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DUPLA HÉLICE 50 ANOS

Interlúdio da biologia molecular

Depois do sequenciamento, será a vez de se criar a patologia e a farmacologia genômicas

011_BIOLOGIAM“Comece com a dupla hélice e termine com o genoma humano”, costumava dizer James Watson enquanto esteve à frente do gigantesco esforço para seqüenciar as letras químicas que compõem a informação genética das células humanas. Para o co-descobridor da estrutura do DNA e então líder do Projeto Genoma Humano (PGH), uma coisa era a conseqüência lógica da outra. Se Watson e Francis Crick haviam desvendado o segredo da vida com seu modelo elegante da dupla hélice, a chave para a compreensão de como esse segredo se manifestava no organismo do homem só podia estar ali, na própria seqüência do DNA. Obtê-la significaria descobrir o que é ser humano e inauguraria uma nova era para a medicina. Após mais de dez anos e 3 bilhões de pares de nucleotídeos (as unidades que formam o DNA), oInterlúdio da biologia molecula, em especial quando se trata de aplicar a massa de informações obtida com o genoma para melhorar a saúde humana no curto prazo. “Havia muitos cientistas, talvez por inocência, talvez por miopia, que acreditavam que o PGH resolveria questões como ‘saber o que significa ser humano'”, pondera Sérgio Danilo Pena, geneticista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

“São hawks (falcões, em inglês), os Donald Rumsfelds da ciência”, diz Pena, comparando esse tipo de pesquisador ao secretário da Defesa linha-dura do governo George W. Bush. “Houve cumplicidade da imprensa e do próprio público nesse exagero. Mas o erro foi apenas de ordem temporal: no médio e no longo prazo, os frutos do PGH serão indubitavelmente extraordinários.” Mesmo assim, até o presente e o futuro próximo estão fervilhando de possibilidades, sugerem cientistas. Se as curas genéticas mirabolantes devem ser descartadas como um sonho distante ou até irreal, é na compreensão e na prevenção de inúmeras doenças que os dados genômicos podem fazer a diferença, denunciando de forma muito mais evidente o que há de errado no organismo e sugerindo formas de contornar o problema.

Salto brasileiro
Atualmente, é até difícil imaginar o Brasil fora da potencial revolução científica que os estudos genômicos prometem proporcionar. Contudo, era exatamente essa a situação do país até 1997. Na época, os indicadores da produção brasileira de pesquisa deixavam claro que alguma coisa precisava ser corrigida na área genômica. Basta dizer que, embora o aumento dessa produção, que se reflete no número de artigos publicados em periódicos científicos indexados pela base de dados do Instituto para a Informação Científica (ISI), tenha praticamente dobrado entre 1981 e 1995, o crescimento na área de biologia molecular se multiplicou por um fator de 1,69 — menos que a média mundial no mesmo período, que foi de 1,89. Era preciso agir para tirar o atraso. Foi com essa visão estratégica que surgiu o projeto Genoma-FAPES. Mas não dava para imaginar no seu lançamento que o sucesso viria tão rapidamente. Vontade não faltava. Prova disso foi o valor inicial destinado ao seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, causadora do temido amarelinho nos laranjais paulistas: US$ 12 milhões, nada menos que o maior valor concedido até então a um projeto científico no Brasil.

A intenção desse projeto pioneiro, anunciado oficialmente em outubro de 1997, ia além de seqüenciar pela primeira vez um microrganismo causador de doenças em plantas (fitopatógeno), uma bactéria importante para a agricultura brasileira. A idéia era qualificar pessoas e instituições de pesquisa para lidar com a novidade, ao menos para os brasileiros, do trabalho genômico em larga escala. Isso só foi possível com a integração de quase 200 pesquisadores de 30 instituições na rede Onsa (sigla em inglês de Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos) — uma espécie de instituto virtual, cuja organização era algo tão inédito no país quanto seus objetivos.

Outros projetos, como o Genoma da Cana e o Genoma Humano do Câncer, logo se juntaram ao da Xylella e progrediram num ritmo bem mais rápido que o esperado. Iniciado em 1999, com uma parceria entre a FAPESP e o Instituto Ludwig de Pesquisa do Câncer, o Genoma Humano do Câncer se destacou por usar uma metodologia inovadora para identificar os genes. O bioquímico Andrew Simpson e biólogo Emmanuel Dias Neto, ambos pesquisadores do Ludwig na época, desenvolveram um novo sistema de seqüenciamento que, em vez de analisar o gene inteiro, centrava esforços na decodificação da parte do gene realmente ativa, sua porção central, responsável pela produção de proteínas — trata-se do Orestes, abreviação em inglês para Open Reading Frame Expressed Sequence Tags.

O retorno da técnica em termos de conhecimento sobre as formas de câncer mais comuns no Brasil — como os de mama e os de cabeça e pescoço — ainda deve demorar muito para ser totalmente avaliado: foram gerados mais de um 1 milhão de seqüências de genes ativos em tumores humanos, alguns dos quais já estão sendo identificados como importantes indicadores da gravidade ou do aparecimento precoce do câncer.

A consagração desses esforços ocorreu com a conclusão do seqüenciamento do genoma da Xylella quatro meses antes do previsto, em janeiro de 2000. Homenagens do governo do Estado de São Paulo e do então presidente Fernando Henrique Cardoso marcaram a conclusão do projeto. Mas o maior reconhecimento veio da própria comunidade científica internacional. Pela primeira vez em 131 anos, uma pesquisa brasileira foi capa da prestigiosa revista científica britânica Nature , que publicou o artigo sobre o genoma da bactéria na edição de 13 de julho de 2000. Outro semanário britânico, a revista The Economist, não teve dúvidas quanto ao significado desse resultado: para a revista, o Brasil agora era famoso por três motivos: samba, futebol… e genômica.

Não era para menos: com esses programas, agora engrossados por iniciativas como o Projeto Genoma Brasileiro, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o país se tornou o segundo maior depositador de seqüências de DNA no GeneBank, o banco de dados público usado por pesquisadores de projetos de seqüenciamento do mundo todo. Mesmo sem ser convidado, como costumava brincar Andrew Simpson, o Brasil havia entrado para a festa do genoma humano. Começava o desafio de descobrir como aplicar esses dados.

Potencial
Uma das vantagens imediatas de se ter um mapa completo do material genético humano é multiplicar as chances de encontrar um gene envolvido em uma moléstia. “Digamos que eu esteja tentando identificar um gene numa determinada região de um cromossomo. Sem a seqüência, era como se eu chegasse a um bairro sobre o qual eu não tinha nenhuma informação e tentasse achar uma casa específica”, compara Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP). “Com a seqüência, posso investigar a região que me interessa e encontrar os candidatos mais prováveis — e não só achar a casa, mas o tijolo que falta nela”, explica Mayana, que estuda doenças neuromusculares de origem genética. “A identificação de genes ligados a várias doenças genéticas será abreviada, pois os genes já estão fisicamente mapeados”, diz Fabrício Santos, da UFMG. “Só falta descobrirmos suas funções.”

“Já se comparou a análise genômica com a tentativa de abrir uma porta testando milhares de chaves, uma por uma”, diz Sérgio Verjovski-Almeida, do Instituto de Química da USP. “Antes do seqüenciamento do genoma humano, nem tínhamos idéia de onde estava a fechadura.” Por outro lado, o estudo do genoma está revelando complexidades insuspeitas no funcionamento do material genético, algumas delas com impacto direto sobre a saúde humana. “Estamos elucidando mecanismos misteriosos”, diz Mayana. Um desses processos é observado com os chamados genes dinâmicos, que aumentam de tamanho de uma geração para outra. Esse mecanismo está associado a mais de 12 doenças, como a distrofia miotônica — uma moléstia neuromuscular que, em geral, leva à perda de força nas mãos.

“Essa doença parecia piorar a cada geração dentro da mesma família, com formas que iam do aparecimento precoce de catarata e calvície a uma fraqueza muscular generalizada, que chega a ser incapacitante”, explica Mayana. “O que se descobriu é que o aumento do número de uma trinca de nucleotídeos (as unidades formadoras do DNA) estava envolvido”, diz a geneticista. Enquanto as pessoas saudáveis têm de 5 a 37 dessas trincas no gene, as portadoras da enfermidade apresentam de 50 a milhares de repetições dessa pequena seqüência. O problema é que, quando há mais de 50 trincas, o gene se torna instável e a repetição tende a aumentar, de geração para geração, agravando a doença.

Por outro lado, alterações em genes diferentes podem causar um mesmo problema clínico. “Isso acontece, por exemplo, na distrofia muscular das cinturas, à qual já foram associados 15 genes que codificam proteínas diferentes”, conta Mayana. “Algumas dessas proteínas atuam juntas, formando um complexo. Se houver um defeito em uma delas, o funcionamento do complexo todo fica prejudicado”, explica a pesquisadora. Apesar de o funcionamento dos genes apresentar complexidade cada vez mais evidente, a abundância de dados sobre o genoma pode denunciar de maneira precoce e precisa as doenças mais complicadas do ponto de vista genético, provocadas por diversos fatores, como as inúmeras formas de câncer. “Com essas informações, é possível estudar milhares de genes que atuam simultaneamente”, diz Verjovski-Almeida, que investiga os fatores que determinam a gravidade do câncer de próstata. “Hoje conhecemos 170 genes relacionados à malignidade do câncer de próstata”, afirma o pesquisador da USP. “Sessenta por cento deles são genes novos, identificados pelo seqüenciamento em larga escala de material genético extraído de tecido afetado pelo câncer.”

A análise simultânea de centenas dessas seqüências, feita por meio de microchips de DNA (pequenas lâminas de vidro que mostram a atividade dos genes), já permite criar um perfil molecular de um indivíduo e indicar a probabilidade de ele apresentar formas mais severas ou brandas da doença. “Um microchip para o câncer de mama, criado por Laura van’t Veer, do Instituto do Câncer da Holanda, já foi transformado pela empresa Rosetta Inpharmatics em um método de diagnóstico nos Estados Unidos”, conta o pesquisador. O próprio padrão genético de um tumor pemite antever sua gravidade e a chance de que se espalhe para outros órgãos. O diagnóstico molecular de doenças genéticas mais simples, causadas por um só gene, tem vantagens óbvias. “Em termos práticos”, diz Mayana Zatz, “a identificação dessas enfermidades por meio de um teste de DNA evita procedimentos dolorosos e complicados, como uma biópsia ou uma eletromiografia.”Apesar de haver um emaranhado de relações por trás das moléstias multifatoriais, conhecer a propensão genética a desenvolver uma doença também pode ser útil. “Eu não gostaria de saber se tenho risco aumentado de desenvolver o mal de Alzheimer, para o qual não há tratamento eficaz atualmente”, exemplifica Mayana.

“Mas certamente gostaria de saber que tenho tendência ao diabetes (uma enfermidade multifatorial), porque eu poderia me cuidar e reduzir a influência dos fatores ambientais”, diz a geneticista. “Com um diagnóstico mais confiável e preciso, aumentam as chances de sucesso no tratamento”, resume Fabrício Santos.Outro ponto importante, de acordo com os pesquisadores, é que o diagnóstico molecular pode libertar os médicos de métodos relativamente grosseiros de detecção de doenças. “No caso do câncer de próstata, ainda hoje você depende da alteração da morfologia do tecido. Não há nenhum marcador molecular realmente específico para ele”, diz Verjovski-Almeida. “Falamos do câncer de mama como uma única enfermidade. Entretanto, mais recentemente, aprendemos em decorrência do conhecimento genômico que o câncer de mama não é uma, mas várias doenças”, afirma Sérgio Pena.

012_BIOLOGIAMRemédios sob medida
Sempre provocador, o cientista-empresário Craig Venter, responsável pelo seqüenciamento paralelo do genoma humano feito pela empresa Celera Genomics, diz que no futuro uma pessoa poderá obter o seqüenciamento de seu próprio genoma por US$ 2.000. Assim, poderia conhecer de antemão os problemas que poderiam acometê-la durante a vida e traçar estratégias para combatê-los. “Talvez essa meta seja inatingível, mas seria interessante encontrar um caminho intermediário”, avalia Verjovski-Almeida. É que a variação genética entre as pessoas pode ser a chave para medicamentos mais eficazes. “Se o seqüenciamento do genoma ajudou a mostrar que somos todos iguais, ou todos igualmente diferentes, ele também revelou diferenças que podem ser importantes para tratar doenças”, diz Mayana Zatz. Por descenderem todos de uma pequena população africana que viveu há cerca de 100 mil anos (um mero piscar de olhos evolutivo), os seres humanos de qualquer região do planeta são muito parecidos. Mas a adaptação de curto prazo aos mais diversos ambientes criou perfis variados de resistência ou suscetibilidade a doenças. É essa variação que a farmacogenômica, a ciência que relaciona o perfil genético com a resposta a remédios, promete explorar em favor da saúde humana. “Sabemos que as doses de medicamentos recomendadas nas bulas são apenas sugestões grosseiras, feitas com base em médias populacionais”, diz Sérgio Pena.

Filosofia genômica
“Diferenças étnicas podem influenciar a maneira como as pessoas respondem a um medicamento”, afirma Mayana. A pesquisadora conta que, num estudo feito por ela e seus colegas da USP, verificou-se que um gene ligado ao transporte de um neurotransmissor, a serotonina, tem duas formas distintas na população brasileira. Um deles, o chamado alelo longo, que quebra rapidamente a serotonina, aparece em 80% das pessoas, enquanto o outro, o alelo curto, só aparece em 20% delas. “Mas nas pessoas de origem japonesa, a proporção se inverte”, diz Mayana. Isso poderia ser extremamente importante para projetar um medicamento capaz de interferir nesse processo. Existem alguns genes em que variantes desse tipo já são conhecidas e poderiam ser testadas para evitar reações adversas. Ao mesmo tempo, o mapa que mostra as predisposições genéticas de uma pessoa adquirir doenças não pode se tornar de domínio público, alerta a pesquisadora. “Companhias de seguro, empregadores, todo mundo vai querer saber minha chance de ter alguma doença”, diz ela. Mecanismos de privacidade genética terão de ser criados para evitar que a discriminação feita com base no genoma chegue ao mercado de trabalho.

O otimismo dos pesquisadores esbarra num muro quando se trata de usar os dados do seqüenciamento do DNA para terapias que tenham como alvo o próprio genoma. “Sou cético quanto à viabilidade da geneterapia”, reconhece Verjovski-Almeida. Carlos Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, conhece de perto a dificuldade de aplicar a técnica, mesmo nos testes mais preliminares. “Conseguimos tratar a Xeroderma pigmentosum, uma doença de pele que causa lesões terríveis e até câncer porque o paciente não consegue reparar seu DNA”, conta Menck. “Mas acabamos enfrentando limitações do próprio adenovírus que serve como vetor para o gene corrigido. Depois de um tempo, o sistema imune do paciente cria resistência e o tratamento não funciona mais.” Pode ser que isso mude e seja possível atuar na prevenção, criando alguma forma de paliativo para o paciente. “Mas não é nenhuma panacéia”, ressalta Menck.

Mesmo quando a coisa parece funcionar bem, como no caso dos meninos da bolha nos Estados Unidos e na França, que sofriam de uma forma severa de deficiência imunológica, o genoma é um sistema tão complexo que até alterações supostamente benéficas têm um efeito imprevisível: alguns desses garotos, curados da doença, contraíram leucemia em razão da geneterapia. “Nosso conhecimento a respeito da regulação celular e sua interação com o genoma ainda é mínimo”, afirma Fabrício Santos. “Qualquer terapia gênica, como a dos meninos da bolha, será por tentativa e erro, pois não temos controle suficiente das variáveis com que estamos lidando.” Sérgio Pena também reconhece que ainda há grande imprevisibilidade na manipulação genômica e reforça a idéia de que devemos, “talvez para sempre, nos abster de tentar fazer modificações na linhagem germinativa humana”. Modificações na linhagem germinativa, ou seja, nos óvulos e espermatozóides, que transmitem o material genético à geração seguinte, tornariam a alteração genética transmissível, com efeitos potencialmente ainda mais perigosos.

Por enquanto, a genômica deve se restringir a fornecer subsídios para a criação de drogas mais específicas, que atuem diretamente sobre a proteína codificada por um gene envolvido numa doença. Outra esperança, a ser corroborada, é a técnica conhecida como RNAi, interferência de RNA, outro tipo de material genético. Potente e específica, ela atua sobre um tipo de RNA, chamado mensageiro, que conduz as informações contidas no DNA e inicia a produção de proteínas. Testes em plantas, no verme C. elegans e em linhagens de células sugerem que a RNAi seria capaz de desativar quase totalmente o gene desejado, sem afetá-lo diretamente e sem influenciar outros genes. “É talvez uma das mais importantes descobertas da biologia moderna”, diz Pena.

Uma coisa parece certa: mesmo sem novos seqüenciamentos, os dados já obtidos com o genoma humano e o de outros organismos importantes mal começaram a ser interpretados de forma adequada. “Os grandes seqüenciamentos devem continuar por algum tempo, mas teremos de usar hipóteses mais refinadas para justificá-los”, avalia Menck. “Particularmente, sou fã da genômica comparativa, que coloca lado a lado organismos diferentes para ver quais regiões do genoma estão conservadas e, portanto, são importantes para eles”, afirma. Dessa forma, deve se tornar mais fácil vencer o desafio de identificar todos os genes humanos, cujo número permanece incerto. Para Menck, é preciso também um esforço para fortalecer e diversificar os estudos de bioinformática no Brasil, para que essas análises computacionais do genoma acelerem a tarefa de identificar e entender os diferentes genes. “Vejo o esforço genômico como um interlúdio na história da biologia molecular”, filosofa Pena. “A parte de seqüenciamento do PGH está praticamente terminada e nos deu a anatomia do genoma humano. Agora, vamos passar o próximo século desenvolvendo a fisiologia genômica, a patologia genômica e a farmacologia genômica.”

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O Genoma Humano 50 anos após a descoberta da dupla hélice do DNA 

Mayana Zatz 

Apesar de a estrutura da dupla hélice ter sido descoberta há 50 anos, foi somente na década de 80 que a tecnologia que permite analisar o DNA começou a tornar-se acessível. Em 1990 iniciou-se o Projeto Genoma Humano com o objetivo de seqüenciar, até 2005, os 50 a 100 mil genes estimados como responsáveis pelas características humanas. Em 2001 anunciou-se que o seqüenciamento do nosso genoma estava quase completo. A mídia não se cansou de repetir que os conhecimentos gerados irão revolucionar a medicina. Será que iríamos finalmente entender: por que ficamos doentes? Por que envelhecemos? Por que morremos? Por que reagimos diferentemente à mesma medicação? Quanto da nossa personalidade e de nosso comportamento é condicionado por nossos genes? Entretanto, enquanto especula-se sobre o futuro, fala-se muito pouco a respeito das aplicações imediatas desse grande feito científico.

Como o Projeto Genoma Humano pode influenciar nossas vidas? Como a medicina tem se beneficiado do estudo dos genes? O que já existe de prático? Quais são as implicações éticas?O objetivo principal do Projeto Genoma Humano é o de entender como nossos genes funcionam quando normais e por que causam doenças quando alterados. Uma maneira de abordar essa questão é a partir do estudo de doenças genéticas, que é o foco de pesquisas do Centro de Estudos do Genoma Humano. Compreender o funcionamento gênico é o primeiro passo para futuros tratamentos. Além disso, a identificação de mutações patogênicas tem uma aplicação imediata na prevenção de novos casos a partir do aconselhamento genético, que inclui: diagnóstico de afetados, determinação de riscos genéticos, identificação de casais “em risco” de virem a ter prole afetada e diagnóstico pré-natal.

O estudo molecular das doenças neuromusculares (cuja incidência é de um em cada mil indivíduos), que tem sido o nosso objeto de pesquisas, tem contribuído muito para a compreensão do comportamento de nossos genes. Isto é, como doenças diferentes podem ser causadas por mutações em um mesmo gene ou, ao contrário, como mutações em genes distintos podem causar a mesma patologia. Descobriram-se os genes dinâmicos, isto é, genes que causam doenças porque existem seqüências de DNA neles que podem se expandir (“crescer”) e que, quanto maior a expansão, mais grave é o quadro clínico. Entender que algumas doenças são causadas pelo excesso de um produto e outras pela falta de um produto será fundamental para futuros tratamentos.

Mas o mais interessante foi descobrir que, para algumas doenças, pessoas portadoras da mesma mutação podem ter um quadro clínico discordante, variando desde uma forma grave até ausência de sintomas. Isso demonstra que muitas mutações ditas “patogênicas” podem não ser “determinantes” por si só de uma patologia e que outros fatores (genes modificadores, RNA de interferência, etc.) modulam a expressão dos genes. A identificação desses fatores que”protegem” algumas pessoas dos efeitos deletérios de um gene abre um leque enorme para futuros tratamentos.

Além do diagnóstico em pacientes afetados, a identificação de mutações patogênicas em indivíduos assintomáticos contribui para prevenir o nascimento de novos casos, o que é fundamental para doenças graves ainda incuráveis. Mas enquanto atuamos na prevenção e buscamos a cura, temos também um compromisso ético muito importante em relação ao uso de testes genéticos, principalmente em pessoas clinicamente normais. Questões éticas, que surgem em situações reais, são: quando oferecer testes? Até onde vai nosso direito de interferir? Como agir se a análise de DNA revelar dados inesperados, como, por exemplo, uma falsa paternidade? O princípio da confidencialidade, que é uma das regras do aconselhamento genético, protege quem?

Devemos sempre lembrar que os resultados de um teste genético não mudam com o tempo, e seu impacto pode influenciar o futuro de uma pessoa ou de toda uma família. Antes de um exame, a pessoa deve ser informada: para o que está sendo testada? O que significa um resultado positivo? O que significa um resultado negativo? Qual é a vantagem em ser testada? O que pode ser feito a respeito?Por outro lado, a possibilidade de analisar o DNA em uma ponta de cigarro descartada demonstrou que as informações contidas no nosso DNA são muito mais acessíveis do que julgávamos, o que levanta outras questões: é ético fazer um teste genético em tal material sigilosamente ou contra a vontade de uma determinada pessoa? E o direito de “não saber”? E a nossa privacidade? Empregadores e companhias de seguro-saúde teriam acesso a essas informações? São assuntos que dizem respeito a todos nós e que devem ser discutidos com toda a sociedade.

Mayana Zatz é professora titular de Genética Humana e Médica Coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano do Departamento de Biologia – Instituto de Biociências/USP. Este artigo é um resumo da palestra da autora sobre a mesa-redonda “50 Anos da Dupla Hélice do DNA”, na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, no dia 10 de abril.

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