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Medicina

Caprichos de uma doença

Como a curiosidade de Maria Inês Schmidt desvendou a origem inflamatória do diabetes

Maria Inês Schmidt: liderança para enfrentar desafios científicos

EDUARDO TAVARESMaria Inês Schmidt: liderança para enfrentar desafios científicosEDUARDO TAVARES

A epidemiologista Maria Inês Schmidt, vencedora na categoria Medicina do Prêmio FCW, costuma trabalhar defronte de um computador e coordena equipes de auxiliares, estudantes e colaboradores que quase sempre se contam às centenas. Mesmo distante da rotina de laboratórios e das mazelas dos pacientes, a professora do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul é responsável por uma das mais destacadas contribuições na compreensão do diabetes que a ciência brasileira já produziu. Seu estudo Markers of inflammation and prediction of diabetes mellitus in adults: a cohort study, parceria com outros cinco pesquisadores publicado na revista The Lancet em 1999, estabeleceu um vínculo entre processos inflamatórios e a eclosão do diabetes tipo 2. Mostrou que a moléstia endocrinológica que atinge milhões de brasileiros tem origens metabólicas comuns à doença aterosclerótica, aquela que forma placas nas paredes das artérias.

Curiosamente, o grupo liderado por Maria Inês chegou a tal conclusão valendo-se de uma base de dados de pacientes de outro hemisfério: o Aric Study (Atherosclerosis Risk in Communities), que acompanhou 15 mil norte-americanos ao longo de nove anos em busca das causas da aterosclerose, suas seqüelas e fatores de risco. A descoberta veio à tona quando Maria Inês usou a base para relacionar marcadores de inflamação genéricos, como o número de leucócitos, ao diabetes. A pesquisa, ao longo dos últimos cinco anos, foi citada em outros 130 artigos científicos, o que mostra sua repercussão acadêmica. Como o Aric Study congelou plasma sangüíneo dos pacientes acompanhados, o grupo poderá usar essas amostras para medir marcadores inflamatórios mais sofisticados, como a adiponectina e a interleucina-6, e confirmar a relação. A pesquisa é importante por mostrar que há uma intricada rede de mecanismos metabólicos e inflamatórios na origem do diabetes, a qual tem pontos em comum com a obesidade e o surgimento da doença aterosclerótica. A melhor notícia nesse campo, na verdade uma notícia antiga, diz respeito à forma de prevenção do diabetes. “O perfil inflamatório melhora com a perda de peso e o exercício físico”, diz Maria Inês. “Mesmo a redução de apenas 5% da gordura corporal já tem um grande impacto na prevenção do diabetes”, afirma.

Em outra grande contribuição na compreensão do diabetes, a epidemiologista coordenou, no início dos anos 1990, uma pesquisa em seis capitais brasileiras sobre as causas e conseqüências do diabetes gestacional, doença que surge na gravidez e, na maioria dos casos, vai embora depois do parto, mas revela uma predisposição para o aparecimento da moléstia em forma crônica numa idade mais tardia. O estudo multicêntrico, encomendado pelo Ministério da Saúde, acompanhou 5 mil mulheres, do início do pré-natal até sete dias depois do parto. Em duas cidades, Porto Alegre e Fortaleza, o monitoramento das mães teve seqüência por até sete anos. Por isso, algumas das duas dezenas de teses acadêmicas produzidas com base no estudo só tenham sido concluídas recentemente.

Constatou-se na pesquisa, que 8% das grávidas com mais de 20 anos sofrem da doença. O estudo tornou-se referência internacional ao vincular a hiperglicemia com complicações na gravidez (há mais riscos na gestação e a mortalidade dos bebês é maior) e também por desvendar o papel da gordura concentrada na parte central do corpo como indicador do risco de diabetes. Ao contrário do que se vê em países mais desenvolvidos, há um tipo de mulher no Brasil, com estatura baixa e gordura acumulada no tronco – as “redondas e baixinhas’ –, cujo perfil se revelou particularmente propenso a desenvolver o diabetes. O fenômeno, diz Maria Inês, não tem origem genética, mas social. Como tais mulheres, segundo a pesquisa, têm nível de escolaridade baixo, o mais provável é que tenham baixa estatura por deficiências nutricionais intra-uterinas ou na infância, fator que predispõe ao diabetes e à obesidade. A pesquisa serviu para mudar crenças sobre o diabetes gestacional. Antes, os médicos tendiam a valorizar muito indicadores como níveis de glicemia discretamente elevados nas pacientes e subvalorizar o ganho de peso. O estudo mostrou que a obesidade e o aumento excessivo de peso são fatores de risco mais perigosos.

A pesquisadora e seu compêndio de práticas médicas, recém-atualizado

EDUARDO TAVARESA pesquisadora e seu compêndio de práticas médicas, recém-atualizadoEDUARDO TAVARES

Maria Inês não sabe dizer com certeza por que decidiu ser médica. Acredita que a morte do pai, aos 34 anos, de um câncer no esôfago de rápida evolução, pode ter influído. “Eu via os médicos tentando atenuar a dor de meu pai, dar conforto à família e ao mesmo tempo informar, e acho que aquilo me marcou”, diz ela, que ficou órfã de pai aos 10 anos. No final dos anos 1960, deixou a cidade de Novo Hamburgo para cursar medicina na Faculdade de Ciências Médicas de Porto Alegre, vinculada à Santa Casa de Misericórdia. Lá, fez residência em medicina interna e endocrinológica. A carreira deu um salto em 1976, quando se mudou para os Estados Unidos e iniciou suas pesquisas na Universidade Johns Hopkins, especializando-se em pediatria endocrinológica. “Acho que meu interesse pelo diabetes foi despertado pelo fato de que, naquela época, era uma doença difícil de controlar e exigia uma avaliação complexa e uma sintonia fina com o paciente”, diz ela.

Foi na Johns Hopkins University que Maria Inês conheceu o marido, Bruce Duncan, seu parceiro nas pesquisas e hoje professor da Faculdade de Medicina da UFRGS. Casaram-se em 1979, mudaram-se para Chapel Hill e combinaram que, encerrado o doutorado na Universidade da Carolina do Norte, passariam juntos uma temporada no Brasil para depois definir o rumo que dariam às respectivas carreiras. Os dois acabaram se fixando em Porto Alegre. Têm dois filhos, Michael, de 23 anos, estudante de medicina, e Laura, de 17, estudante do ensino médio. Na volta ao Brasil, a pesquisadora passou a se distanciar do tratamento clínico do diabetes para se dedicar à epidemiologia da doença.

A parceria de Maria Inês e Duncan se estende a outro projeto acadêmico que dura mais de duas décadas e resultou num respeitado compêndio de práticas médicas. O livro Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências, de 1.600 páginas, reúne um conjunto de situações que o médico de ambulatório pode encontrar, no tratamento de pacientes e doenças de todo tipo, e as decisões que deve tomar – com a descrição da evidência científica que ampara cada conduta. Maria Inês coordena equipes de médicos especialistas, responsáveis pelos textos básicos dos 31 capítulos, depois os submete a médicos generalistas, que avaliam a praticidade dos conselhos. Estudantes de pós-graduação são responsáveis pelo embasamento teórico das condutas. Cada texto chega a passar por 12 revisões, até alcançar a versão final. Como a expansão dos conhecimentos no campo da medicina, o livro se desatualiza rapidamente. A idéia é fazer edições novas a cada dois anos. A primeira versão do livro foi publicada no início dos anos 1980. A segunda, em 1996. E a terceira, em 2004. O trabalho exige da pesquisadora Maria Inês um talento que ela tem de sobra: a capacidade de coordenar grandes equipes. “Tenho enorme prazer em coordenar grupos com espírito de luta, curiosidade em buscar informações novas e alegria em vencer desafios”, ela afirma.

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