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Bioquímica

Pitomba contra as pragas

Proteína extraída da semente do fruto elimina fungos e carunchos

MIGUEL BOYAYAN

O inseto adultoMIGUEL BOYAYAN

A pitomba não é apenas o fruto amarelado e doce da pitombeira (Talisia esculenta), uma árvore de até 10 metros de altura encontrada nas regiões Norte e Nordeste. De origem tupi, a palavra significa também bofetada, sopapo ou chute forte. De certo modo, foi justamente uma pitomba que a bioquímica Maria Lígia Macedo, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Três Lagoas, deu nos fungos e nos besouros conhecidos como carunchos que atacam as variedades de feijão mais consumidas no Brasil e na África subsaariana e, em períodos de infestação intensa, podem causar a perda total dos grãos de feijão, soja e milho estocados.

Da semente desse fruto do tamanho de uma azeitona, Maria Lígia extraiu uma proteína – especificamente, uma lectina – que reduziu em 60% o crescimento de duas espécies de fungos e matou quase a totalidade dos besouros que danificam tanto as plantas quanto os grãos armazenados. Se os testes em campo comprovarem a eficácia obtida em laboratório, essa molécula pode se tornar uma opção no combate a essas pragas e substituir os defensivos agrícolas, que são tóxicos para animais e seres humanos.

A lectina da pitomba, também conhecida pela sigla TEL, de Talisia esculenta lectin, mostrou-se versátil ao inibir o desenvolvimento de fungos de ampla ação: age contra o Fusarium oxysporum, que ataca também as folhas de cana-de-açúcar e café, e contra o Colletotrichum lindemuthianum, causador da antracnose, doença comum na agricultura que provoca, por exemplo, as manchas escuras na manga. Foi eficaz também contra as larvas de duas espécies de besouros que deixam os grãos de feijão mais furados que um queijo suíço: o Callosobruchus maculatus e o Zabrotes subfasciatus. Ambos atacam não só a ervilha, uma leguminosa de consumo modesto no país, mas também o feijão, uma das principais fontes de proteínas e carboidratos no Brasil.

Maria Lígia e os pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) ainda não sabem ao certo como a lectina funciona contra os fungos ou carunchos. Suspeitam que essa proteína impeça o crescimento desses organismos ao se combinar com outra molécula chamada quitina, principal componente de sua parede celular dos fungos. Ao reagir com a quitina, a TEL causaria alterações que inviabilizam o crescimento das hifas – as ramificações encontradas na maioria dos fungos. No caso dos insetos, parece inibir a ação de enzimas digestivas que contêm açúcar em sua composição e se ligar a uma estrutura semelhante a uma membrana – conhecida como estrutura peritrófica, que recobre internamente o intestino desses insetos e é rica em quitina -, causando um desequilíbrio na absorção de nutrientes.

Plantas distantes
A TEL apresenta uma seqüência de cerca de 20 aminoácidos (os blocos componentes das proteínas) semelhante à de um composto extraído do arroz, o inibidor da alfa-amilase, que participa do mecanismo de defesa das plantas por atuar sobre uma das enzimas digestivas dos insetos, a alfa-amilase. A partir dessa pista, Maria Lígia decidiu avaliar a ação da lectina da pitomba contra os carunchos porque outras lectinas já conhecidas – extraídas da ervilha, do germe de trigo, da urtiga e da batata – atuavam contra o Callosobruchus, mas não exibiam efeito tóxico contra o Zabrotes.

A TEL representou uma alternativa promissora por pertencer a uma família de plantas (as sapindáceas) distante das leguminosas do ponto de vista genético e evolutivo. “Como os carunchos não haviam tido contato com a proteína da pitomba, existia a possibilidade de a lectina funcionar”, comenta Maria Lígia, que conhecia as sementes da pitombeira desde sua infância, em Fortaleza, quando ouvia com freqüência as pessoas afirmarem que galinhas que comem o caroço da pitomba sempre morrem. O dito popular não inspirou nenhuma investigação mais aprofundada nessa área, mas abriu outro caminho: em colaboração com a equipe de Sérgio Marangoni, do Instituto de Biologia da Unicamp, a pesquisadora purificou e caracterizou a lectina da pitomba, num trabalho feito com financiamento da Fundação de Apoio e de Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundect).

Ao mesmo tempo, Maria Lígia testou in vitro a interação entre a nova lectina e as enzimas digestivas das larvas desses carunchos e constatou que a TEL não sofre ação delas: por não ser digerida, parece se acumular no intestino dos insetos, causando uma espécie de indigestão. Avaliou ainda a eficácia da lectina da pitomba no combate às larvas que se alimentam dos grãos – os besouros adultos apenas se reproduzem sobre os feijões. A equipe da pesquisadora colocou fêmeas das duas espécies de caruncho para depositar ovos sobre sementes artificiais, feitas com um cápsula gelatinosa com uma mistura de massa de feijão-de-corda (Vigna unguiculata) e lectina de pitomba em concentrações variáveis (de 0,5% a 2%). Após a eclosão dos ovos, 90% das larvas que consumiram o falso feijão contendo uma concentração de 2% de TEL morreram, como atesta um estudo publicado na Biochimica et Biophysica Acta de agosto.

O mais surpreendente foi que a lectina da pitomba eliminou não apenas as larvas do Callosobruchus maculatus, a principal praga do feijão-de-corda, muito consumido no Nordeste e na África subsaariana. A proteína também apresentou um efeito inédito para uma lectina vegetal, que normalmente serve como nutriente no processo de germinação da semente: matou as larvas do Zabrotes subfasciatus, que, além do feijão-de-corda, ataca outro tipo de feijão muito mais comum, o carioquinha (Phaseolus vulgaris).

A equipe sul-mato-grossense pretende experimentar em breve a pulverização de extrato de lectina da pitomba em culturas de milho e soja, alternativa mais acessível para pequenas lavouras, e avaliar a ação da TEL contra outro caruncho do feijão, o Acanthoscelides obtectus , e as lagartas de três mariposas: a Spodoptera frugiperda, predadora do milho; a Diatrea saccharalis, que ataca a cana; e a Anticarsia gemmatalis, que danifica as folhas da soja.

Maria Lígia considera também a possibilidade de produzir plantas geneticamente modificadas capazes de expressar a lectina da pitomba em níveis que combatam os insetos – não seria preciso muito, já que a proteína funcionou numa concentração considerada mais baixa (2%) que a produzida naturalmente pelas plantas (de 2% a 10%). “Essa seria uma alternativa para grandes plantações”, comenta a bioquímica.

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