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TEATRO

Interpretação reinventada

Atores-pesquisadores fazem experiências com a arte da atuação

La Scarpetta, montagem de 1997: núcleo Lume realiza pesquisas teatrais desde 1985

DOMINIQUE TORQUATOLa Scarpetta, montagem de 1997: núcleo Lume realiza pesquisas teatrais desde 1985DOMINIQUE TORQUATO

Em um espetáculo teatral, todos os olhos estão, naturalmente, voltados para o palco. É no ator que se concentra a atenção e a emoção da platéia. Para estudar os mistérios que cercam a arte do ator, Suzi Frankl Sperber, docente do Instituto de Estudos da Linguagem e do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), propôs fazer um trabalho mais específico e de longa duração com o núcleo de pesquisas teatrais, que já vinha realizando experiências sobre o tema. A partir de 1997, começou a ser realizado um projeto temático, previsto para terminar em agosto deste ano. “O núcleo, chamado Lume, é ligado à universidade e faz um importante trabalho de pesquisa que produz numerosos outros projetos associados”, diz Suzi, ela própria uma das coordenadoras do Lume.

O cerne da pesquisa é estudar a arte de ator em profundidade e usar o conhecimento adquirido para treinar outros atores. Como o Lume tem 17 anos de atuação ininterrupta, já foram criadas uma metodologia própria para desenvolvimento de técnicas pessoais de representação para o ator, modos se utilizar comicamente o corpo e uma técnica batizada de Mímeses Corpórea, de imitação das ações do cotidiano, entre outras experiências. Suzi explica que o grande problema do ator é aquilo que eles chamam de organicidade. “Se dois atores fazem o mesmo gesto, um pode ser convincente e o outro não. Estudamos as razões pelas quais isto ocorre”, explica. A pesquisadora afirma que as diferenças de um ator para outro decorrem de alguma mudança interior, fundamental, que precisa ser descoberta por eles. “Esse é o grande desafio.”

A origem do trabalho partiu do pesquisador, ator e diretor Luís Otávio Burnier, morto precocemente aos 38 anos, em 1995, alguns meses depois de terminar seu doutorado. Ele passou oito anos na Europa estudando com Etienne Decroux, criador da mímica corporal, e trabalhou com Eugenio Barba, Philippe Gaulier, Jacques Lecoq, Ives Lebreton, Jerzy Grotowski e com teatro oriental. Na volta ao Brasil, criou o Lume dentro da Unicamp, com os atores e pesquisadores Denise Garcia, Carlos Simioni e Ricardo Puccetti. A intenção do núcleo difere de outros projetos de dramaturgia porque o interesse primordial não é a montagem teatral ou a produção artística, mas o ator em situação de representação. O grupo de pesquisa se concentra no como fazer, porque acredita que a técnica e a criação são inseparáveis.

Parada de Rua: performance cênico-musical pela cidade

ABEL SAAVEDRAParada de Rua: performance cênico-musical pela cidadeABEL SAAVEDRA

Um projeto como esse tem diversas vertentes e objetivos. Um deles, já finalizado, foi comparar as técnicas desenvolvidas pela atriz e bailarina japonesa Anzu Furukawa dentro do Butoh, do teatro japonês, com a Mímesis Corpórea, criada pelos atores-pesquisadores do Lume. O encontro resultou numa montagem baseada no livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márques, por sugestão de Anzu, morta no final do ano passado. Os atores viajaram para a Amazônia, região mais próxima do universo descrito por Márques, para coletar material e imitar ações físicas e vocais dos povos daquela região. A técnica Mímesis consiste em observar o que deseja ser imitado e repetir exatamente o que foi visto. O espetáculo foi encenado em 1997 com o nome Afastem-se Vacas que a Vida é Curta, com direção da própria Anzu. O mesmo material coletado deu origem a outra montagem, chamada Café com Queijo.

O contato com o Butoh rendeu ainda outros trabalhos, também de comparação entre o que é feito no Japão e no Brasil. Os idealizadores confrontaram o método da dançarina japonesa Natsu Nakajima com a pesquisa Dança Pessoal – a elaboração e codificação de uma técnica de representação que tem como base a dinamização das energias potenciais do ator. Isto é, essa técnica dá forma às diferentes tonalidades e nuances que compõem corpo e voz de cada ator. Em seguida, o núcleo dirigiu-se para outras imersões para tentar encontrar qualidades como sutileza delicadeza, ingenuidade e aceitação do ridículo. Dessa tentativa surgiu uma outra linha de pesquisa: a arte do clown, a mais antiga das artes do palhaço.

Suzi Sperber dá o mote para entender a técnica e a diferença entre ator e clown: “O clown precisa se despir; o ator precisa se vestir”. A técnica é usada para que o ator se revele e não simplesmente para aprender a ser palhaço.“Há várias linhas de clown, que satirizam a si mesmo, por exemplo.Outras o fazem com o cotidiano, uma espécie de papel desmascarador do que é quase um segredo”, explica.

Um grupo como esse não se furta às performances pelas ruas das cidades e em eventos. O Lume criou a Parada de Rua, um espetáculo cênico-musical itinerante, em forma de cortejo, que busca a teatralização em lugares não convencionais, onde o teatro não chega. A intenção é interagir livremente com o público, provocando e divertindo ao mesmo tempo.

Café com Queijo: pesquisa aproveitada de outro espetáculo

TINA COELHOCafé com Queijo: pesquisa aproveitada de outro espetáculoTINA COELHO

As numerosas experiências feitas pelo Lume têm gerado muitos outros trabalhos dentro da Unicamp. Parte do atores do núcleo está cursando mestrado e  doutorado. A professora Suzi, também uma das coordenadoras do núcleo, usa o conhecimento acumulado em suas aulas. Foram lançados, até agora, dois livros. O primeiro é a tese de doutorado de Luís Otávio Burnier, A arte de ator – Da técnica à representação (Editora Unicamp).O segundo é A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator (Editora Unicamp), de Renato Ferracini, um dos mais importantes integrantes do Lume.Um CD-ROM interativo com vários exercícios acompanha o livro.

O projeto temático, financiado pela FAPESP, junto com investimento da Unicamp, proporcionou também a compra de equipamentos para o núcleo poder trabalhar como um centro de referência de documentação videográfica, fotográfica e de pesquisa. Foram adquiridos equipamento de som, vídeo, informática e iluminação, entre outros, o que permite aos pesquisadores ter acesso a material escrito e de audio-visual. É possível, ainda, apresentar os trabalhos na própria sede do Lume para a população acadêmica.

Toda a pesquisa e as experiências que vêm sendo feita pelo núcleo geraram numerosos espetáculos teatrais e participações em festivais internacionais. O intercâmbio com atores, diretores e pesquisadores estrangeiros é intenso. O núcleo ministra também workshops sobre suas técnicas e orienta novos atores. “Os financiamentos foram importantíssimos para o núcleo”, diz Suzi Sperber. “Mas, mais importante ainda, é o trabalho de ator, que vai continuar sendo desenvolvido aqui, sem prazo para acabar.”

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