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Luiz Davidovich

Luiz Davidovich: O prazer de fazer ciência

De olhos abertos para o futuro da Física, pesquisador premiado diz que a necessária responsabilidade social do cientista não obscurece o caráter lúdico da prática científica

Léo Ramos Chaves

O físico Luiz Davidovich, carioca, 55 anos, recebeu via fax e “com surpresa”, em março passado, a notícia de que ganhara o Prêmio de Física de 2001 da Academia de Ciências do Terceiro Mundo. Antes dele, só dois outros brasileiros o haviam conquistado: Cesar Lattes e Jayme Tiomno. Natural que Davidovich sinta-se “honrado em estar nessa companhia”. Em termos materiais, a honraria consiste numa placa comemorativa e em US$ 10 mil que serão entregues em solenidade especial, durante a VIII Conferência Geral da Academia, em Nova Délhi, no mês de outubro.

A razão da premiação é o conjunto dos trabalhos desenvolvidos por Davidovich em óptica quântica, que representa, segundo seus pares, importante contribuição para o desenvolvimento da Física. Nesta entrevista concedida a Pesquisa FAPESP, o brasileiro fala desses trabalhos, em particular de suas proposições teóricas sobre transição de fenômenos do mundo quântico para o mundo clássico, que envolvem conceitos tão sofisticados e complicados para um leigo quanto o da superposição de dois estados de uma partícula, o da interferência, e até o do teletransporte que, para ouvidos menos acostumados, beira as fantasias da ficção científica.

Mas Davidovich, retomando idéias que apresentou num artigo para Notícias FAPESP (a publicação que deu origem a Pesquisa FAPESP), em setembro de 1999, comenta também nesta entrevista as tendências de desenvolvimento e os desafios que a Física enfrenta hoje. Fala sobre as possibilidades fantásticas de suas aplicações práticas. Aborda os avanços e as dificuldades da Física no Brasil, posiciona-se criticamente sobre a política científica brasileira e produz, por fim, uma frase altamente elucidativa sobre o prazer que está envolvido com o fazer pesquisa científica: “A ciência, para quem está envolvido com ela, é antes de mais nada uma atividade lúdica”.

Professor da Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) de 1977 a 1994 e do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde então, doutorado pela Universidade de Rochester, no Estado de Nova York, e com um pós-doutoramento no Instituto Federal de Tecnologia (ETH), em Zurique, Suiça, centrado no mesmo trabalho sobre a dinâmica de decaimento de um átomo que iniciara no doutoramento, Davidovich é casado com a psicóloga Solange Cantanhede e tem dois filhos e duas enteadas (“mas é como se fossem quatro filhos, na verdade”, diz ele). Os filhos são um engenheiro e um advogado, as filhas, uma psicóloga e uma modelo (Isabel Ibsen). A seguir, os principais trechos da entrevista do premiado físico:

Vamos falar de seu prêmio. A razão dele é o conjunto de seus trabalhos ou uma pesquisa específica?
O prêmio foi dado por trabalhos que eu fiz com a teoria do laser e com propostas de experimentos na área de fundamentos da mecânica quântica. Um conjunto de trabalhos que venho desenvolvendo nos últimos 17 anos, por aí.

Do ponto de vista de sua trajetória profissional, o que esse prêmio acrescenta?
Evidentemente fiquei satisfeito porque ele representa o reconhecimento internacional ao trabalho que eu desenvolvi. Mas também fiquei satisfeito porque é um prêmio por trabalhos desenvolvidos por cientistas do terceiro mundo e, nesse caso particular, por um físico brasileiro, dentro do panorama da ciência brasileira, quer dizer, apoiado por agências financiadoras aqui do Brasil, apoiado na estrutura das nossas universidades, e que, bem ou mal, têm produzido pesquisa em níveis quantitativos e qualitativos muito bons nos últimos anos. Então, também fiquei satisfeito pelo reconhecimento à ciência brasileira que o prêmio representa.

Estive lendo uma revisão que o senhor apresentou recentemente sobre sua área, óptica quântica, e embora para um leigo sejam bastante complicados os conceitos tratados ali, há algumas coisas muito interessantes sobre a relação entre o mundo físico macroscópico e o mundo da física quântica, microscópico. Eu gostaria de saber se o seu trabalho foca especificamente uma transição entre os dois mundos e lhe pedir que nos dê uma idéia sobre isso, em termos simples, se possível.
A revisão foi para um curso dado em Ushuaia, na Argentina, para físicos recém-doutores, jovens pesquisadores, estudantes em final de doutoramento, então realmente exige um conhecimento prévio. Mas você pegou a idéia muito bem. Essa, de fato, é uma das linhas de pesquisa que tem ocupado nosso tempo e nossas preocupações ao longo dos últimos anos. A idéia é a seguinte: no mundo microscópico existem fenômenos, os fenômenos quânticos, difíceis de alcançar com a nossa intuição habituada aos fenômenos do mundo macroscópico. Um deles é o da interferência, que é percebido quando, por exemplo, fazemos uma experiência… aliás, é uma experiência clássica realizada no século 19, a experiência de (Thomas) Young, um físico inglês que mostrou que, quando se passa a luz por um anteparo que tem duas fendas próximas, produz-se, num outro anteparo, uma figura com franjas claras e escuras. Em outras palavras, luz mais luz – porque a luz está passando por duas fendas – pode resultar em sombra. Essa figura é chamada “figura de interferência”, que é um fenômeno tipicamente ondulatório que podemos observar num tanque de água, quando se produz ondas com dois pinos oscilantes, próximos um do outro, e vemos que essas ondas interferem entre si. Há regiões em que a crista de uma das ondas produzidas por um dos pinos soma-se à crista da onda produzida pelo outro, isto é, há um reforço na amplitude da onda. E há outras regiões em que a crista de uma se superpõe ao vale da outra, e nesse caso as ondas se cancelam. Num tanque de água dá para ver que fica uma raia plana nesses pontos onde as amplitudes se cancelam. Esse fenômeno também se vê com ondas de luz. Acontece que no século 20 aprendeu-se que a luz é constituída de corpúsculos, e daí, conciliar esse comportamento ondulatório com a composição corpuscular tornou-se um grande desafio para os físicos.

Porque numa visão clássica não havia como entender a superposição desses dois dados.
Sim, porque a gente espera que o corpúsculo passe por uma fenda ou por outra. E, nesse caso, ele jamais vai produzir uma figura de interferência, característica de uma onda, que passa pelas duas fendas ao mesmo tempo. A conciliação desse caráter complementar da luz foi feita pela mecânica quântica. Através da mecânica quântica sabemos que, quando fazemos uma experiência com a luz, podemos fazer, de fato, experiências complementares. Por exemplo, podemos nos perguntar “por que fenda passou o corpúsculo?”, e se colocarmos aparelhos por trás das fendas vamos descobrir que passou por uma ou por outra. Mas ao fazermos isso, vamos eliminar a figura de interferência. Não é possível descobrir por qual fenda passou o corpúsculo e, ao mesmo tempo, conservar a figura de interferência. Então apareceu no século 20 o conceito de complementaridade, experiências complementares, que colocam em evidência aspectos complementares da natureza. A luz pode se comportar como onda ou corpúsculo dependendo da experiência que se faça. O arranjo experimental passou a ser uma parte importante do fenômeno observado, e essa foi realmente uma revolução conceitual na física, na década de 1920.

Estamos falando de uma época logo após Einstein.
Isso. São as contribuições de Max Born, Niels Bohr e outros, que permitiram entender a mecânica quântica e os novos conceitos que ela representava muito bem. Então, no mundo microscópico, dizemos que quando uma partícula passa por um anteparo com duas fendas ela encontra-se em uma superposição de dois estados. Um estado que representa a partícula passando por uma das fendas e outro estado que representa a partícula passando pela outra fenda. E essa superposição é que dá origem ao fenômeno da interferência. No entanto, quando olhamos o mundo macroscópico à nossa volta, não vemos isso, o fenômeno é puramente quântico. Não vemos uma pessoa numa superposição de dois estados localizados.

Passando por uma porta e…
… pela outra, ao mesmo tempo. Ou uma superposição de estados em que ela está simultaneamente localizada numa porta e noutra contígua. E por muito tempo as pessoas fizeram a pergunta de como podemos explicar isso, como explicamos a transição do mundo quântico para o mundo clássico. De fato, Einstein, em 1954, escreveu uma carta para Born, dizendo que achava estranho o fato de que o mundo clássico aparentemente proibia a existência da maioria dos estados permitidos pela física quântica, que são essas superposições.

Einstein estava querendo discutir a questão com Born ou rejeitando-a?
Acho difícil saber qual era a intenção dele, talvez tivesse o sentido de tentar entender, mas certamente Einstein tinha críticas à mecânica quântica, achava que não era uma teoria completa e levantou questões, aliás importantíssimas, para aprofundar nosso conhecimento da área. De fato, a questão que ele colocou era fundamental. “Por que essa seleção de estados no mundo clássico?” Como explicamos isso? Houve várias explicações ao longo dos últimos anos, e uma que se afirmou é que necessariamente os corpos macroscópicos estão interagindo com o resto do universo. É impossível isolar completamente um corpo macroscópico. E é essa interação que destrói a possibilidade de realizar experimentos de interferência, que demonstrem essa superposição.

Isso significa que os físicos pressupõem que a possibilidade de superposição existe mesmo no mundo macroscópico, apenas não é observável.
Exatamente. E essa questão foi colocada de forma extremamente dramática pelo físico Schrödinger que, num artigo em 1935, formulou o famoso paradoxo do gato. Ele dizia o seguinte: se colocarmos um gato numa jaula hermeticamente fechada junto com um átomo que pode decair, podemos supor que esse átomo, ao decair, faz funcionar um mecanismo, um motorzinho, que quebra uma garrafa que contém cianureto e que mata o gato. Por outro lado, se o átomo não decai, o gato fica vivo. Ora, o átomo está num determinado instante numa superposição de dois estados, exatamente como a partícula que passa pelas fendas na experiência de Young. Então esse átomo seria descrito como a superposição de estados do átomo que decaiu e do átomo que não decaiu. E em cada instante, o átomo tem uma certa probabilidade de ter decaído e uma outra probabilidade de não ter decaído. Claro que, se esperarmos muito tempo, a componente que representa o átomo decaído vai ficar muito mais importante que a outra. Mas num instante intermediário estão as duas componentes…

Estamos falando de estabilidade em uma fração de segundo?
Esse instante é muito pequeno, em geral, porque os átomos decaem rápido. Mas depende. Tem alguns átomos que têm tempo de vida muito longo. Dependendo do elemento, às vezes são anos nessa superposição. Esse é, aliás, o problema do lixo radioativo, que temos que armazenar em algum lugar para que o decaimento não faça mal às pessoas.

Mas vamos fechar a história do gato de Schrödinger.
Esse átomo está numa superposição. O estado do gato vai depender do estado do átomo. Então, se o átomo está numa superposição, o gato também deveria estar numa superposição. Morto e não morto. E aí diz Schrödinger: “não vemos isso”. Como explicar essa questão? Hoje sabemos que um gato não pode ser isolado, nem um átomo. O sistema átomo-gato não pode ser isolado do resto do universo, é impossível, e é a interação com o resto do universo que rapidamente destrói esse caráter de superposição. O caráter quântico desaparece rapidamente devido à interação com o mundo exterior.

Dentro desse universo todo, qual é o seu foco de pesquisa?
Muito bem, o que fizemos? Anos atrás, propusemos uma experiência em colaboração com físicos da École Normale Supérieure, em Paris, para testar essa idéia de que o mundo quântico se transforma num mundo clássico rapidamente. Tanto mais rapidamente quanto mais macroscópico for o sistema considerado. O experimento foi feito em Paris, em 1996, e confirmou a teoria.

Como foi esse experimento?
Basicamente o seguinte: produz-se, numa cavidade formada por dois espelhos paralelos, que não chega a ser uma caixa porque é aberta, e que consegue armazenar fótons, corpúsculos da luz, por um tempo muito longo, um campo eletromagnético, que é bastante próximo de um campo clássico – como se fosse uma luz clássica, só que na região de microondas. Em seguida, passa-se um átomo pela cavidade, e através de uma manipulação do átomo, especial, consegue-se colocar esse campo numa superposição de dois estados, que corresponde a dois campos clássicos que diferem na fase… na verdade, esse é um conceito técnico difícil, mas podemos dizer que são dois campos que dá para diferenciar classicamente.

Por analogia, dá para tentar explicar o que é um estado e o que é o outro?
É mais ou menos assim: esse campo oscila dentro da gravidade. A luz é um campo oscilante. Podemos fazer uma analogia com uma massinha presa na ponta de uma mola, que oscila também de um lado para o outro. A oscilação de um campo magnético é exatamente análoga à oscilação de uma massinha presa na ponta de uma mola. Digamos que a gente conseguisse colocar essa massinha numa superposição de dois estados localizados em duas regiões diferentes do estado, de modo que esses dois estados oscilam com a mesma freqüência, mas a massinha tem posições diferentes de cada um desses dois estados. Então, por exemplo: uma está indo, a outra está vindo. Só que não se tratam de duas molas. É a mesma mola e a mesma massa, que, no entanto, podem estar em duas regiões diferentes, aqui e lá, ao mesmo tempo. Numa superposição quântica de dois estados.

E vocês conseguiram confirmar isso observando apenas a luz na freqüência de microondas.
Sim. Porque esse campo dentro da cavidade é colocado numa situação análoga exatamente à desse oscilador, essa massinha que oscila em duas posições ao mesmo tempo. Que vai e vem ao mesmo tempo. Esse estado foi produzido, mas a pergunta que surgiu depois é: “como é que você mede isso?”. E a idéia para medir foi mandar um segundo átomo, sensível a esse estado do campo, para dentro da cavidade. Isso seria análogo a, no caso do gato de Schrödinger, mandar um ratinho, que passa pela cavidade e que é sensível evidentemente ao estado do gato. Então a gente olha o que acontece com o ratinho depois que ele passa pela cavidade. Como essa cavidade é muito boa, não dá para olhar o campo diretamente, porque o campo não sai da cavidade. Então, o que se faz é mandar um ratinho quântico sensível a esse estado do campo e ele assinala que há uma superposição dos dois estados que dá origem a interferência. Ele mede uma espécie de interferência entre os dois estados. E mais ainda: se eu atrasar um pouco o envio do ratinho, dou tempo para a superposição quântica se transformar numa alternativa clássica, como o gato morto ou vivo. Ou seja, mandando um átomo em diferentes tempos, posso seguir o processo pelo qual a superposição quântica se transforma numa alternativa clássica. Essa dinâmica foi proposta e observada experimentalmente. A sugestão de fazer a medida com um segundo átomo foi feita pela primeira vez em 1993, num artigo que fiz junto com o pessoal da École Normale. Em 1996, publicamos um artigo mais detalhado sobre a proposta da experiência, sua dinâmica, o que se esperava, e a experiência foi feita por eles e publicada na Physical Review Letters. A experiência é trabalho deles. O meu trabalho foi na elaboração teórica.

E depois de 96 o senhor avançou nesses experimentos?
Após esse trabalho, começamos a pensar em como poderíamos ter uma informação mais completa sobre o que estava acontecendo dentro da cavidade. E juntamente com um estudante, publicamos uma proposta para medir completamente o estado do campo na cavidade. Para uma partícula clássica, o estado é dado por sua posição e velocidade e isso a caracteriza completamente. Para sistemas quânticos, a situação é mais complicada, mas é possível. Fizemos uma proposta de medir completamente esse estado da luz na cavidade e ela foi implementada na École Normale em julho de 2001. Agora tiveram novos resultados e os estão enviando para publicação. O grupo coordenado por Serge Haroche mediu o estado correspondente a apenas um corpúsculo de luz, um fóton, na cavidade. Não é ainda aquele estado que foi produzido em 96, caracterizado por essa superposição de campos clássicos, mas é um estado essencialmente quântico, em que você só tem um corpúsculo da luz na cavidade.

Então esse é o desdobramento mais recente das propostas teóricas…
São dois desdobramentos. O outro foi publicado no ano passado, na Physical Newsletters. É um trabalho do nosso grupo, feito com a participação de dois estudantes meus, André Carvalho e Pérola Milman, e de um pós-doc, o Ruynet Matos Filho, que propõe uma maneira de proteger estados dessa interação com o resto do universo. A idéia é que eles possam guardar a possibilidade de produzir interferência, o caráter quântico, por mais tempo, ou seja, impedir que esse estado que é uma superposição de dois outros estados se transforme numa alternativa clássica ou desapareça. O artigo foi posteriormente comentado na revista Nature, em setembro ou outubro de 2001. Nossa proposta se refere a aprisionamento de átomos com cargas, os íons, e atualmente não existe nenhum grupo no Brasil que faça isso.

Então, em termos experimentais isso não vai poder ser feito aqui.
Não, não vai poder ser feito no Brasil. Outro desdobramento dessas pesquisas é a idéia de medir estados quânticos de moléculas, num trabalho em colaboração com o professor Nicim Zagury, colega aqui do nosso grupo. De novo, queremos conseguir uma caracterização completa de um estado quântico vibracional de uma molécula. Numa molécula constituída de dois átomos, eles vibram num certo estado, e usando as técnicas que nós propusemos é possível também mapear completamente seu estado vibracional. Nessa linha do limite clássico-quântico é mais ou menos isso que foi feito. Mas desenvolvemos, eu, o professor Zagury, mais o grupo da École Normale, uns trabalhos que têm a ver com fundamentos de mecânica quântica. Publicamos um trabalho propondo um experimento, que lembra até ficção científica, para produzir teletransporte. Do estado de um átomo para um outro átomo. Essa idéia de teletransporte tinha sido mencionada num artigo publicado em junho de 1993, proposta por um grupo de pesquisadores, entre os quais Charles Bennett, que é um pesquisador da IBM. Eles mostraram que era possível, em princípio, fazer uma espécie de fax quântico, teletransportar a informação sobre o estado de um sistema para outro sistema.

Mas, em termos reais, transfere-se isso a partir de que impulso?
Você precisa ter um par de partículas, e esse par é compartilhado pela pessoa que quer transferir a informação e pela a pessoa que vai recebê-la. E esse par tem uma propriedade muito especial, de fato, ela já foi considerada por muitos físicos como a propriedade mais estranha da física quântica: as duas partículas estão num estado que se chama estado emaranhado, o que significa que suas propriedades estão correlacionadas de uma maneira muito mais forte do que qualquer teoria clássica poderia prever. É uma correlação quântica. Ao se medir uma das partículas, isso determina o resultado da medida sobre a outra partícula. E esse sistema dessas duas partículas em estado emaranhado, uma com uma pessoa e a outra com uma segunda pessoa, é o que nós poderíamos chamar de máquina de teletransporte. Se essa pessoa, chame-se Alice, quer enviar a informação para a outra, Bob, ela faz sua partícula, cujo estado ela quer informar a Bob, interagir com a outra partícula do par que está com ela. Em seguida, ela faz medidas sobre essas duas partículas e informa o resultado das duas medidas que faz a Bob. E só com o resultado dessas duas medidas Bob pode reconstituir o estado original da partícula de Alice. Não se sabia como implementar isso experimentalmente. E o artigo que publicamos foi o primeiro com uma proposta de realização experimental desse teletransporte, mas ela até hoje não foi implementada experimentalmente. É uma experiência difícil, mas temos esperança de que se realize, talvez não exatamente na forma que propusemos, mas numa forma aproximada, simplificada.

Professor, eu queria lhe fazer algumas perguntas com base num artigo seu que publicamos em setembro de 1999, em que o senhor comentava as perspectivas da Física sob o título provocativo, “Está a Física esgotada?” Para começar: continuamos hoje sem uma teoria que permita entender o espectro de massas e de cargas das partículas elementares até agora descobertas?
Sim, continuamos, e acho que esse é um grande desafio para o século 21.

Mas temos chances?
Acho que temos. Quando vemos a história da ciência e os desafios que foram superados, acho que há razão de otimismo. Há várias pessoas trabalhando nessa direção, há a teoria das cordas que está sendo desenvolvida, embora ninguém saiba se realmente ela vai conduzir a uma resposta satisfatória, porque está se defrontando com um impasse. Devo dizer, primeiro, que essa não é minha área de pesquisa. Mas a física de partículas atualmente é uma espécie de catálogo zoológico em que você tem uma grande quantidade e partículas. Cada vez aparece uma partícula nova, cada uma tem sua massa, e como os físicos prezam muito a economia das teorias? não confundir isso com teorias econômicas -, o estado atual da teoria de partículas deixa os físicos insatisfeitos. Seria muito interessante encontrar uma teoria unificadora, que permitisse extrair os valores das massas e das cargas. Essa é uma questão que possivelmente está ligada a uma outra grande questão da física neste século, que é a questão da unificação da gravitação com a física quântica.

Continuamos então longe da unificação das duas grandes teorias?
Tão longe quanto em 1999. Agora, certamente, nessa área pode ocorrer uma nova revolução conceitual na Física, do gênero da que ocorreu quando apareceu a física quântica no início do século 20.

Para fechar esse sub-bloco das questões teóricas da física: como o senhor vê a relação hoje entre a física e a biologia, na medida em que a biologia foi entrando fundo numa espécie de quântica da matéria biológica?
Eu conheço um físico alemão excelente, Ted Hamsch, candidato ao Nobel de física, que comentando as afirmações de que a física não é mais tão importante e que a biologia está se tornando a ciência do século 21, brincando, disse assim: “pois é, e a gente sabe que na medida em que os conhecimentos na biologia e na química são aprofundados, elas se transformam em física. Eu não vou tão longe, acho que há métodos específicos nessas ciências, mas penso que, à medida em que a biologia for se aprofundando, a física vai assumir um papel cada vez mais importante dentro dela. Acho mesmo que já assume. Mecanismos moleculares já são entendidos, atualmente, através da física. Há instrumentos inventados por físicos, como as pinças ópticas, que estão sendo extremamente úteis em pesquisas biológicas. Então, a tendência é no sentido de a física ocupar um terreno cada vez maior nos estudos de biologia.

Mas aquela idéia de uma linguagem comum para as várias ciências exatas e biológicas continuam uma utopia.
Acho que é uma utopia, não sei se jamais será realizada, quer dizer, existem métodos próprios para cada ciência. Linguagens comuns se desenvolvem em função de problemas específicos que são atacados em comum por biólogos e físicos ou químicos. Essa interação, sim, vai crescer cada vez mais.

Quais são suas expectativas atuais quanto às aplicações práticas da Física?
Começando com um pouquinho de história: quando olhamos o desenvolvimento da ciência e da tecnologia nos anos 20, observamos que a física quântica foi iniciada por um grupo de jovens entusiasmados, na faixa dos vinte e poucos anos (Schrödinger era mais velhinho, tinha trinta e poucos anos, acho que Max Born também era mais velho), cuja única preocupação era entender a natureza. Essa era a motivação deles. Jamais imaginariam que aquelas descobertas que eles estavam fazendo, e que produziram uma grande revolução conceitual na nossa maneira de entender a natureza, iam resultar numa grande revolução no cotidiano das pessoas, na invenção do transistor. Foi graças ao transistor que tivemos a revolução da informática, porque ela seria impossível com as válvulas que queimavam a todo instante. A física quântica resultou no laser, que trouxe também uma revolução na medicina e nas comunicações? e até na estética. Em 1960, quando o primeiro laser foi demonstrado, as pessoas o consideravam uma solução em busca de um problema. Ninguém sabia para que aquilo ia servir. Isso foi há pouco tempo, 40 anos. Assim funciona a ciência. Essa é a relação entre a ciência e a tecnologia, freqüentemente. A ciência é desenvolvida por pessoas que estão trabalhando em função da grande emoção que sentem em aprofundar seu conhecimento da natureza e sabe-se hoje em dia, com a perspectiva histórica que temos, que essa emoção e esse interesse servem à sociedade. Ainda que eles não tenham essa preocupação. E é importante que não a tenham, que sua cabeça e energia estejam totalmente concentradas na pesquisa que fazem. Outra conseqüência da física quântica importantíssima: ressonância magnética nuclear. E assim poderíamos mencionar várias outras conseqüências que mudaram nosso cotidiano. Então, a questão que temos que nos colocar é: o que pode resultar das pesquisas que são feitas hoje em dia?. A maneira mais fácil de responder a essa pergunta é: é impossível prever. As previsões são freqüentemente pouco imaginativas com relação ao que acontece depois. Tomando isso como preâmbulo, o que podemos ver é uma atividade frenética da comunidade científica internacional, no sentido de desenvolver novos materiais que permitam manipular a informação em nível quântico. E há fortes motivações para isso. Uma das motivações é a chamada lei de Mohr, que foi postulada por um dos fundadores da Intel em 1965. Ele notou que o número de transistores em um chip de computador dobra a cada 18 meses? atualmente o tempo diminuiu, até. Então, para se ter uma idéia, os primeiros chips tinham uma dezena de transistores; o Pentium 4 tem 42 milhões de transistores. Se essa evolução continua, em torno do ano 2015 vamos ter, cada bit de informação associado a um único átomo. Atualmente cada bit é executado por um transitor, que é um componente eletrônico que tem milhares de átomos. E aí os chips de silício poderão ter ido pro espaço, embora haja margem para incrementá-los. Quando chegarmos nessa situação duas coisas podem ocorrer. Uma é a saturação da lei de Mohr, e os desenvolvimentos da computação vão ter que ser no sentido de achar novas estruturas de computadores, computação paralela, computação específica para certos temas, arquiteturas específicas etc. A outra linha possível é que se descubram novas maneiras de calcular num nível atômico.

Ou seja, ultrapassaríamos a fronteira do 1 átomo em 1 bit.
Usaríamos essa fronteira para desenvolver novos algoritmos, novos esquemas de computação, que usam a física quântica para calcular. Há outras coisas que estão aparecendo: possibilidades de elaborar estruturas, cuja dimensão típica é a do nanometro, dez a menos nove metro, o que também abre uma série de possibilidades, inclusive na medicina. Fala-se agora da nano-robótica. Nós estamos entrando numa era fantástica da tecnologia.

Duas coisas mais: nesse universo que o senhor nos faz descortinar, qual é a situação brasileira? E depois eu gostaria que o senhor comentasse se não lhe preocupa, nesse fantástico mundo novo, o lado da sombra que a ciência também pode ter.
Em primeiro lugar, a questão do Brasil. O país tem passado nos últimos 30 anos por um desenvolvimento da física extremamente importante. A física no Brasil, na sua origem, era muito teórica, até pela falta de oportunidade de compra de equipamentos. Então você tem esses grandes nomes ligados à teoria de campos, à física de partículas, César Lattes, Tiomno, Leite Lopes, Mário Shemberg… essa é a origem… O César Lates já fez depois um trabalho experimental, com raios cósmicos, e isso foi uma evolução muito interessante Depois, houve uma evolução no sentido de desenvolver outras áreas. A física da matéria condensada teve grande desenvolvimento nos últimos 30 anos. Apareceram grupos experimentais extremamente competentes, conhecidos internacionalmente, fazendo um trabalho de fronteira. E essa foi uma evolução muito importante da física. Mais ainda, nas regiões onde a física foi apoiada de forma mais contínua, começou a haver uma ramificação tecnológica das pesquisas realizadas nas universidades. Esse é o exemplo do pólo de alta tecnologia de São Carlos, de Campinas, possíveis graças ao apoio continuado que teve a ciência no estado de São Paulo. Agora, acho que nós devíamos olhar isso também com espírito crítico, não ficar só no oba-oba e perguntar o que pode ser feito para melhorar a física brasileira.

E onde estão os buracos?
Existe um problema sério que eu considero que tenha a ver com necessidade de federalização da física no Brasil. O que foi feito no estado de São Paulo é um exemplo para o resto do país. Enquanto ele não for seguido vai haver uma discrepância muito grande entre o que está sendo feito em São Paulo e o que está sendo feito no resto do país. Isso não é saudável para a física brasileira e, em particular, não é saudável para a física feita em São Paulo, porque reduz os efetivos, diminui as oportunidades de trabalho para os estudantes formados, diminui as interações possíveis.

Isso implica a necessidade de um apoio permanente no âmbito estadual mesmo.
Também. Acho que as fundações estaduais devem ser incentivadas. A Faperj teve um desenvolvimento importante nos últimos anos, uma quantidade de recursos que jamais teve, isso deve ser reconhecido. Por outro lado, há que se ver o seguinte: estados que não têm fundações de amparo não vão fazê-las de um dia pro outro. De nada adianta o governo federal ficar insistindo com os governadores, porque não é do interesse político deles privilegiar essa área científica. Portanto acho que é uma obrigação também do governo federal, uma responsabilidade do governo federal, esse apoio à pesquisa. E o governo federal tem mecanismos para fazer isso.

Ou seja, onde os estados tiverem a possibilidade, que invistam. Onde os estados não tiverem recursos nem interesse polític, que o governo federal entre com os recursos a sério.
Exatamente. O governo federal tem possibilidade de fazer isso. Há certos programas que estão sendo propostos agora, os fundos setoriais, os institutos do milênio, o fundo verde-amarelo… Funcionam, na medida em que complementam um apoio básico importante à pesquisa. Mas não dá para não contar com recursos de apoio à pesquisa espontânea. É preciso apoiar o pesquisador individual. E isso não é uma tese nossa apenas. Recentemente, a National Academy of Science publicou um trabalho extenso sobre a física nos Estados Unidos? devem ter feito também sobre outras áreas, mas, em particular, conheço o trabalho sobre a física? e na série de recomendações que faz existe uma, em negrito, no sentido de que as agências financiadoras apóiem fortemente o trabalho individual do pesquisador para assegurar o desenvolvimento da ciência. Sem isso não há o desenvolvimento criativo, porque as idéias novas freqüentemente saem do pesquisador isolado. Isso certamente está faltando aqui no país.

E, para finalizar, sobre as sombras?
Deixe eu dizer também uma coisa que é importante com relação às perspectivas de aplicação aqui no Brasil. Recentemente estive numa reunião de trabalho do programa nacional de nanotecnologia e pude ver que tem pessoas aqui no Brasil, espalhadas pelo país, com todo o conhecimento necessário à produção de nanomateriais. Tudo, sabem tudo sobre isso. Só falta a indústria. O conhecimento nós já temos. Nós precisamos da indústria. Agora, para ter indústria é preciso ter – algo que aparentemente há algum tempo atrás era considerado até expressão politicamente incorreta -, política industrial. Outros países fizeram e fazem isso, política industrial. A informática nos Estados Unidos não se desenvolveu sem uma política industrial, a indústria aeronáutica também…

Mas poderíamos usar o exemplo da aeronáutica para o Brasil mesmo, uma grande indústria desenvolvida com um grande apoio à pesquisa básica ali no ITA…
O ITA e a Embraer, claro.Então nós precisamos multiplicar os ITAs por esse país, multiplicar as Embraer, multiplicar os centros de pesquisa da Petrobras… Temos uma tradição de pesquisa em empresas estatais aqui no Brasil que não devemos rejeitar. Temos que fazer as pazes com a nossa história. Podemos pensar em novas modalidades de pesquisa, em empresas privadas, mas ao mesmo tempo proteger a nossa tradição de pesquisa em estatais, que é muito importante. A Embrapa deu uma contribuição fabulosa à agricultura brasileira. Então nós não devemos apagar essa história, pelo contrário, devemos respeitá-la.

Recado dado. E eu queria um breve comentário sobre essa questão da sombra que sempre fica…
Existiu e existe freqüentemente, em vários grupos da população, um sentimento, digamos, anti-ciência, e que atribui à ciência não só os benefícios que trouxe para a humanidade mas também os malefícios. Por exemplo: as explosões de Hiroshima e Nagasaki, os perigos nucleares? da contaminação radioativa, fala-se agora dos efeitos da guerra biológica… Acho que o sentimento anti-ciência envolve uma grande confusão entre atividade científica e controle democrático da utilização da ciência. Evidentemente a utilização da ciência deve ser objeto de uma ampla discussão na sociedade, não é assunto só dos cientistas. E de fato, historicamente, não tem sido assunto só dos cientistas. É muito importante que a sociedade participe das decisões sobre as aplicações da ciência, mas é claro que para participar ela tem que estar informada, e nesse ponto a divulgação científica tem papel importantíssimo. É nossa responsabilidade, dos cientistas, informar à sociedade o que está sendo feito, para que ela possa decidir sobre as aplicações dessa ciência. Há outra coisa: pode ser uma posição idealista, mas acho que o cientista não deve se comprometer com pesquisa secreta, que freqüentemente não é secreta por causa dos inimigos do país, mas por comodidade dos governos que, ao financiar essa pesquisa não tem que prestar contas à sociedade. Muitas vezes é confortável até para os cientistas que dela participam, porque não têm que prestar contas de suas atividades aos colegas, nem se submeter ao julgamento científico desses colegas. Então a pesquisa secreta é ruim por vários pontos de vista. Ela protege governos da crítica da sociedade, protege cientistas da crítica de seus pares e freqüentemente são secretas só para as sociedades onde se desenvolvem.

A sua relação com a ciência, com seus progressos, com a invenção quase de um mundo prometido pela ciência são mais amorosas que outra coisa, não?
Certamente. Acho que a ciência, para quem está envolvido com ela em geral, é antes de mais nada uma atividade lúdica. Você faz ciência porque gosta de fazer aquilo. Depois disso é que aparecem outros aspectos, que são muito importantes também. Mas o cientista que não experimente esse caráter lúdico da pesquisa não será um bom cientista. Depois, vem uma reflexão, que é importante, de que nós somo seres humanos fazendo ciência, cidadãos que fazem pesquisa. E como cidadãos temos uma responsabilidade social que deve se manifestar dentro da nossa área, inclusive, divulgando o que estamos fazendo, trabalhando na formação de estudantes, etc. A gente devia se lembrar todo dia, ao sair de casa e caminhar para a universidade, do seguinte: “faço pesquisa, faço física num país que é um dos campeões mundiais da desigualdade social. Tenho esse privilégio e essa responsabilidade”. Então acho muito importante antes de mais nada que a gente trabalhe direito.

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