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LITERATURA

A cientista dos sentimentos

Não deve causar estranheza a presença de Lya Luft entre os pesquisadores premiados

Lya: "Tento entender a vida, o mundo e o mistério. Por isso escrevo"

DIVULGAÇÃOLya: “Tento entender a vida, o mundo e o mistério. Por isso escrevo”DIVULGAÇÃO

De início até causa uma certa estranheza quando se lê, na lista dos premiados da Fundação Conrado Wessel, a categoria Literatura e o nome da vencedora, a escritora Lya Luft. Afinal, a seu lado estão nomes renomados da ciência aplicada ao mar, ao campo, ao meio ambiente e à medicina. A estranheza logo desaparece ao se ler um pouco de sua prosa ou ao se conhecer melhor o perfil dessa gaúcha de Santa Cruz do Sul, nascida em 15 de setembro de 1938 e autora de 16 livros. “Tento entender a vida, o mundo e o mistério e para isso escrevo. Não conseguirei jamais entender, mas isso me dá enorme alegria”, costuma dizer Lya. Tudo, então, fica claro: essa profissão de fé deve, com certeza, ser a mesma dos outros cientistas que compartilham com ela a honraria. Lya Luft, a seu modo, é também uma pesquisadora. Mas dos sentimentos, da vida e da morte.

E nisso ela, em todos os seus livros, está muito próxima de todos nós. Não sem razão, num país em que o metiê de escritor é para poucos e com poucos,ela, com sua ficção sofisticada, é um sucesso de crítica e de vendas. Nisso há um curioso paradoxo. Quem a lê logo quer achar, nas suas palavras, escorregadelas autobiográficas, confissões feitas sob a máscara do romance, da crônica, da poesia. No mesmo movimento, esse leitor sente que está diante de alguém que sabe expressar medos, dúvidas e alegrias que são também as suas. “Cada livro meu é uma dança de sedução entre mim e meus personagens; entre mim e meus leitores. Meu leitor tem de ser meu cúmplice. O que posso dizer é que tento mergulhar na chamada alma humana: seres perseguidos e perseguidores, os sugados e seus vampiros, os desejosos e os desejados, os mortos e os vivos, os amantes e os desamados”, explica.

Seus temas são, efetivamente, universais e em suas obras podemos ver (e nos ver) a luta entre homens e mulheres, entre familiares e de que forma o tempo nos ajuda e desgraça. Para isso, Lya usa uma linguagem que mistura poesia e prosa, num bate-papo que soa ao leitor como uma conversa ao pé do ouvido com alguém que parece nos conhecer a fundo. “Vida é esse processo misterioso da gente estar jogado no mundo. Esse aprendizado maravilhoso. Desde criança tenho o desejo de entender um pouco esse mistério das relações humanas, da natureza, do destino do homem. Sou muito tocada pela sensação do mistério, da transcendência da vida. Acho que a vida é mistério, transcendência e processo.”

Essa criança que queria entender a mágica do viver cresceu numa cidadezinha de colonização alemã forte e, na escola, lia, em alemão, poemas de Goethe e Schiller. Filha de um advogado, cresceu cercada de livros. “Meu quarto de dormir era decorado por estantes cheias e bastava estender a mão, na cama, para pegar algo para ler.” O amor pela língua e pelos pequenos a levou a Porto Alegre, onde se formou em pedagogia e letras anglo-germânicas.

Até hoje Lya hesita em se intitular “escritora”, preferindo afirmar que sua profissão é tradutora, que vê como espécie de missão ao apresentar para os brasileiros a grande literatura estrangeira. Tem em seu currículo mais de cem versões, entre as quais obras de Robert Musil, Thomas Mann, Gunther Grass, Botho Strauss, Virginia Wolf, Hermann Hesse, Doris Lessing e, com destaque, do poeta alemão Rainer Maria Rilke, a quem deu o honroso lugar de único autor a freqüentar a sua exigente cabeceira. Ao se esforçar para recriar cada um desses autores, Lya foi aprendendo a entender o mecanismo da escrita. A timidez diante dos mestres, no entanto, a afastou da expressão pessoal.

O amor deu a ela o empurrão que faltava. Aos 24 anos, numa prova de vestibular, apaixonou-se pelo professor, o irmão marista e filólogo Celso Luft, então com 42 anos. O lingüista deixou a Igreja para se casar com a moça e foi pai de seus três filhos. E também de seus “filhos” autorais. “Celso tinha uma biblioteca grande. Sempre quis escrever romances, mas tinha uma timidez intelectual. Achava que iria mexer em assuntos intensos, como morte, loucura, doenças da família, coisas que nunca tiveram a ver comigo, mas que faziam parte das minhas fantasias desde a infância.” Em 1964 escreveu seu primeiro livro de poemas, Canções do limiar, e, em 1972, lançou Flauta doce. Aos poucos, ganhava confiança e enviou a um editor paulista alguns contos, recebendo uma resposta positiva. Em 1978 surgiu seu primeiro livro de contos,Matéria do cotidianoAs parceiras,, de 1980. Gostou dele e os críticos também: em 1981 escreveu A asa esquerda do anjo e não largou mais da ficção. “Nunca parei para pensar se escrevia mais sobre homens ou mulheres. Contava a história para mim mesma, antes de tudo: para mim mesma preparava armadilhas, levantava dúvidas, montava quebra-cabeças. A que tentava resolver mais adiante”.

"Vida é esse processo misterioso da gente estar jogado no mundo, esse aprendizado maravilhoso", diz a escritora

DIVULGAÇÃO“Vida é esse processo misterioso da gente estar jogado no mundo, esse aprendizado maravilhoso”, diz a escritoraDIVULGAÇÃO

A cada nova obra, Lya reafirmava sua temática que misturava memórias, a família como um duplo das relações humanas, a solidão, a linha quase invisível entre fantasia e realidade, a luta eterna contra a hipocrisia e a opressão, a análise suave da experiência feminina. Isso, sem nunca aceitar rótulos de gêneros. “Eu quero escrever com o vigor de uma mulher. Não me interessa escrever como homem.” Daí seus livros que tocam os dois sexos, embora especiais na discussão da condição feminina. “Os homens me comovem, pois nem sempre percebemos o tamanho da solidão deles. Não se abrem com os amigos, nem mesmo com a mulher. Eles também têm medo de envelhecer e de perder a potência, não só a sexual, mas a econômica, a capacidade de se sustentar e manter o seu papel na família.” Lya, ao contrário, não teme o tempo.

“A maturidade traz ganhos. Ao invés de se afligir com o ninho vazio e com a aposentadoria, as pessoas deveriam se orientar para curtir essa etapa como um privilégio. Se pode ler, passear, fazer novas amizades e reatar as velhas. Acho que a vida é um processo. É como subir uma montanha. Mesmo que no fim não se esteja tão forte fisicamente, a paisagem visualizada é melhor.” A defesa apaixonada pela idade e o prazer de conversar a levaram a criar, com a terapeuta Martha Herzberg, em Porto Alegre, grupos de discussão sobre a maturidade, que ela orienta, reunindo homens e mulheres. “Uma pessoa madura pode ser tão bonita quanto um jovem. É mais tranqüila, mais harmoniosa, mais natural. A vida é feita de perdas e ganhos e depende muito da gente sair da postura de vítima. Defrontar-se com a gente mesma, na maturidade, é um susto. Mas pode ser um momento de redescoberta.”

Dessa forma, Lya aprendeu a encarar perdas e separações com calma. Em apenas oito anos, a escritora sofreu duas grandes perdas. Em 1985 separou-se de Celso Luft, após ter vivido com ele dos 25 aos 47 anos, deixou o Rio Grande do Sul e partiu para o Rio para viver com o psicanalista e escritor Hélio Pellegrino. Mas o novo amor durou apenas três anos, encerrado com a morte de Pellegrino. Em 1992, Lya voltou a se casar com Luft e, três anos depois, ficou viúva novamente. “Acho que a morte é algo natural como a vida. Mas nunca estamos preparados. Essa é a grande fragilidade humana. Estamos pouco preparados para as coisas naturais. A civilização nos tornou seres pouco naturais. Esse afastamento da natureza traz aquilo que Freud chamou de mal-estar da civilização. Daí a morte ser tão estranha para nós, que não somos mais naturais.”

Guardou lembranças preciosas dos dois companheiros. “Há muito deles na minha personalidade e na minha literatura. O Celso foi meu professor e foi ele que me ensinou a ler com discernimento e me ajudou na busca de um texto transparente. Foi um homem sábio que me empurrou a escrever”, conta. “O Hélio que tinha uma personalidade barroca, um verdadeiro furacão, me abriu para a tolerância e para a ousadia. Comentava alguns casos comigo e me perguntava: ‘O que diz disso o seu espírito de romancista?’ E tudo era um prato cheio para mim.” Isso se percebe na publicação contínua de novos títulos: Reunião de família, em 1982; Quarto fechado (que foi editado nos Estados Unidos como The island of the dead) e Mulher no palco, ambos em 1984; Exílio, em 1987; O lado fatal, em 1989; O rio do meio, em 1996; Secreta mirada, em 1987; O ponto cego, em 1999; Histórias do tempo e Mar de dentro, ambos em 2000; Perdas e ganhos, em 2003; Pensar é transgredir, agora em 2004; e já tem pronto para edição um livro de poemas, um retorno curioso na maturidade, com Para não dizer adeus.

“Todos os meus romances abordam a família, o afeto, o valor da vida e a morte. A vida é muito preciosa. Sou otimista. O humor faz com que a gente se divirta um pouco consigo mesmo, pois perdemos muito tempo e não curtimos os momentos diversos, presentes, que podem ocorrer aos 20, aos 40, aos 80 anos, porque se fica em busca de imagens impossíveis”, avisa.

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