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Astrofísica

Na boca de um buraco negro

Pesquisadora da UFRGS mostra de que modo a matéria é engolida por um buraco negro no centro de uma galáxia

Nos últimos anos, telescópios terrestres e espaciais confirmaram a existência de buracos negros, objetos dotados de atração gravitacional tão intensa que nenhuma matéria escapa deles, nem mesmo a luz. Os mecanismos pelos quais absorvem tudo o que passa perto tornaram-se menos misteriosos com um trabalho concluído em abril no Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).”Estamos testemunhando um buraco negro do centro de uma galáxia devorar matéria ao seu redor”, comemora a coordenadora do estudo, Thaisa Storchi-Bergmann, ao terminar o artigo em que relata os resultados.

A equipe de Thaisa reconstituiu o que se passa no centro de NGC 1097, uma galáxia espiral a 60 milhões de anos-luz da Terra (um ano-luz equivale a cerca de 9,5 trilhões de quilômetros). E confirmou: existe lá um buraco negro supermassivo – de massa equivalente a pelo menos um milhão de sóis –, formado provavelmente pelo colapso de nuvens de gás ou de aglomerados com milhões de estrelas.

Foco nos efeitos
Já que um buraco negro não pode ser detectado diretamente, mas só por seus efeitos sobre objetos próximos, o grupo gaúcho centrou o foco na luz emitida pelo disco de acreção – nuvem achatada em forma de um espesso anel, feita de plasma (uma mistura de prótons e elétrons) e hidrogênio, que gira ao redor do poderoso aspirador de matéria. A partir das informações colhidas, a equipe teve uma visão clara dos processos de nascimento, evolução e morte do disco de gás, que ocupa uma área equivalente ao dobro da órbita da Terra em torno do Sol, com um diâmetro próximo a 300 milhões de quilômetros. Cálculos preliminares indicam que a cada segundo o buraco negro traga cerca de 100 quatrilhões de toneladas de gás do disco – ou duas Terras por dia.

Ao que tudo indica, o disco de gás surgiu quando uma estrela chegou muito perto do buraco negro e foi capturada por ele. Em seguida, a estrela se desmanchou por ação da força de maré do buraco negro: essa força age com intensidade diferente em partes distintas de um corpo – o Sol, por exemplo, atrai mais o lado mais próximo da Terra do que o mais distante e por isso o planeta se alonga na direção do astro. Desmanchada a estrela, restou a nuvem de gás, que formou um disco ao redor do buraco negro.

Centro quente
Estima-se que esse fenômeno ocorra numa galáxia a cada 10 mil anos. “Tive sorte com a NGC 1097”, reconhece Thaisa, que em 1991, quando começou a investigar a emissão de luz do núcleo dessa galáxia, encontrou o quadro típico de uma captura de estrela relativamente recente. Ela observou a emissão da região externa do disco formado a partir da estrela capturada na linha H-alfa – a linha de emissão de energia mais intensa do átomo de hidrogênio – e constatou que o gás girava a 10 mil quilômetros por segundo (km/s). Então, concluiu: essa velocidade do gás só poderia ocorrer num disco em torno de um buraco negro que tivesse a massa de um milhão de sóis.

Nascia assim a hipótese que seria confirmada nos dez anos seguintes. Thaisa demonstrou que ocorre um aquecimento das regiões centrais do disco, que começam a emitir radiação de alta energia – como raios X –, num processo que dura pelo menos alguns séculos. A parte interna do disco é mais quente que as periféricas, por causa da fricção entre as partículas atômicas: a temperatura interna pode chegar a milhões de graus Celsius (ºC), enquanto na periferia, de onde saem as emissões de luz na linha H-alfa, é de cerca de 10.000ºC.

O interior do disco se expande devido à alta temperatura e cria uma estrutura toroidal (em forma de rosca) em volta do horizonte de eventos – superfície imaginária que define a fronteira além da qual nem a luz escapa. Essa estrutura emite fótons que, ao bater nas partes externas do disco, excitam o hidrogênio e produzem a emissão do tipo H-alfa, seguida desde 1991. “O futuro da matéria do disco é espiralar até ultrapassar o horizonte de eventos e cair no buraco negro”, revela Thaisa.

A matéria do disco – formada basicamente de prótons e elétrons na parte interna e átomos de hidrogênio na externa – se divide ao chegar a esse limite: metade é engolida pelo buraco negro e metade expelida da parte interna em forma de jatos, cuja emissão é observada em ondas de rádio. Assim, o disco se desfaz lentamente até desaparecer, num momento estimado para daqui a 1 mil anos, no mínimo. “É a primeira vez que presenciamos a captura de matéria numa região central de uma galáxia de maneira bem clara”, diz Thaisa.

Mas não é o fim da história. À medida que o buraco negro se alimenta de mais e mais matéria, amplia-se o horizonte de eventos – cujo raio mede hoje, aproximadamente, 3 milhões de quilômetros, ou dois centésimos da distância entre a Terra e o Sol. Nesse espaço há uma massa equivalente a um milhão de sóis, que Thaisa havia calculado em 1997. Capturando estrelas individuais, o buraco negro poderia até mesmo dobrar de tamanho, mas muito lentamente – somente daqui a 1 bilhão de anos.

Essa arqueologia cósmica – descrita por Thaisa num artigo recentemente submetido ao Astrophysical Journal, no qual já publicou trabalhos em 1993, 1995 e 1997 – é um avanço em relação ao que se descobriu em 1998 na galáxia M87, situada a uma distância equivalente ao nosso planeta. Naquele ano, o telescópio espacial Hubble, que orbita a Terra a 600 quilômetros de distância em busca de novidades dos confins do Universo, registrou imagens de um disco de gás girando em torno do núcleo da M87.

Embora a velocidade em que o disco da M87 se movia fosse alta, era só um décimo das registradas na NGC 1097. E a distância do disco até o centro da galáxia era um milhão de vezes o raio do disco de acreção. Portanto, o disco de gás da M87 não era o disco de acreção, mas uma estrutura bem mais externa. Como o raio desse disco é muito grande – cerca de 500 trilhões de quilômetros, um milhão de vezes maior que o da NGC 1097 –, Thaisa descarta a presença de um buraco negro central. Então, o que seria o disco? Um aglomerado estelar massivo, por exemplo.É exatamente a definição do processo de emissão de luz do disco da NGC 1097, aparentemente muito mais interessante cientificamente do que o verificado na M87, a razão de contentamento da equipe.

Thaisa trabalhou com Michael Eracleous, da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, na coleta de dados provenientes de três fontes: o telescópio, de 4 metros, do Observatório Interamericano de Cerro Tololo; o Eso New Technology Telescope (NTT), de 3,6 metros, ambos no Chile; e o telescópio de 8 metros do Observatório Keck II, no Havaí. Já na análise dos resultados, ela contou com o mestrando Fausto Kuhn Berenguer Barbosa e o bolsista de iniciação científica Rodrigo Nemmen da Silva.

Juntos, converteram o comprimento de onda da luz (ou radiação) em velocidade do gás e construíram um gráfico que mostrou uma linha de dois picos – um para a velocidade máxima de aproximação da luz em relação à Terra e outro para a máxima de afastamento. Tecnicamente, é o perfil de pico duplo da linha de emissão H-alfa, também chamado de assinatura cinemática do disco – uma prova clara da existência do disco de acreção e das transformações por que passa. “Acredita-se que possa existir um disco de acreção também na M87, embora ainda sem uma assinatura cinemática”, comenta a pesquisadora. “O Hubble registrou outros perfis em H-alfa semelhantes, nenhum com uma estrutura de duplo pico tão clara como na NGC 1097.”

Lanterna
Thaisa consegue ver a emissão de H-alfa que chega da parte mais externa e fria do disco. “Possivelmente, nem todas as galáxias tenham essa parte mais externa, como poderia ser o caso da M87”, observa Thaisa. Ao longo dos anos, ela percebeu que a emissão migrou para regiões que giram a velocidades cada vez maiores – como o disco apresenta um movimento kepleriano (como os planetas), as regiões mais internas e próximas do buraco negro central movem-se numa velocidade mais alta que a das bordas. O deslocamento do foco de emissão de luz ocorre porque a parte interna perde energia e esfria, de modo que a radiação já não é tão intensa e atinge distâncias cada vez menores.

O processo é semelhante ao que ocorre com a luz emitida por uma lanterna a pilha que ilumina uma área ao redor e se enfraquece com o tempo. Quando as pilhas estão com carga total, a luz é mais intensa e ilumina uma área relativamente grande em torno da lanterna. À medida que a carga enfraquece, a luz perde alcance e ilumina as regiões mais próximas. Em 1991, a luz emitida pelas partes mais externas do disco tinha a velocidade de 3 mil km/s – só um centésimo da velocidade da luz, mas que permitiria a uma partícula ir de Porto Alegre a Salvador em apenas um segundo.

Já no início deste ano, como a fonte de fótons foi ficando mais fraca e atingiu menores distâncias no disco, foi possível registrar a luz que vinha de partes mais internas, com velocidade de 6 mil km/s. Estima-se que na borda interna do disco emissor de H-alfa a velocidade das partículas chegue a 15 mil km/s, enquanto à beira do buraco negro as partículas girem a 300 mil km/s, a velocidade da luz.

“O fato de encontrarmos velocidades tão altas é um sinal da presença de uma estrutura supermassiva no centro da galáxia”, diz a pesquisadora. As velocidades máximas registradas para os discos de gás em rotação no centro de galáxias sem buracos negros são de apenas 250 a 300 km/s. Velocidades de rotação da ordem das detectadas, de milhares de quilômetros por segundo, segundo ela, só podem ser produzidas pela interação com milhões ou bilhões de massas solares concentradas num lugar muito pequeno – ou seja, um buraco negro supermassivo.

Um reforço a essa conclusão é a conversão de matéria em energia por meio da absorção por um buraco negro, que tem uma eficiência muito maior do que as reações nucleares nas estrelas: 10% da massa engolida é convertida em energia, ao passo que nas reações nucleares o limite é de 0,7%. “Essa conversão pode explicar a grande emissão de energia dos núcleos de galáxias ativas, como NGC 1097 e M87”, afirma Thaisa.

Com um milhão de massas solares, o buraco negro da NGC 1097 impressiona, mas não é dos maiores já encontrados. No final de março, os físicos que trabalham com o telescópio de raios X Chandra relataram a descoberta de uma estrutura bem mais massiva: um buraco negro com cerca de 10 bilhões de massas solares no centro dos quasares – galáxias em formação – mais distantes já encontrados, a 13 bilhões de anos-luz da Terra.

Via Láctea
Este ano, a equipe da UFRGS pretende obter dados sobre a emissão de raios X e ultravioleta da NGC 1097, por meio de observações com o Chandra e o Hubble, e lançar luz sobre o que acontece no centro das centenas de galáxias já identificadas. “Acredita-se que os buracos negros tenham se formado junto com as próprias galáxias, uma vez que a massa estimada para os buracos negros a partir das observações do Hubble é proporcional aos bojos – a região esférica central – das galáxias em que se encontram”, diz Thaisa. Trabalhos feitos com o Hubble indicam a presença de buracos negros na maioria das galáxias elípticas e espirais.

Mesmo no centro da Via Láctea, a 30 mil anos-luz da Terra, supõe-se que exista uma estrutura supermassiva – da ordem de 3 milhões de massas solares. Por enquanto, sua existência só pode ser deduzida a partir do movimento de estrelas próximas ao núcleo ou de emissões intensas de raios X, como a registrada recentemente pelo Chandra: a descarga de radiação variou em horas, algo raríssimo, e provavelmente resultou do engolimento de matéria gasosa ou estelar por um buraco negro.

Ainda não há indícios de que no centro de nossa galáxia exista um disco de acreção, testemunha do poder dos buracos negros, ainda que à custa da própria existência. “Talvez não exista lá matéria suficiente sendo engolida pelo buraco negro para formar um disco”, cogita Thaisa. Mas o quadro pode mudar. Se uma estrela for capturada, poderá ocorrer algo parecido com o que se assiste hoje numa galáxia tão distante como a NGC 1097.

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