelhante ao de outros quadros neuropsiquiátricos, não originados primariamente do cérebro, mas do metabolismo periférico – como a fenilcetonúria, doença do fígado decorrente da falta de uma enzima e que leva a distúrbios da maturação do sistema nervoso central. Para a esquizofrenia, não se constatou falta de fosfolipase, mas excesso.

Não demorou para que Gattaz voltasse a atenção para o mal de Alzheimer, por ter este uma característica oposta à esquizofrenia: é muito raro um esquizofrênico desenvolver esse tipo de demência (deterioração cerebral). Mesmo quando há déficits graves de memória e compreensão, os exames cerebrais post-mortem não revelam deposições da proteína beta-amilóide – as placas senis, marcas típicas de Alzheimer. Se nos esquizofrênicos havia aumento dos níveis de fosfolipase, convinha verificar isso nos pacientes de Alzheimer. “Verificamos que a fosfolipase A2 estava diminuída no cérebro e a diminuição se relacionava com a intensidade da lesão cerebral: quanto mais baixo o nível da enzima, maior a ocorrência das placas senis.”

Foi encontrado um paralelo entre a diminuição da enzima no cérebro e no sangue: “Avaliamos a presença de fosfolipase A2 tanto em tecido cerebral post-mortem quanto em plaquetas. A presença da fosfolipase no sangue permite fazer extrapolações para a atividade no cérebro e facilita o acesso do pesquisador”. Estava descoberto um potencial marcador biológico do mal de Alzheimer.

Alelo suspeito
Não é o único marcador investigado. Num grupo de pacientes que acompanhou por quase cinco anos, Cássio Bottino testou um potencial marcador genético, o alelo e4. Localizado no cromossomo 19, o e4 é uma das três formas do gene que codifica a apolipoproteína E, ou ApoE (as outras são os alelos e2 e e3). A ApoE é uma proteína do plasma relacionada ao transporte de colesterol para o fígado, o cérebro e outros tecidos. Acontece que, segundo várias pesquisas, portadores do alelo e4 têm mais chance de desenvolver o mal de Alzheimer e tendem a apresentar os sintomas mais cedo do que os portadoras de alelos e2 e e3.

Na tipagem para alelo e4 de 20 pacientes-controle (idosos saudáveis), mais 41 doentes de Alzheimer e 21 com TCL, Bottino confirmou estudos que indicam nos idosos portadores do alelo e4 um risco 2,4 vezes maior para o desenvolvimento de Alzheimer. “Nos pacientes com TCL, o risco foi um pouquinho aumentado. Não atingiu significância estatística, mas aponta uma tendência”, revela.Esse marcador genético,porém, está longe de permitir um bom diagnóstico. “O risco estatístico – duas vezes e meia – é muito pequeno se comparado a marcadores de outras doenças, onde você encontra um aumento de 100, 1.000 vezes”, ressalva Gattaz.

Neurotransmissor afetado
Já a fosfolipase A2 tem animado os pesquisadores com a perspectiva de ser mais do que um marcador, mas uma substância envolvida na própria origem da doença. “Para a doença de Alzheimer”, diz Gattaz, “tudo indica que essa enzima tenha significado duplo: contribui tanto para a formação das placas senis quanto para a diminuição da atividade colinérgica – de liberação do neurotransmissor acetilcolina”.

A liberação de acetilcolina, um neurotransmissor fundamental para o funcionamento do cérebro, fica diminuída nos doentes de Alzheimer. Por isso, os remédios mais utilizados agem no sentido de aumentar essa liberação no cérebro. Entre eles, há substâncias precursoras de acetilcolina e outras inibidoras da acetilcolinesterase – enzima que degrada esse neurotransmissor. São tratamentos sintomáticos, que melhoram a qualidade de vida de cerca de 70% dos pacientes.

Acontece que a diminuição da enzima fosfolipase A2 também prejudica a formação da acetilcolina: “A fosfolipase libera colina da membrana celular para formar acetilcolina. Portanto, uma diminuição da atividade dessa enzima resultaria num agravamento do déficit colinérgico já existente na doença de Alzheimer. Esse déficit é primariamente conseqüência da morte maciça de neurônios colinérgicos em regiões do cérebro relacionadas com a memória”.

Outro mecanismo que sofreria influência dessa enzima é a própria formação das placas senis, segundo hipótese de Gattaz. Ele explica que a proteína beta-amilóide, que forma as placas, é recortada de uma proteína maior chamada PPA – proteína precursora de amilóide – que fica ancorada na membrana da célula nervosa. O metabolismo ou digestão da PPA é feito pela enzima alfa-secretase, que normalmente a quebra ao meio.

No entanto, a diminuição da fosfolipase resulta numa redução do metabolismo dos fosfolípides. Isso significa que ocorre um aumento na quantidade de fosfolípides da membrana. A alteração da arquitetura da membrana muda também os pontos de clivagem (quebra) da PPA. Agora, a alfa-secretase que a quebrava não atua mais. Ela é, então, clivada por uma beta-secretase e depois por uma gama-secretase, que liberará a molécula inteira do beta-amilóide – livre, portanto, para formar as placas.

Alvo mundial
“Seria muito otimismo pensar que a fosfolipase seja a única causa do Alzheimer”, pondera Gattaz. “No entanto, por ter uma implicação direta com a produção de placas senis e com a neurotransmissão colinérgica, talvez possamos vir a considerá-la como a doença em si – da mesma forma que a glicose, por exemplo, não é apenas um marcador diagnóstico para o diabetes, mas a própria doença. Então, poderíamos desenvolver estratégias terapêuticas alternativas, para evitar a formação das placas. Pelo menos, esse é o nosso desejo.”

É um desejo compartilhado com grupos de pesquisa de todo o mundo. Por diferentes abordagens, a formação das placas de beta-amilóide é um dos alvos preferenciais de trabalhos que buscam o combate ao Alzheimer na origem. Já se desenvolveu até vacina contra essa proteína. Em 1999, o laboratório americano Elan Pharmaceuticals criou uma vacina com pequenas doses sintetizadas de beta-amilóide. Os resultados preliminares foram animadores: em ratos, formaram-se anticorpos contra a proteína. Pouco depois, pesquisadores da Escola de Medicina de Harvard usaram o mesmo princípio para criar um imunizante em forma de spray nasal, também testado em ratos.

Uma outra linha da pesquisa mundial com a beta-amilóide segue no sentido de evitar a agregação da proteína. Uma equipe dos departamentos de Bioquímica Médica e de Anatomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenada pelo bioquímico Sérgio Teixeira Ferreira, desenvolveu um medicamento à base de nitrofenóis para impedir a agregação da beta-amilóide em culturas de células neuronais e em ratos. O estudo foi publicado em 20 de março de 2001 no Faseb Journal, publicação da Federação das Sociedades Americanas de Biologia Experimental dos Estados Unidos.

Além de investigar a origem da doença, a pesquisa de Alzheimer no mundo busca melhores métodos de diagnóstico e novas drogas. O Instituto de Psiquiatria da FM-USP também investe nesse campo. No Laboratório de Neurociências, coordenado por Gattaz, a equipe de Orestes Forlenza faz culturas de neurônios e testes com cobaias, que recebem substâncias para inibir ou estimular a fosfolipase.

O laboratório, inaugurado em 1999, é dos beneficiados pelos recursos do Programa de Infra-estrutura da FAPESP: bem equipado para análises neuroquímicas, de biologia molecular e de genética, permite aos pesquisadores atuar em outras frentes, como exames de neuroimagem funcional, que podem mostrar as regiões do cérebro onde há baixo metabolismo, e exames de ressonância magnética, nos quais se pode ver a redução de estruturas cerebrais. Bottino notou, por exemplo, que a comparação das medidas volumétricas da amígdala, hipocampo e giro para-hipocampal permite separar portadores de doença de Alzheimer leve a moderada dos saudáveis com uma precisão de 88%.

TCL e Alzheimer
Também são promissores os resultados obtidos com os portadores de transtorno cognitivo leve, um distúrbio ainda pouco estudado. “O TCL é diagnosticado, geralmente, em pessoas com mais de 50 anos que se queixam de problemas de memória e apresentam piores resultados em testes cognitivos, comparados aos idosos saudáveis, mas ainda não têm comprometimento das atividades do dia-a-dia. Alguns melhoram com o passar do tempo, mas 5% a 10% evoluem para Alzheimer”, revela Bottino.

Os pacientes com TCL tiveram níveis menores de fosfolipase A2 em relação ao grupo controle, mas níveis maiores em relação ao grupo com Alzheimer. Esses dados permitiram estabelecer um gráfico no qual o TCL ocupa a porção mediana. No entanto, o grupo de TCL é muito heterogêneo: alguns tinham valores muito semelhantes ao da normalidade, enquanto outros beiravam os limites da demência. “Por isso, queremos, agora, fazer um estudo de seguimento com amostra maior.

Como 10% dos portadores de TCL evoluem para demência, precisamos de uma amostra com 100, 150 pessoas. Assim, poderemos investigar se os pacientes que se encontram mais para baixo no gráfico serão aqueles que evoluirão para Alzheimer. Seria mais um estudo confirmatório do valor preditivo da enzima e é isso que está nos movendo agora”, informa Gattaz. E resume: “Essa é a medicina do século 21. Nosso objetivo não é tratar ninguém, mas evitar que se fique doente”.

Os Projetos
1. Metabolismo dos Fosfolípides na Esquizofrenia e na Doença de Alzheimer (nº 97/11083-0); Modalidade Projeto temático; Coordenador Wagner Farid Gattaz – Faculdade de Medicina da USP; Investimento R$ 1.590.193,43
2. Demência do Tipo Alzheimer, Transtorno Cognitivo Leve e Envelhecimento Normal: Estudo Longitudinal de Aspectos Clínicos, Neuropsicológicos, Genéticos, Neuroquímicos e de Neuroimagem (nº 99/00740-5); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenador Cássio Machado de Campos Bottino – FM/USP; Investimento R$ 102.961,39 e US$ 86.119,09

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