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MÚSICA

Operação relâmpago

Ação rápida entre instituições resgatou manuscrito da primeira ópera de Carlos Gomes

O compositor quando jovem: ópera feita aos 25 anos

ARQUIVO EMPORIUM BRASILISO compositor quando jovem: ópera feita aos 25 anosARQUIVO EMPORIUM BRASILIS

A tradição de cautela na tomada de decisões nas universidades e agências de fomento foi salutarmente atropelada em meados de março de 1999. Naquele mês, graças a uma operação relâmpago entre a FAPESP, a Escola de Comunicações e Artes (ECA) e o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), ambos da Universidade de São Paulo (USP), a partitura original da primeira ópera de Carlos Gomes, A Noite do Castelo, foi comprada antes de ir a leilão. Hoje ela está no arquivo do IEB, disponível para pesquisadores.

O documento estaria em mãos particulares e, portanto, praticamente perdido para estudo, se o maestro Ronaldo Bologna, na época na Orquestra da USP, não tivesse avisado ao pianista e professor José Eduardo Martins, do Departamento de Música da ECA, de que a partitura seria posta em leilão pelo seu proprietário, João Leite Sampaio Ferraz Júnior. Sem dinheiro para resolver o problema, Martins procurou o diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez, e expôs o problema.

“Em menos de 24 horas foram tomadas todas as providências, na FAPESP, para a compra do manuscrito”, contou Martins. Ele levou, então, uma proposta para o dono dos originais e os comprou por R$ 20 mil, evitando que fossem a leilão e os preservando para estudos na universidade. Tudo foi tão rápido que o professor escreveu o projeto à mão, na sala ao lado da diretoria científica, para ganhar tempo. “A Fundação não fez mais que cumprir seu objetivo teleológico, que é a pesquisa”, disse Perez.

No começo de maio, houve uma cerimônia de apresentação pública da partitura da ópera, encerrada com um recital do pianista José Eduardo Martins. O pianista executou, obviamente, a abertura de A Noite do Castelo, além de outras peças brasileiras. O documento, por sua vez, foi levado para os laboratórios do IEB, no qual passou por um processo de limpeza e hoje está à disposição de estudiosos de música e de Carlos Gomes. De acordo com a musicóloga e pesquisadora do IEB Flávia Toni, a partitura está em perfeitas condições.“Mas ainda precisa ser estudada e montada”, afirmou. Ela explica que o trabalho a ser feito é enorme.

Partitura de A Noite do Castelo: sucesso de público em 1861

ROMULO FIALDINO/IEBPartitura de A Noite do Castelo: sucesso de público em 1861ROMULO FIALDINO/IEB

“Mal comparando, é como se o pesquisador tivesse de fazer um projeto genoma do manuscrito”, explicou Flávia. Ele está dividido em dois volumes, com 276 e 324 páginas, encadernados em couro e traz as marcas do compositor, como anotações em lápis e a tinta. O documento deve ser cuidadosamente remontado por alguém que saiba muito do compositor e seja um profundo conhecedor de música. “Não dá para um maestro pegar a partitura como está hoje e ler direto.”

Carlos Gomes, um dos mais importantes compositores brasileiros do século 19, escreveu A Noite do Castelo com 25 anos. Foi a única ópera em que ele fez em português. Na época ele estava há um ano na Corte, vindo da Vila São Carlos, antigo nome de Campinas, onde nasceu em 1936. Conhecido apenas como um compositor de modinhas, aspirava escrever óperas como as do italiano Giuseppe Verdi, autor de Il Trovatore, cuja partitura ganhou quando criança do pai, Manuel José Gomes, professor de piano, canto, órgão e violino. Apresentada em 1861 no Teatro Lírico Fluminense do Rio de Janeiro, A noite do castelo foi fundamental para a carreira do compositor porque se tornou um grande sucesso de público e impulsionou sua carreira.

Depois da morte do compositor, em 1896, a filha Ítala deu os originais de presente para seu tio, o músico José Pedro de Sant’Anna, que mandou encaderná-lo em dois volumes.Mas o material não ficou muito tempo com a família. O marido de uma sobrinha de Gomes o deu de presente ao vice-cônsul da Itália em Campinas, Ugo Tommasini. Ele prometeu que, quando voltasse à Europa, deixaria os dois volumes no Brasil. O vice-cônsul não só não cumpriu o trato como o deixou em Paris, a caminho da Itália, em um guarda-móveis, no qual abandonou tudo o que considerou como excesso de bagagem.

Martins: problema resolvido em 24 horas

EDUARDO CESARMartins: problema resolvido em 24 horasEDUARDO CESAR

Após a morte do diplomata, seus herdeiros retiraram os originais do depósito e os colocaram a venda em um sebo, em Paris, onde foram comprados pela mãe de Sampaio Ferraz, em 1961. De volta ao Brasil, os manuscritos ficaram com a família até que ela decidiu levar a leilão, em março de 1999. Foi quando Martins ficou sabendo da história e pediu ajuda da FAPESP.

A Noite do Castelo é uma ópera escrita a partir do libreto de Antônio José Fernandes dos Reis, com base em uma novela de Antônio Feliciano de Castilho. Era um drama bem ao gosto da época e talvez aí esteja a razão de seu sucesso. Trata-se de uma ação passada durante a Idade Média e conta a história de uma noite de festa no castelo do conde Orlando. Leonor, sua filha, era noiva de Henrique, sobrinho do conde. Henrique parte para uma cruzada na Terra Santa e é dado como morto. Leonor então fica noiva de outro cavaleiro, Fernando. A festa é para comemorar esse noivado. Mas no meio da noite chega ao castelo um cavaleiro mascarado. É Henrique, disfarçado. Leonor fica dividida entre os dois. Henrique mata Fernando. O conde surpreende Henrique e mata o mascarado, só depois percebendo quem era. Leonor morre de desgosto.

Na opinião de Martins, na música de A Noite do Castelo “há um frescor, apesar do italianismo dominante, e procedimentos que denotam sua brasilidade”. Flávia Toni vai além. “A composição dessa ópera está em perfeita consonância com os moldes italianos da época, mas é perceptível, no prelúdio e nos primeiros compassos de muitas áreas, um certo ar modinheiro, das melodias que Gomes fazia naquele tempo, que traem o sabor melódico do cancioneiro luso-itálo-brasileiro”, analisa. Agora, resta a outros pesquisadores um extenso trabalho para decifrar e entender cada parte do manuscrito.

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