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Engenharias

Terra de inovação

Centro de Materiais Cerâmicos investiga novas aplicações em siderurgia e produtos elétricos

EDUARDO CESARO Cepid-cerâmica desvendou a tecnologia dos equipamentos que protegem a rede elétrica dos raiosEDUARDO CESAR

O avanço do estudo de materiais cerâmicos tem proporcionado uma série de novos produtos para uso industrial. Duas das mais importantes novidades dessa área saíram recentemente do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde os pesquisadores, coordenados pelo professor Elson Longo, conseguiram desvendar com vantagens inovadoras, inclusive com o registro de uma patente, a tecnologia empregada por empresas internacionais para fabricar dispositivos que protegem as redes elétricas contra sobrecargas causadas por raios.

Eles também fizeram modificações nos refratários cerâmicos utilizados pelas siderúrgicas para produzir aço, que resultaram em significativa economia para a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), de Volta Redonda (RJ). A empresa já economiza US$ 6 milhões por ano com as mudanças feitas no vagão – chamado de carro torpedo – usado para transportar o gusa, o ferro líquido que será transformado em aço.

Essas duas novidades fazem parte das várias linhas de pesquisa do Liec, laboratório que integra o Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), do qual também participam o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), o Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP), e o Instituto de Química de Araraquara, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O CMDMC é um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) selecionados no ano 2000 pela FAPESP. Para esse programa, a Fundação reserva R$ 15 milhões por ano.

Um dos objetivos dos Cepids é o estímulo à pesquisa inovadora, desenvolvendo produtos como o dispositivo cerâmico elaborado no Liec capaz de proteger a rede de transmissão de energia. Chamado de varistor, ele tem dupla função: é isolante e condutor de eletricidade. Ao receber a descarga elétrica de um raio, o dispositivo, instalado em pára-raios entre os fios condutores (que distribuem energia) e a terra, é acionado. A variação de voltagem detectada faz com que a cerâmica se torne condutora. A corrente indesejada é então descarregada para a terra pela cerâmica varistora, evitando danos à linha de transmissão. Quando cessa o efeito do raio, que dura milésimos de segundo, o material cerâmico volta a atuar como isolante.

Existem vários tipos de varistores no mercado mundial e quatro empresas que dominam essa tecnologia: Matsushita, no Japão; Asea Brown Boveri e Siemens, na Europa; e General Electric, nos Estados Unidos. “O varistor é um sistema complexo, tem pelo menos oito componentes formados por óxidos diferentes e uma seqüência de tratamento térmico que são guardados como segredo industrial”, conta o professor Edson Leite, um dos pesquisadores do Liec.

Invenção japonesa
Desenvolvido no Japão na década de 70 para proteger equipamentos de baixa voltagem, o dispositivo foi adaptado pelos norte-americanos para trabalhar com alta tensão. Os varistores disponíveis no mercado são à base de óxido de zinco (ZnO), uma tecnologia decifrada pelo Liec, que também já patenteou uma nova proposta para fabricação desses dispositivos utilizando dióxido de estanho (SnO2), matéria-prima encontrada em grande quantidade no Brasil.

Segundo o professor Longo, também coordenador do Cepid de Materiais Cerâmicos, o de dióxido de estanho é mais resistente contra ambientes químicos agressivos, além de ter maior condutividade térmica. No momento em que o raio cai onde está instalado o varistor, a temperatura chega perto dos 200° Celsius. A descarga elétrica parte da nuvem até o solo e provoca a ionização do ar ao longo do seu percurso, podendo gerar a formação de nitratos. Esses nitratos podem atacar o óxido de zinco, formar nitrato de zinco e destruir o varistor. Longo ressalta que o dióxido de estanho não tem esse problema. “Essa é uma invenção 100% nacional. Todos os artigos internacionais que foram publicados no mundo sobre dióxido de estanho são nossos”, conta.

No Brasil, o risco de blecautes provocados pela queda de raios é muito grande. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cerca de 100 milhões de raios atingem o território nacional por ano. Em março de 1999, dez Estados brasileiros ficaram no escuro durante quatro horas em conseqüência de um raio que caiu em uma subestação no município de Bauru.

Leite ressalta que as empresas geradoras e distribuidoras de energia têm procurado, cada vez mais, proteger seus equipamentos das descargas elétricas provocadas por raios. Esse mercado potencial motivou duas empresas de Minas Gerais e uma de São Paulo a fabricar o varistor de óxido de zinco com a tecnologia desenvolvida pelo Liec. As negociações já estão em andamento. O produto fabricado com dióxido de estanho atraiu a atenção, mas ainda depende de interessados em colocá-lo na linha de produção.

Algumas empresas fabricam pára-raios no Brasil, mas a maioria dos blocos é importada e, segundo Longo, não existe um padrão de qualidade. “Somente um avançado conhecimento de ciência básica pode propiciar a geração desse tipo de tecnologia”, diz. “Essa é a grande jogada.” Ele lembra que uma tecnologia desenvolvida para melhorar peças cerâmicas (azulejos, pisos) foi essencial para chegar aos varistores. “Descobrimos que o oxigênio era fundamental para eliminar o coração negro (defeito no centro da peça, originado durante o processo de queima) das peças de revestimento cerâmico. Esse projeto foi desenvolvido em parceria com a White Martins e está sendo utilizado pela Cerâmica Gerbi.”

Transporte rápido
A pesquisa tecnológica também é um fator de competitividade para as indústrias siderúrgicas. Mas, como em outros setores, as inovações incorporadas à produção de aço conseguem ser mantidas em sigilo por um curto período de tempo. Sempre que há um congresso, as novidades são anunciadas, e os técnicos, em seguida, tratam de adaptá-las. Estar um passo à frente da concorrência, no entanto, faz toda a diferença, como pôde comprovar a CSN.

A novidade que levou a siderúrgica a economizar US$ 6 milhões por ano foi o desenvolvimento de um isolante cerâmico, colocado entre a carcaça de metal e o refratário cerâmico do carro, e de uma tampa, também de cerâmica, que proporcionaram um ganho de 40° Celsius, perdidos anteriormente durante o transporte entre os altos-fornos e o conversor (equipamento utilizado para transformação do gusa em aço pela adição de oxigênio, que reage com o carbono, formando dióxido de carbono). Isso significa que o gusa pode ser feito em uma temperatura menor. “Dessa forma, utiliza-se menos o carvão coque, o que representa um ganho econômico, embora pequeno, porque esse combustível é barato. O ganho mesmo está no fato de que o carro torpedo pode andar mais rápido porque não há perda de temperatura”, conta Longo.

CSN também conseguiu um aço de mais qualidade, com menos enxofre, sem fazer mudanças no sistema de produção, resultado de um processo desenvolvido há dois anos pelos pesquisadores do Liec. O silício, o fósforo e o enxofre são três elementos indesejáveis que ficam incorporados ao ferro líquido. Os dois primeiros são mais fáceis de serem eliminados. Já o último interfere na qualidade do aço, deixando-o mais quebradiço, e necessita de um processo mais complexo para ser retirado.

O novo método, em fase de testes industriais na siderúrgica, permite a remoção gradual do enxofre com quatro diferentes agentes (carbonato de cálcio, carbeto de cálcio, alumínio-magnésio e borra de alumínio), injetados durante o transporte de gusa nos carros torpedos. Os processos utilizados atualmente no mundo inteiro usam o carbonato de cálcio para retirar o indesejado enxofre. “Colocamos numa primeira etapa carbeto de cálcio com carbonato de cálcio e acrescentamos a borra resultante da fabricação de alumínio, para aumentar a temperatura do banho de dessulfuração (eliminação do enxofre)”, conta Longo. A pesquisa que levou a esse processo inovador faz parte da tese de doutorado de Sérgio Murilo Justus, orientado por Longo e pelo pesquisador Sidney Nascimento Silva, da CSN. A siderúrgica investiu R$ 150 mil nesse projeto, que recebeu ainda bolsa de doutorado da FAPESP.

“Também desenvolvemos um sistema para a CSN produzir o ferro-gusa à la carte, com padrão de qualidade do aço definido pelo comprador”, conta Longo. As porcentagens de enxofre e as misturas são feitas por computador. Antes de esse sistema ser implementado, dependendo da compra, a usina tinha de parar o que estava produzindo para fazer aço com porcentagem menor de enxofre, por exemplo. Quanto menor a quantidade dessa substância, melhor o aço.

Longo diz que o aço brasileiro chega aos Estados Unidos 30% mais barato que o fabricado lá em função das inovações aplicadas ao sistema de produção. “Quando começamos a trabalhar com a CSN, há 12 anos, a produção era de 2 milhões de toneladas por ano. Hoje, está em quase 5 milhões de toneladas anuais, com os mesmos equipamentos. O processo é o mesmo, só mudamos os refratários.” A otimização dos equipamentos, que funcionam 350 dias por ano, eliminou as paradas na produção.

Única etapa
As pesquisas do Liec não se resumem só a produtos com aplicação imediata. Materiais nanoestruturados (com a escala de milionésimos de milímetro) estão sendo estudados no laboratório e devem estar disponíveis para o desenvolvimento de vários equipamentos nas áreas de óptica e de eletrônica, nos próximos anos. Também chamados de nanocompósitos, eles resultam da mistura de dois materiais diferentes, em escala nanométrica.

Um desses compósitos, com promissoras propriedades testadas em laboratório, poderá ser aplicado em nanocircuitos eletrônicos para computadores, com redução do tamanho atual em 30 ou 40 vezes e aumento da velocidade de processamento, e em catalisadores (substâncias que aceleram reações químicas), utilizados principalmente pela indústria farmacêutica, química e petroquímica e para a geração de hidrogênio, com o objetivo de obter energia limpa.

Para conseguir esse nanocompósito, composto por uma matriz de sílica ou dióxido de silício amorfo e partículas metálicas de níquel, foi desenvolvida uma rota de síntese – baseada em um polímero obtido a partir do ácido cítrico -, processo chamado de sol-gel, que utiliza reagentes químicos no processamento e apenas uma etapa de tratamento térmico, enquanto as demais exigem, no mínimo, duas. “É isso que estamos patenteando”, conta Leite.

Esse processo também resolve dois problemas das nanopartículas metálicas: a aglomeração e a formação superficial de óxidos nesse material. “Como as nanopartículas metálicas carregam informação magnética, saber como se processa e organiza esse material é uma vantagem enorme, já que podemos aplicar a tecnologia para outros materiais”, diz Leite. Entre essas aplicações está um fotocatalisador (catalisador ativado pela luz), destinado a limpar águas poluídas.

Os estudos para evitar o crescimento de partículas durante a preparação do material começaram em 1999 com o óxido de estanho, quando a equipe do Liec começou a trabalhar com semicondutores nanoestruturados. “Usamos um dopante em que se coloca um átomo de terra rara na estrutura do dióxido de estanho. Durante o aquecimento, o óxido de estanho expulsa esses vizinhos indesejáveis, os contaminantes, para a superfície e, nessa operação, o crescimento é estancado”, resume Leite.

Vantagem tecnológica
Os pesquisadores do Liec também sintetizaram nanofios e nanofitas do semicondutor de dióxido de estanho por um processo mais simples e barato que o apresentado pelos norte-americanos Zheng Wei Pan e Zu Rong Dai, em artigo publicado em março do ano passado na revista Science. Os norte-americanos obtiveram esses materiais, com potencial aplicação em nanoeletrônica, utilizando um forno a vácuo, o que torna o procedimento mais caro e praticamente inviável para a indústria. Já os brasileiros chegaram aos mesmos resultados usando um forno comum, na forma de tubo. A patente do processo já foi pedida, e os resultados, publicados no Journal of Nanoscience and Nanotechnology, em abril deste ano.

As linhas de pesquisa no Liec estendem-se a outros materiais e aplicações, como o estudo da fotoluminescência em compostos amorfos. Esses materiais, a exemplo do vidro, não têm organização atômica interna definida, ao contrário dos cristais, nos quais os átomos ou moléculas se distribuem de forma organizada e regular. A fotoluminescência caracteriza-se pela emissão de luz por algumas substâncias e pela ação da radiação que incide nelas. Essa propriedade é conhecida desde os anos 60, mas apenas em materiais cristalinos.

“Acabamos descobrindo uma nova classe de material luminescente”, conta o professor Paulo Sérgio Pizani, do Departamento de Física da UFSCar. Nos experimentos realizados em laboratório, verificou-se a fotoluminescência em titanatos de bário, cálcio, estrôncio e chumbo, compostos em estado amorfo, sem a necessidade de condições especiais e de síntese. A emissão de luz nesses compostos amorfos foi obtida em temperatura ambiente e em formas de pó e materiais nanoestruturados (filmes finos), permitindo a aplicação em vários tipos de superfície.

Longo ressalta que o grande ganho da ciência é contribuir com o dia-a-dia das pessoas. E lembra o papel desempenhado pela Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa). A tecnologia desenvolvida para a soja e a cana-de-açúcar, por exemplo, foi fundamental para aumentar a produtividade e a competitividade desses produtos, com significativo peso na balança comercial agrícola. O Liec segue à risca esse preceito. Os resultados podem ser verificados nos produtos desenvolvidos em parceria com a indústria e em materiais com aplicações que, se hoje estão tão distantes do cidadão comum, certamente vão ter implicações nas mudanças do seu cotidiano.

O Projeto
Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos – Cepid; Coordenador Elson Longo – UFSCar; Investimento R$ 1.204.888,02 (média anual)

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