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Ciência Aplicada ao Mar

O cientista que adora a praia

Estudos de Dieter Muehe são essenciais para conciliar o uso com a preservação do litoral

O geógrafo do mar: atlas de erosão indica os pontos mais frágeis do litoral brasileiro

LÉO RAMOSO geógrafo do mar: atlas de erosão indica os pontos mais frágeis do litoral brasileiroLÉO RAMOS

Com a habitual discrição, o geógrafo Dieter Muehe acompanhou durante 15 anos, como representante da comunidade científica, os estudos para definição dos limites da plataforma continental brasileira, apresentados a uma comissão da Organização das Nações Unidas (ONU) reunida em Nova York durante duas semanas, de 30 de agosto a 17 de setembro. Liderado pelo almirante Lúcio Franco de Sá Fernandes, o grupo brasileiro – o segundo do mundo, depois dos russos, a apresentar o levantamento hidrográfico e geológico conforme as regras estipuladas pela ONU – está reivindicando uma plataforma continental a uma distância de até 350 milhas (650 quilômetros) da linha da costa. É uma superfície equivalente à dos três estados do Sul do Brasil somada à do Estado de São Paulo, com áreas novas para exploração de petróleo, gás e minérios que o Brasil poderá explorar com exclusividade – e na qual qualquer atividade de exploração mineral por outro país só poderá ser feita com autorização do governo brasileiro.

“Se há algo realmente admirável em Dieter é sua plena consciência do papel que ele representa para a sociedade”, comenta o geólogo marinho Moysés Tessler, do Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo (USP), que viajou com Muehe em expedições pelo litoral brasileiro. “E ele não se gaba desse senso de cidadania.” Mas esse geógrafo baiano – de Maragogipe, cidade do Recôncavo Baiano em frente a Salvador – não olha só para o mar. Professor do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde 1968, Muehe iniciou há 40 anos suas pesquisas sobre as transformações do litoral brasileiro, hoje fundamentais quando se pensa em conciliar o uso e a preservação das praias – como ele demonstrou, a linha de costa oscila feito uma sanfona, à medida que os bancos de areia se deslocam.

Para que esse ciclo natural seja respeitado e os desabamentos de casas e mutilações das paisagens se tornem menos freqüentes, Muehe propôs uma faixa de proteção de 50 metros a partir da linha do mar nas áreas urbanas e de 200 metros nos trechos não urbanizados do litoral, em um trabalho feito a pedido do Ministério do Meio Ambiente e publicado em 2001 na Revista Brasileira de Geomorfologia. Seria uma forma de evitar o cenário desolador que tomou conta de uma praia em Barra de Maricá, no litoral do Rio, há três anos, depois de uma forte tempestade ter derrubado um conjunto de casas erguidas à beira-mar. Seus proprietários refizeram as construções e ergueram muros de defesa numa tentativa provavelmente vã de lutar contra o mar.

“A largura exata da faixa de proteção precisaria ser sintonizada com as tendências locais de modificação da linha de costa”, diz Muehe, que fez o trabalho completo: um levantamento nacional que ele coordenou indica justamente os trechos mais vulneráveis à erosão ou à progradação – como é chamado o processo inverso, de deposição de areia – ao longo dos 8 mil quilômetros de costa brasileira. O Diagnóstico de erosão e progradação costeira, que contou com quase R$ 50 mil da Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm) e deve ser publicado nos próximos meses, revela que 40% das praias brasileiras estão encolhendo, enquanto outros 10% ganham areia e se alargam.

Proposto pelo Programa de Geologia e Geofísica Marinha (PGGM), uma associação de grupos de pesquisa das universidades costeiras do país, esse levantamento das áreas de risco do litoral resulta do trabalho de 16 grupos de pesquisa, do Amapá ao Rio Grande do Sul, que Muehe conseguiu reunir com um raro poder de mobilização e um respeito ao trabalho alheio que lhe rendeu a aparentemente unânime admiração dos colegas e dos alunos. “Esse atlas será a base para o monitoramento contínuo de praias, para sabermos se a erosão ou a progradação refletem um desequilíbrio momentâneo ou uma tendência de longo prazo”, comenta Muehe, que tem 67 anos, mas ninguém de boa-fé lhe daria mais de 50. Gentil e atencioso, adora pôr a velha sandália de couro e boné, acomodar-se a bordo de barcos infláveis ou de pesca e observar as sutis variações da linha da costa.

É um trabalho que exige paciência, mas que pode ser extremamente proveitoso. Com sua equipe da UFRJ, Muehe examinou por três anos as mudanças em uma das praias de Macaé, no litoral fluminense, até chegar à conclusão de que a erosão que preocupava tanto era apenas a face mais visível de um processo de reequilíbrio espontâneo – a areia que sumia voltava depois. Como resultado, a prefeitura economizou cerca de US$ 1,5 milhão que pretendia gastar em obras para conter um fenômeno que por si só se resolveria. Durante mais tempo ainda – oito anos, “sem falhar um mês”, orgulha-se –, ele tem acompanhado os corpos de areia crescendo ou encolhendo em um campo de dunas próximo a Cabo Frio, também no litoral fluminense, a duas horas de viagem da cidade do Rio. Já fez o levantamento número 102, que representa até agora cerca de 31 mil quilômetros rodados entre o Rio e a área de estudo. Os dados apurados indicam prováveis efeitos do aquecimento ou esfriamento das águas do Pacífico – o El Niño e a La Niña – e que o litoral por lá está recuando. “Nada grave”, diz, “se o nível do mar não subir.” O problema é que muitos estudos no mundo inteiro alertam para a elevação do nível do mar.

Baiano, filho de alemães, apaixonado pelo mar desde a adolescência: olhar apurado para as mudanças da costa

LÉO RAMOSBaiano, filho de alemães, apaixonado pelo mar desde a adolescência: olhar apurado para as mudanças da costaLÉO RAMOS

A maioria das pessoas atribui pouca importância às diferenças de cor, textura ou tamanho dos grãos de areia das praias – o que importa mesmo é o sol, certo? Ele, não. Com um punhado de areia nas mãos, esse geógrafo do mar imagina o passado e o futuro de uma praia, do mesmo modo que um paleontólogo reconstitui um animal extinto a partir de um osso fossilizado. Há cerca de 20 anos, Dieter Muehe propôs uma metodologia de estudos costeiros, mostrando onde e como colher amostras e que tipo de informação tirar de um punhado de areia amarelada ou avermelhada, fina ou grossa. Com mente aberta, mostrou também que às vezes é melhor esquecer a areia, como aconteceu ao aplicar uma fórmula criada por oceanógrafos australianos para determinar como uma praia ficará em alguns anos. A receita original se apoiava em três variáveis: a altura e o período da onda e a granulometria da areia. “Muitas vezes”, ele conta, “essa fórmula não correspondia ao que era observado”. Muehe desenvolveu então outra fórmula, trocando a granulometria da areia pela declividade da praia, para definir o estado da praia no próprio momento da observação. Publicada há cinco anos na Revista Brasileira de Oceanografia, essa fórmula tem ajudado a identificar o perfil de uma praia e avaliar sua sensibilidade a vazamentos de óleo e risco potencial para os banhistas.

“Dieter é um grande profissional, extremamente sério e disciplinado, com quem é muito tranqüilo trabalhar”, comenta o geógrafo da USP Jurandyr Ross, que fez com seu colega do Rio outro estudo importante sobre o litoral – o atlas do macrodiagnóstico costeiro do Brasil. Editado há cerca de seis anos pelo Ministério do Meio Ambiente, esse levantamento é considerado uma obra fundamental para usar em conjunto com o atlas de erosão quando na hora de planejar a ocupação do litoral sem sentir mais tarde a revanche da natureza. “Depois de todos esses estudos”, afirma Ross, “se as casas ainda desabam no litoral não é por falta de informação, mas por falta de uso da informação”.

Não é exagero dizer que ele trabalhou nesses projetos com dedicação germânica. Dieter Carl Ernst Heino Muehe – eis seu nome completo – é o filho único de um casal de alemães, Victor Carl Muehe e Gerda Minna Emma Muehe. Os dois chegaram ao Brasil em 1936 fugindo da recessão econômica que tomou conta da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Victor, que havia servido como oficial no Exército durante a guerra, seguiu o mesmo destino de outros alemães que imigravam para o Brasil: foi trabalhar como contador em uma fábrica de charutos, a Suerdick, em Maragogipe, no Recôncavo Baiano. Foi ali que Dieter Muehe nasceu, em abril de 1937.

Seu pai morreu em 1939, provavelmente de infecção hospitalar. Sua mãe decidiu voltar para a Alemanha, imaginando que lá conseguiria dar uma educação melhor ao filho então com 1 ano e meio. Mas logo veio outra guerra, deixaram Berlim, onde pretendiam viver, e tiveram de se mudar às pressas muitas vezes, fugindo das bombas que destruíam as cidades e os planos. Voltaram ao Brasil em 1947, dois anos depois de terminada a guerra, e se instalaram em Nova Friburgo, na região serrana do Rio. Para o garoto de 10 anos, que mal falava português, foram tempos difíceis. Mas foi quando aflorou a curiosidade científica e ele começou a colecionar borboletas, besouros e rochas recolhidas nas longas caminhadas pelas montanhas. Só em Vila Velha, no Espírito Santo, para onde se foram quase dois anos depois, o então adolescente construiu um forte círculo de amigos, serviu no Exército durante um ano e começou a mergulhar, com máscaras que machucavam o nariz e faziam os ouvidos doerem com freqüência. Apaixonou-se pelo mar. “Enquanto mergulhava e pescava lagosta”, recorda ele, “eu tinha vontade de fazer ciência e estudar melhor tudo aquilo.” Em 1960, na hora do vestibular, optou por geografia na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) como forma de conciliar seu interesse por oceanografia e geologia. Nessa época, já estava trabalhando na Companhia Vale do Rio Doce – primeiramente na equipe de topografia na estrada de ferro, depois como técnico em mecânica dos solos.

Dieter Muehe mudou-se para o Rio de Janeiro em 1964 para trabalhar na Docenave, a recém-criada empresa de navegação da Vale do Rio Doce, mas acabou ficando mesmo na empresa matriz. Foi também quando se transferiu para o departamento de geografia da então Universidade do Brasil, rebatizada de Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em seu mestrado, que durou quatro anos, propôs uma classificação das praias entre o Rio de Janeiro e Cabo Frio de acordo com seu perfil topográfico e da zona submarina adjacente, o tipo de sedimento e a energia das ondas do mar que chegam à praia. Era o início da pós-graduação no departamento de geografia. “Foi uma época difícil”, conta ele. “Tinha dois ou três trabalhos para apresentar por semana e ficava muitas noites sem dormir.” O doutorado ele fez na Alemanha, já se aprofundando em oceanografia e geologia marinha. Nessa época já havia deixado a Vale do Rio Doce para trabalhar apenas na universidade, procurando equilibrar a dedicação à ciência e à família. Parece ter conseguido. É sua única filha, a médica radiologista Ingrid Engelke Muehe De Simone Alonso, mãe de Mateus, de 8 anos, e de Nicole, de 2, quem diz: “Ele é admirável”.

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