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Arte

Iberê Camargo revisitado

Perto dos dez anos de morte do pintor, pesquisa produz um catálogo das obras do artista

Uma empreitada científica está ajudando a Fundação Iberê Camargo, de Porto Alegre, a produzir um documento definitivo sobre as obras e documentos do pintor gaúcho existentes em sua sede. Oito pesquisadores trabalham há três anos na classificação e catalogação dos mais de 3 mil desenhos, 217 óleos e 354 gravuras existentes na instituição. O estudo tem o apoio da Petrobras, do Itaú Cultural, da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul – que financia duas bolsas de iniciação científica –, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O trabalho resultará no lançamento, em 2005, do catálogo raisonné de Iberê.

A edição, que se dividirá em três volumes (para pinturas, gravuras e desenhos), será lançada juntamente com a inauguração do Museu Iberê Camargo, uma obra arrojada de mais de 8 mil metros quadrados, feita às margens do rio Guaíba, com projeto de Álvaro Siza. O desenho foi premiado na última Bienal de Arquitetura em Veneza. “O catálogo contribuirá para a proteção contra falsificações de obras de Iberê”, diz Mônica Zielinsky, coordenadora dos trabalhos para o raisonné. “Temos consciência de que as obras da fundação são apenas uma parte do legado do artista, que deve estar em torno de 7 mil trabalhos. Mas é difícil encontrar quadros que estão dispersos pelo país, em mãos de tantos colecionadores particulares e instituições públicas e privadas”, comenta.

A catalogação será finalizada primeiramente no acervo da fundação. Atualmente, realiza-se uma mostra retrospectiva do pintor, intitulada Iberê Camargo: Diante da Pintura. São cerca de cem trabalhos, entre pinturas, desenhos e gravuras, escolhidos e organizados pelo crítico de arte e curador Paulo Venâncio Filho. Estão expostos atualmente na Pinacoteca do Estado de São Paulo (até 20 de julho) e seguem depois para o Rio de Janeiro (Paço Imperial), Recife (MAMA) e Salvador (MAM). Na exposição podem ser vistos também os croquis e uma maquete que dão boa noção de como será o prédio projetado por Álvaro Siza. Por coincidência, o catálogo, o museu e a retrospectiva acontecem perto do ano em que Iberê Camargo completaria 90 anos. Nascido em 1914, o pintor morreu de câncer em 1994.

“O trabalho de catalogação se mostrou bem mais extenso do que imaginamos num primeiro momento”, conta Mônica Zielinsky. “Há dificuldades, pois, além de ser um trabalho inicialmente elaborado em fichas, manualmente, tudo depois é registrado em um banco de dados”, diz. “É necessário fazer identificações de obras que trazem poucos dados. Assim, contamos muito com a memória de pessoas que conviveram com Iberê, como dona Maria, sua esposa, e Eduardo Haesbaert, que foi seu impressor (de gravuras) e hoje é responsável pelo acervo.”

Embora essas duas fontes vivas tenham muitas informações sobre a obra do pintor gaúcho, o nível de detalhamento para a catalogação, classificação e identificação é extremamente grande, o que exige enorme esforço de pesquisa. Além do nome atribuído à obra e à técnica empregada, cada ficha contém a data de produção, a descrição, o local de assinatura, uma transcrição do que Iberê eventualmente escreveu em seu verso, o valor estimado pelo próprio pintor, uma parábola (nas obras para as quais o artista criou um código) e uma inscrição (por exemplo, quando ele dedicou o trabalho a um amigo).

“Anotamos também as condições em que a obra se encontra no momento da catalogação, de forma que se possa acompanhar o que acontecerá com ela no decorrer do tempo e quando for emprestada para uma exposição”, observa Mônica. No estágio em que o trabalho se encontra, apenas os desenhos e a correspondência do pintor (que era um grande frasista e adorava escrever para amigos e familiares) ainda passarão pelo processo.

De acordo com a coordenadora do estudo, os pesquisadores tiveram diversas surpresas. “Descobrimos coisas desconhecidas do público e de alguns críticos, como figurinos e cenários de teatro. Também pinturas em cerâmica, tapeçarias e até um trabalho feito em casca de bananeira foram encontrados.” Isso sem falar em algumas curiosidades, como notas de sapataria e muitos documentos e cartas. A catalogação feita pela equipe não só permitirá a identificação das obras de Iberê – evitando falsificações – como contribuirá para o trabalho de pesquisadores de arte e até mesmo de biógrafos.

Enquanto isso não é possível, o público em geral pode ter uma boa idéia das principais fases da carreira do pintor na mostra Iberê Camargo: Diante da Pintura. Divididas em salas, as obras seguem uma cronologia, mas não de forma linear. Para deixar isso claro, Paulo Venâncio Filho optou por colocar no começo do espaço expositivo obras do início e do fim da carreira do pintor. Separados apenas por uma meia parede, trabalhos figurativos dos anos 40, como a paisagem do Rio chamada Lapa e Auto-Retrato, estão no mesmo ambiente que Solidão, última tela pintada por Iberê no ano de sua morte.

Nas demais salas, pode-se ver a evolução pictórica de Iberê Camargo. Embora não tenha se vinculado a um movimento artístico específico, ele marcou a história da arte brasileira com um expressionismo gestual muito próprio, em que a explosão das tintas e pinceladas sobre a tela retratam uma inquietude pessoal bastante intensa. “Sua marca é a pesquisa pictórica, que nunca abandonou. Iberê, nascido no interior do Rio Grande do Sul, sempre teve consciência da importância da pintura na cultura ocidental. Indo morar no Rio de Janeiro e estudando na Europa, sempre se colocou diante do desafio de ser um grande pintor. Ele não pertenceu a um movimento, mas não foi um pintor alienado, principalmente em relação aos assuntos artísticos. Lutava, por exemplo, pelo aperfeiçoamento das técnicas de pintura”, diz Venâncio.

No percurso pictórico apresentado pela exposição, podem-se encontrar dois elementos tão presentes na obra de Iberê Camargo quanto foram as bandeirinhas na de Alfredo Volpi: os carretéis e os ciclistas. “São símbolos de suas reminiscências da infância, muito importantes para Iberê”, comenta Venâncio. Uma surpresa para quem acompanha a trajetória da mostra é o trabalho desenvolvido por Iberê no que diz respeito às cores. Solidão, que poderia expressar uma relação dolorida com a morte – o pintor já sofria em conseqüência do câncer –, apresenta um paleta expansiva, até mesmo vibrante, totalmente diferentedo perfil sombrio de várias telas anteriores.

Inquieto
A sombra desses óleos sobre tela – presente, por exemplo, nos inúmeros quadros que têm os carretéis como tema – tem chamado a atenção da mídia. Mas o que se percebe é que ela não obrigatoriamente se refere à relação de Iberê com o fim ou o desconhecido. “Analisando o conjunto de sua obra, percebemos que durante toda a vida ele foi um homem muito inquieto. Sua pintura traduz isso”, diz Mônica.

Para dar qualidade ainda maior ao trabalho de catalogação da obra de Iberê, a equipe coordenada por Mônica realiza também trabalhos de reflexão, com o objetivo de produzir textos e conferências sobre a contribuição do artista para a história da arte e da cultura nacionais. As pesquisas têm base na metodologia de Michael Baxandall, um estudioso proveniente da história social da arte, que usa como método de trabalho a teoria analítica. “O trabalho consiste em promover um entrecruzamento de documentos e obras para que se chegue a conclusões sobre a repercussão da obra de Iberê no panorama artístico e histórico do país”, explica a pesquisadora. Para Mônica, os três volumes resultantes da pesquisa são apenas os primeiros de um trabalho de catalogação que pode ser continuado sempre que se descobrir novas obras do artista.

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