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Ambiente

Cicatrizes da ocupação

Mapa do Nordeste por satélite retrata devastação da caatinga e litoral

FABIO COLOMBINICaatinga: destruição da flora desse bioma tira o hábitat dos animais e o sustento dos sertanejosFABIO COLOMBINI

Depois do retrato da Amazônia apresentado há oito meses (Pesquisa FAPESP nº 67) a Embrapa Monitoramento por Satélite, centro de pesquisa do governo federal sediado em Campinas, desvenda as marcas da ocupação humana do Nordeste: uma nova história da região pode ser contada a partir do colorido mosaico que acaba de ser montado com 123 imagens de satélite, que cobrem nove Estados e mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados. As marcas evidenciam, de um lado, a atual atividade econômica – ligada à irrigação, à expansão agrícola e à modernização da malha viária – e, de outro, sérios problemas ambientais, com riscos de perda do bioma caatinga, de salinização de terras irrigadas, exploração predatória de manguezais e desmatamento de reservas e chapadas.

A exemplo do que ocorreu com a Amazônia, os dados do trabalho, coordenado pelo ecólogo Evaristo Eduardo de Miranda, foram agregados em CD-Roms e estão disponíveis também na Internet e em papel fotográfico. Na verdade, já foi feito o levantamento de todo o território nacional, de modo que ainda este ano serão mostrados os mosaicos das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, completando um retrato inédito da atual paisagem brasileira.As imagens servem a estudos comparativos, sobretudo se juntadas à cartografia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): pode-se superpor uma imagem de satélite em transparência sobre mapa temático da mesma área. “O Nordeste dispõe de uma cartografia bastante rica”, comenta Miranda. “O cruzamento de dados com essa imagem precisa permite que problemas sejam detectados, contornados e corrigidos, além de poder apoiar tecnicamente as decisões”.

O sentido das cores
O mosaico nordestino revela uma dinâmica muito grande: urbanização crescente, transformações em larga escala no semi-árido – devidas sobretudo a projetos de irrigação, assentamentos e modernização pecuária -, expansão da ocupação agrícola mecanizada nos cerrados e expressivo desenvolvimento da infra-estrutura – estradas e redes elétricas, por exemplo -, resultante da transformação comandada pela expansão das cidades e do setor primário. Há também uma constante: as marcas da destruição de ecossistemas, principalmente ao longo do litoral, da Bahia à Paraíba, pela expansão das atividades de hotelaria e de especulação fundiária. Miranda enfatiza uma utilidade um tanto inesperada: fornecer dados para democratizar o debate sobre transposição das águas do rio São Francisco.

Doze pesquisadores trabalharam por um ano e meio no desenvolvimento de programas de produção de mosaicos e na uniformização das cores das imagens do satélite norte-americano Landsat 7. Com aproximação de até 30 metros, as cores dos nove Estados são traduzidas em dados ambientais. Contrapostas aos tons verdes e azuis, as tonalidades rosas e avermelhadas indicam contrastes ambientais, pois correspondem a áreas desmatadas ou solos preparados para plantio. Cultivos em estágio precoce aparecem nesses tons, em formas geométricas regulares. Cidades e povoados também surgem em rosa, lilás e tons de vermelho.

As salinas típicas do Rio Grande do Norte têm tons azulados fortemente contrastantes com seu entorno. Rios, lagos, represas e açudes vão do azul-escuro ao preto – quando têm águas claras onde a luz do sol penetra e quase não é refletida. Já o tom azul-claro para áreas de água denuncia excesso de material em suspensão, como argilas ou poluentes. Áreas de aqüicultura para criação de camarões ocupam parte das salinas e de seu entorno, em áreas vizinhas a manguezais. É possível identificá-las pela regularidade geométrica dos tanques, pela presença da água e por sua posição próxima dos mangues.

Os projetos de irrigação para fruticultura do médio São Francisco, no pólo Petrolina-Juazeiro, deixam marcas verdes na caatinga. Em contrapartida, a expansão da pecuária por meio de novas tecnologias de manejo da caatinga acende um sinal de alerta para a preservação desse ecossistema.

Caatinga em perigo
O sertão pernambucano e o oeste baiano têm manchas preocupantes, referentes à perda de áreas da caatinga – e esse pode ser um dos maiores danos ambientais à região. Na Chapada do Araripe – ilha verde no meio do sertão semi-árido, na divisa do Ceará com Pernambuco, conhecida pela diversidade da flora -, a recente expansão da pecuária provoca desmatamento intenso com graves implicações: rebaixamento da vegetação, excesso de uso do pasto pelo gado e plantio de capim exótico – o buffel, trazido do Texas, Estados Unidos.Para o pesquisador, um manejo ambientalmente aceitável seria: para cada 10 hectares de caatinga, apenas 1 hectare de pasto com capim exótico. No entanto, o desmatamento tem crescido muito e, segundo Miranda, os danos vão muitíssimo além disso: “A alteração no recobrimento do solo e a intensificação na ocupação da caatinga alteram a dinâmica hídrica: a água da chuva não é interceptada pelas folhas, o solo absorve menos a água – que escorre mais rápido, provoca enchentes e depois o lugar fica mais seco, pois não armazena tanta água”. Também se altera o potencial de uso desse bioma.

É a caatinga que normalmente fornece lenha de cozinha, madeira para construção, fibras para artesanato, folhas e frutas (umbu e cajá, por exemplo) para alimento de animais domésticos e selvagens, além de medicamentos tradicionais. É também um reservatório de proteína animal, pois sustenta, sobretudo na seca, os animais domésticos e os selvagens, caçados pelo sertanejo. “Todo esse delicado e encadeado equilíbrio tradicional pode se perder”, alerta Miranda.

Outra alteração decorre da expansão da agricultura mecanizada em áreas pioneiras do oeste da Bahia, sul do Piauí e sul do Maranhão: são grandes empresas que cultivam soja, algodão e milho em larga escala. “Essa atividade, ao mesmo tempo que desenvolveu a região e estimulou o surgimento de centros urbanos, acarretou um dos mais intensos e concentrados processos de desmatamento recente no país, até agora pouco monitorado”. As extensas plantações de caju para exportação da castanha, no Rio Grande do Norte, Piauí e Ceará também produziram desmatamentos significativos.

No sul do Piauí, o desmatamento na Serra da Capivara inclui áreas com 15 quilômetros quadrados de extensão. Em Cariris Novos, fronteira com o Ceará, onde há nascentes de rios, vê-se uma área desmatada ainda maior, de 25 quilômetros quadrados. Na mesma região, a expansão da colonização agrícola no vale do Gurguéia reduz rapidamente a vegetação nativa.

Oásis
Na Paraíba, o mosaico evidencia a urbanização crescente do sertão nas regiões de Souza, Cajazeiras e Pombal. E mostra em que medida o grande projeto de irrigação de São Gonçalo, no centro do Estado, está comprometido pela salinização da terra.O mapa do Rio Grande do Norte revela a nova ocupação econômica da Chapada do Apodi, na divisa com o Ceará, tomada por projetos de irrigação e agricultura intensiva. No litoral, expandiu-se nos últimos dez anos a aqüicultura do camarão, hoje uma das maiores fontes de renda do Nordeste.

No sul do Ceará, destaca-se em verde o oásis do Cariri. As dunas do extenso litoral, a Serra do Baturité e Orós – maior açude nordestino, alimentado pelo Jaguaribe – dão tons verdes ao cinza e ao ocre que dominam as imagens.

Estrada da Mula
O Maranhão forma um dos mais belos mosaicos, pela combinação de cores. Tem a maior área de reservas indígenas do Nordeste e as imagens não apontam problemas relevantes de preservação, mas retratam uma diversidade ambiental que vai do semi-árido da caatinga à exuberante porção de floresta amazônica a oeste. “É um Estado que no século 19 viveu um desenvolvimento agrícola intenso”, acentua Miranda. A terra gravou marcas dessa atividade: a Estrada da Mula, caminho pisado por mais de um século pelos animais de carga, aparece em forma de uma linha esbranquiçada. Ela cruza o Estado de oeste a leste, até o rio Parnaíba, onde a carne-de-sol era embarcada para outros mercados. Outros destaques maranhenses são a hidrovia do Tocantins, a ferrovia de Carajás (que leva minério de ferro ao porto de Itaqui) e um ponto preto que revela a fumaça emitida do pólo industrial de ferro gusa em Açailândia.

Mais diversidade
A Bahia precisou de 36 imagens, cada uma com 34 mil quilômetros quadrados. O cenário baiano também é muito diversificado. O oeste, antes ocupado pelo cerrado, abriga culturas mecanizadas numa área de quase 30 mil quilômetros quadrados, com largo uso de irrigação por pivô central – facilmente notada pelos círculos verdes que deixa nas imagens.Na sub-região do Baixo Irecê, noroeste baiano, vê-se a expansão da cultura do feijão nas últimas décadas e, no além-São Francisco, a consolidação da pequena agricultura de colonização na Serra do Ramalho, às margens do rio. No centro do Estado, nota-se a recente expansão da cafeicultura em trechos da região da Chapada Diamantina. E, nos mais de 200 quilômetros do litoral norte baiano, aparecem as marcas de uma ocupação urbana organizada e crescente, ligada ao turismo.

Foi mais difícil compor o mosaico do Nordeste – em especial o da Bahia – que o da Amazônia, não só pela diversidade de paisagens, mas principalmente pelas características climáticas: uma época do ano é muito chuvosa, outra totalmente seca. E, freqüentemente, a quantidade de nuvens atrapalha a captação de boas imagens no horário em que o Landsat 7 passa sobre a região, por volta das 10 horas da manhã. “No semi-árido, o clima é frio à noite e leva à formação, pela manhã, de pequenas nuvens que se dissipam por volta do meio-dia”, diz Carlos Assis Paniago. “Esses pequenos colchões de nuvens estão presentes em alguns pedaços do mosaico, porque não conseguimos imagens totalmente livres deles.”

Paniago sabe que compor o mosaico é bem mais do que colar pedaços: “As emendas devem ser corrigidas, porque as passagens do satélite são diagonais e cada passagem registra um dia, de modo que as condições de luz variam e precisam ser equalizadas”. Além de fazer emendas perfeitas, ele transformou arquivos eletrônicos – tão grandes que só podem ser lidos em estações de trabalho – em páginas da Internet. As imagens foram tratadas com programas de domínio público e outros desenvolvidos na Embrapa.

Popularização
O mosaico nordestino custou cerca de R$ 1,1 milhão e foi quase todo financiado pelo Ministério da Agricultura. Os mapas estão disponíveis na Internet (www.cnpm.embrapa.br), em CD-Roms e em mapas impressos em papel fotográfico. Os CDs correspondentes a cada Estado custam R$ 40,00. No endereço da Internet, é possível obter gratuitamente o detalhamento técnico, explicações de como consultar, bem como as imagens – em definição 50% menor que nos CDs, mas com todas as informações levantadas. O formato é auto-explicativo e permite aproximar as imagens em várias escalas. A facilidade de uso estimula o acesso: em um ano e meio, osite foi visitado mais de 800 mil vezes.

O Projeto
Expansão da Rede Local da Embrapa Monitoramento por Satélite (nº 96/10284-9); Modalidade Programa de infra- estrutura; Coordenador Evaristo Eduardo de Miranda – Embrapa Monitoramento por Satélite; Investimento R$ 115.320,00

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