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GENÔMICA

O Brasil na vitrine

O seqüenciamento inédito de um fitopatógeno confere reconhecimento internacional à ciência brasileira

A ação destrutiva da bactéria Xylella fastidiosa: ela se multiplica na laranjeira e obstrui lentamente os vasos da planta, que acaba produzindo frutos duros e ácidos

ELLIOT W. KITAJIMA/USPA ação destrutiva da bactéria Xylella fastidiosa: ela se multiplica na laranjeira e obstrui lentamente os vasos da planta, que acaba produzindo frutos duros e ácidosELLIOT W. KITAJIMA/USP

“Samba, futebol e…genômica. A lista de coisas pelas quais o Brasil é reconhecido subitamente ampliou-se”. Essa foi a manchete bem-humorada que a revista inglesa The Economist destacou em sua edição de 20 de julho de 2001, quando pesquisadores brasileiros acabavam de realizar mapeamento genético da bactéria Xylella fastidiosa.O artigo científico, elaborado por 116 dos 192 cientistas que participaram do projeto Genoma- FAPESP, ganhou a capa da revista Nature (edição 6.792, de 13 de julho de 2000). Uma honra inédita: foi a primeira vez, nos 131 anos de existência dessa conceituada publicação científica, que um artigo produzido por pesquisadores brasileiros mereceu destaque na capa.

Além do inédito seqüenciamento de um fitopatógeno, os pesquisadores brasileiros descobriram fatos intrigantes: muitos dos genes da bactéria são inteiramente novos, enquanto outros só eram conhecidos em animais. “Cerca de 40% dos genes da Xylella jamais foram descritos antes. E 10% são genes que só haviam sido identificados infectando animais, geralmente com papel específico em mecanismos de patogenicidade, ou seja, de adesão às células do hospedeiro”, revelou Andrew Simpson, coordenador do projeto de seqüenciamento. Em sua opinião, a presença, numa planta, de genes similares aos que infectam mamíferos sugere que possa haver uma correlação entre a forma como as bactérias infectam plantas e animais.Assim, o estudo da Xylella, como de outros fitopatógenos, poderia ajudar a compreender até mesmo infecções que afetam os seres humanos.

A bactéria Xylella fastidiosa é uma praga que ataca pés de laranja, base da citricultura paulista – fastidiosa porque é de maneira lenta e silenciosa que ela rouba a saúde da planta, quase como se sentisse tédio pela destrutiva rotina diária. Não se pode atribuir a mesma característica aos cientistas que a estudaram.

Andrew Simpson...

MIGUEL BOYAYANAndrew Simpson…MIGUEL BOYAYAN

Nenhuma equipe de pesquisa em todo o mundo jamais havia feito um seqüenciamento de fitopatógeno. Junta-se, então, um grupo de pesquisadores de um país sem projeção na área de biologia molecular, e o trabalho surge concluído em pouco mais de dois anos. O programa teve início em 1998. Em 6 de janeiro de 2000, quatro meses antes do prazo previsto, já apresentava o mapeamento completo da bactéria, embora o trabalho tenha se revelado maior do que se imaginava. Com quase 2,7 milhões de pares de bases nitrogenadas ou nucleotídeos em seu cromossomo, a bactéria é um terço maior do que os pesquisadores imaginavam.

Dois anos antes, quando o bioquímico Fernando Reinach, do Instituto de Química da USP, sugeriu ao diretor científico José Fernando Perez que se fizesse o seqüenciamento completo de um microrganismo, ninguém imaginava que o resultado alcançaria tamanha repercussão. Afinal, a promissora área de biotecnologia era uma das poucas em que o Brasil situava-se aquém em relação a grupos internacionais. “Antes do projeto Genoma, chegou-se a mandar vírus de sarampo para ser seqüenciado em Atlanta – algo que se faz em um dia, pois os vírus são estruturas mais simples – porque aqui não havia quem pudesse executar esse trabalho. Nos perguntamos, então, o que poderia ser feito. Mandar jovens estudar fora? Criar um instituto de notáveis?”, lembra Perez.

A solução surgiu na forma de uma grande rede de laboratórios, irmanados em torno de um projeto comum. A rede virtual ONSA, sigla para Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis e um trocadilho com o nome do belo felino brasileiro, acabou se mostrando, realmente, o pulo do gato desse projeto, o segredo de sua eficiência: quase duas centenas de pesquisadores trabalhando, cada qual no seu laboratório, mas entrosados com o espírito de montagem de linha industrial, todos sob a coordenação precisa de um especialista. Nessa função, estava o bioquímico Simpson, do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer, que hoje coordena o Projeto Genoma Brasileiro (BRGene, do CNPq), integrando 25 laboratórios vinculados a institutos de pesquisa, universidades federais e estaduais.

...  e Fernando Reinach: liderança premiada

MÁRCIA ZOET/AG. ARGOS… e Fernando Reinach: liderança premiadaMÁRCIA ZOET/AG. ARGOS

O organismo deveria ser uma bactéria, complexa o suficiente para desafiar e gerar competência. A área agrícola foi uma escolha quase natural, uma vez que a saúde já era competitiva demais. A eleita foi a Xylella, bactéria identificada em 1987 pela pesquisadora Victória Rossetti, do Instituto Biológico de São Paulo. A Xylella quase foi excluída, pois ninguém sabia cultivá-la. Mas, a convite do Fundo Paulista de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), que também apoiou o projeto, veio ao Brasil o pesquisador francês Joseph Bové,que já havia trabalhado com a bactéria e sabia fazer a cultura.“Ele foi bastante convincente do ponto de vista técnico”, diz Perez. Em 14 de outubro de 1997, foi feito o anúncio oficial do Genoma- FAPESP e seu primeito projeto. “E em dezembro a Copersucar nos procurou para fazer o Genoma Cana”, lembra Perez. Surgia outra rede de cooperação, coordenada pelo pesquisador Paulo Arruda, da Unicamp – agora também trilhando o caminho empresarial ao tornar-se um dos sócios da Allelyx, nova empresa de biotecnologia.

Os projetos de seqüenciamento da Xanthomonas citri, bactéria responsável pelo cancro cítrico, e do Câncer, logo se somariam. “Tivemos um salto em termos de autoconfiança. Ficamos mais corajosos”, brinca o biólogo molecular Emmanuel Dias Neto. Sob orientação do pesquisador Andrew Simpson, Dias Neto (“fui o primeiro orientando dele no Brasil”, orgulha-se) desenvolveu uma técnica inovadora de seqüenciamento genético, a ORESTES, sigla para Open Reading Frames EST Sequences, que foi amplamente utilizada no projeto Genoma Câncer. Em vez de ler o gene a partir das pontas, como os métodos tradicionais, o método Orestes prioriza a leitura das informações que se encontram na região central da molécula de RNA mensageiro. E essa área central tem importância fundamental para o estudo funcional do gene: é nela que se concentra a região codificadora de proteínas, ou seja, as informações do código genético que se traduzem em proteínas e, conseqüentemente, os segredos que os cientistas buscam desvendar. “No lançamento do projeto Genoma Humano do Câncer, Reinach disse que, na Xylella, buscava-se estudar um organismo que ninguém ainda havia estudado, por meio de uma técnica conhecida.Era uma forma de alcançar competência técnica. Apenas um ano e meio depois, o Brasil iria pesquisar o organismo mais estudado do mundo com uma técnica nova”, destaca Dias Neto.

O salto de coragem e competência é uma opinião unânime entre todos os integrantes dos projetos do Programa Genoma. Mas todos concordam, também, que foi um salto feito a partir de base sólida. “Capitalizamos em cima de uma competência já instalada”, afirma Perez.

A rede virtual ONSA: o pulo do gato do Genoma-FAPESP (à esquerda) e Primeira vez: pesquisa brasileira na capa da Nature (à direita)

REPRODUÇÃOA rede virtual ONSA: o pulo do gato do Genoma-FAPESP (à esquerda) e Primeira vez: pesquisa brasileira na capa da Nature (à direita)REPRODUÇÃO

Um exemplo incontestável dessa afirmação é a carreira da geneticista Mayana Zatz, que participou do seqüenciamento da Xyllela. Nos anos 70, a cientista já montava, na USP, um serviço de aconselhamento genético para as famílias. Nos anos 90,destacou-se por seu trabalho na identificação de um gene responsável pela Distrofia de Cintura, enfermidade que deforma músculos de braços e pernas, impedindo a locomoção. Graças a esse trabalho pioneiro e à participação no programa Genoma-FAPESP, Mayana foi uma das cinco vencedoras do Prêmio L´Oreal/Unesco Women in Science de 2001. Atualmente, é diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano, um dos dez Cepids criados pela FAPESP, que já apresenta resultados promissores. Sob coordenação da pesquisadora Maria Rita Passos-Bueno, a equipe do Centro de Estudos do Genoma Humano acaba de concluir um estudo no qual revela que uma mutação genética pode aumentar em até duas vezes e meia o risco para o câncer de próstata. A alteração de um único nucleotídeo no gene COL18A1, situado no cromossomo 21, pode alterar a produção de endostatina, cuja ação é a de inibir a formação de vasos sangüíneos que alimentam os tumores sólidos. Assim, o gene alterado pode se transformar numa espécie de marcador da doença.

A área de bioinformática, crucial para a genômica, é um bom exemplo. Havia uma terrível carência de recursos humanos e chegou-se a propor a contratação de um especialista de fora. Mas os organizadores do projeto souberam da existência de dois jovens pesquisadores da Unicamp trabalhando nessa área: João Meidanis e João Setúbal, aos quais se somaria depois um terceiro João, o Kitajima. “Nós já realizávamos pesquisa em bioinformática, do ponto de vista teórico. Minha tese de doutorado, defendida em 1992, nos EUA, foi sobre problemas computacionais em seqüenciamento de genomas e anotação de genes,mas nem todos conheciam o nosso trabalho”, lembra Meidanis. Foi nessa equipe que eles apostaram, com retorno mais do que compensador. E hoje, o governo federal, por intermédio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), segue o exemplo: está investindo R$ 3 milhões na implementação de núcleos de bioinformática em todo o país. “Na minha opinião, o grande desafio é atrair os melhores profissionais de computação para esta área de atuação. E isso se faz investindo na área, criando empregos e posições de pesquisa, não só em universidades, mas também em empresas”, diz Meidanis, que também optou por trilhar o caminho empresarial como um dos sócios da recém-criada Scylla, que atuará em bioinformática – área que será, cada vez mais, uma ferramenta básica para a genômica.

Após as bem-sucedidas experiências de seqüenciamento, os pesquisadores brasileiros enveredam pela complexidade da função desses genes mapeados. Para isso, serão determinantes as descobertas advindas do Programa Rede de Biologia Molecular Estrutural, lançado pela FAPESP em parceria com o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS). “Pela análise da estrutura tridimensional da proteína, podemos determinar sua função nas células”, explica o coordenador do projeto, o bioquímico Rogério Meneghini, diretor do Centro de Biologia Molecular Estrutural do LNLS. Como resultado, pode-se ter a melhoria da qualidade da cana-de-açúcar e o desenvolvimento de plantas mais resistentes à ação de bactérias, como a do cancro cítrico. Busca-se, também, obter variedades de canas resistentes a pragas como a bactéria Leifsonia xyli e o fungo-do-carvão. E há quem sonhe mais alto, com a possibilidade de utilizar a cana-de-açúcar para produzir não apenas açúcar e álcool, mas compostos químicos de interesse para a indústria farmacêutica.

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Genoma Estrutural:o próximo salto

O seqüenciamento de um fitopatógeno ou de um tecido tumoral é uma conquista sem precedentes para a ciência brasileira – mas é, em contrapartida, apenas a primeira etapa de um longo processo, quando se vislumbra, como meta final, a solução de uma praga agrícola ou a cura de um câncer. Depois de descobrir quem são os genes que compõem o material estudado, é preciso saber como eles agem. É como o detetive que, depois de identificar os bandidos, começa a delinear seu modus operandi. Mas, para saber qual é a função de um determinado gene, é preciso, primeiro, identificar sua estrutura.A semelhança com o bandido pára por aqui. Entre os seres humanos, quem vê cara não vê coração. Entre os genes, a aparência – nesse caso, a forma tridimensional – pode dizer tudo. Por isso, o Programa Rede de Biologia Molecular Estrutural, lançado em dezembro de 2000 pela FAPESP, carrega consigo grandes expectativas. Ninguém espera a rapidez dos seqüenciamentos, mas, a longo prazo, descobertas definitivas para a solução de grandes problemas da humanidade. O bioquímico Rogério Meneghini, que coordena o programa, explica que o trabalho parte da clonagem do gene da proteína que se quer estudar. Depois, ele é inserido no chamado “vetor de expressão”, uma bactéria que irá superexpressar o gene, produzindo grandes quantidades da proteína. A terceira etapa é a purificação por cromatografia, obtendo-se a proteína purificada. Depois, vem a cristalização, que desvenda sua estrutura tridimensional. De acordo com a estrutura, a função da proteína pode ser a de carregar oxigênio para as células, mediar a entrada de glicose ou catalisar reações químicas.

“Com o cristal, é possível elucidar a estrutura com o raio X. Trabalhamos junto com o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), que emite luz de diferentes comprimentos de onda, inclusive raio X de alta energia. Ele penetra no cristal e projeta imagem de difração. Então, por métodos matemáticos e científicos, dessa imagem chega-se à estrutura tridimensional”, explica o bioquímico. Ao definir a estrutura, os pesquisadores podem desenhar um inibidor dessa proteína, uma substância que se encaixe perfeitamente nela, anulando sua ação. É, por exemplo, o papel do inibidor de protease do vírus HIV, base do coquetel que tem aumentado a sobrevida de pacientes com Aids. Meneghini alerta que o trabalho não é fácil. A protease, por exemplo, demorou três anos para ser cristalizada. Mas a cristalografia, que permite estudar a estrutura por difração de raio X, não é o único método. Junto com o lançamento do programa foi inaugurado o Laboratório de Ressonância Magnética Nuclear, com dois equipamentos de grande alcance. Com eles, é possível elucidar a estrutura da proteína em solução, o que dispensa a necessidade de cristalização, etapa que funciona como um gargalo no trabalho. O método tem uma limitação: não consegue estudar a estrutura de proteínas acima de certo tamanho. As proteínas maiores têm que ser cristalizadas. Mas cerca de 10 a 15% das proteínas estudadas atualmente podem se beneficiar desse método, que pula a etapa da cristalização e acelera o trabalho.

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