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A luz que o homem branco apagou

Ao contrário do que se dizia, o Brasil tinha sociedades complexas antes da chegada de europeus

WAGNER SILVA E MIGUEL BOYAYANPonta de lança em sílex de 7700 anos e fragmentos de cerâmicaWAGNER SILVA E MIGUEL BOYAYAN

Na escola, os livros de História ensinam, rapidamente, que havia três grupos indígenas com sociedades avançadas na América pré-colombiana, até 1492: astecas e maias acima do Equador e incas aqui nos Andes. Exibindo cidades com rica arquitetura erigida em pedra, domínio sobre a agricultura, hierarquia social e certos conhecimentos científicos, esses povos, cada um à sua maneira e com suas particularidades, costumam ser agrupados na coluna das “civilizações” conquistadas – destruídas, talvez seja o melhor termo – pelas armas de fogo e doenças trazidas pelos primeiros colonizadores europeus do século 16. São a luz que se apagou com a chegada do homem branco. Aos demais povos ameríndios, inclusive os do Brasil, igualmente vítimas do desembarque dos novos senhores vindos do Velho Mundo, restou a imagem de sociedades primitivas, das trevas, sem refinamento cultural ou marcantes distinções de classes, composta por pequenas aldeias isoladas umas das outras onde imperava o nomadismo.

Enfim, representavam o atraso – perto do esplendor imperial de seus contemporâneos andinos e centro-americanos. Recentes descobertas arqueológicas em pelo menos dois pontos distintos da Amazônia brasileira sugerem que astecas, maias e incas não eram os únicos a ter o monopólio das sociedades complexas na época do desembarque do navegador Cristóvão Colombo. Nos últimos anos, intensos trabalhos de campo conduzidos por pesquisadores nacionais e do exterior no Alto Xingu, no norte do Mato Grosso, e na confluência dos rios Negro e Solimões, a cerca de 30 quilômetros de Manaus, no Amazonas, indicam a existência de grandes e refinados assentamentos humanos, habitados simultaneamente por alguns milhares de pessoas, nessas áreas 500 anos atrás – ou até mesmo antes disso.

As evidências mais espetaculares de ocupações dessa magnitude – um feito só possível com a adoção de um estilo de vida sedentário e de práticas que alteravam a floresta nativa e possibilitavam a adoção de uma agricultura razoavelmente produtiva – saíram de sítios pré-históricos situados nas terras hoje habitadas pelo povo kuikuro, dentro da reserva indígena do Xingu, e se materializaram nas páginas da edição de 19 setembro de revista norte-americana Science, uma das publicações de maior peso entre os cientistas.

Num artigo de quatro páginas, ilustrado por seis imagens de satélite, uma pouco usual equipe de autores – três da Universidade da Flórida, dois do Museu Nacional do Rio de Janeiro e dois índios kuikuro – descreve a estrutura do tipo de sociedade que havia nesse ponto da Amazônia entre 1.200 e 1.600 d.C.: um conjunto de 19 aldeias de formato circular, as maiores protegidas por fossas de até 5 metros de profundidade e muros de paliçadas, interligadas por uma extensa e larga malha de estradas de terra batida. Os pesquisadores estimam que entre 2.500 e 5.000 pessoas moravam nas maiores aldeias.

O capricho e a precisão com que as vias foram concebidas e executadas impressionam. Elas eram extremamente retilíneas, com larguras entre 10 e 50 metros e extensão de 3 a 5 quilômetros. “As estradas são um trabalho de engenharia que movimentou uma quantidade enorme de terra no plano horizontal”, afirma o arqueólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, principal autor do texto na Science, um norte-americano de 41 anos que fala português fluentemente por ter vivido sete anos no Brasil, um e meio dos quais dentro do Xingu.

Indícios de praças, pontes, represas e canais e do cultivo de mandioca e outras plantas também foram encontrados no sítio arqueológico, que compreende uma área de 400 quilômetros quadrados, equivalente a um terço do território da capital fluminense, não muito distante das três aldeias contemporâneas dos kuikuro. “Construir essas estruturas na floresta talvez não tenha sido mais complicado do que fazer pirâmides, mas representa uma outra forma de monumentalidade”, compara Heckenberger. “Esse povo tinha uma monumentalidade horizontal”, diz o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional, outro autor do estudo.

“As estradas tinham uma função mais estética do que prática.” Segundo Fausto, os índios não transportavam nada de tão grande entre as aldeias que justificasse abrir caminhos de, no mínimo, 10 metros de largura, onde passam com folga dois automóveis. Os largos caminhos desbravados na floresta estariam ligados à tradição de promover rituais coletivos entre as tribos e simbolizariam a união entre as aldeias. Se essa hipótese estiver correta, entre os séculos 13 e 16, enquanto os incas, por exemplo, demonstravam o seu conhecimento construindo cidades de pedra nas terras altas dos Andes, os membros desse antigo povo do Xingu, instalados numa área plana de floresta tropical, montavam uma majestosa malha viária nas franjas da Amazônia, talvez o seu legado arquitetônico mais surpreendente.

Os vestígios da “cidade” xinguana foram datados pelo método de carbono 14 e o traçado das estradas, que se baseava nos movimentos do Sol e denotava conhecimentos de astronomia, foi mapeado com o auxílio de um GPS de alta precisão. A versão do aparelho usado no Xingu, capaz de fornecer a localização precisa de um ponto geográfico com o auxílio de satélites, tinha uma margem de erro de menos de 1 metro. O instrumento foi de grande valia para os dois índios que também assinam o artigo da Science, Afukaká Kuikuro e Urissapá Tabata Kuikuro. “Eles são ótimos em achar o trajeto das estradas e sítios arqueológicos”, conta Heckenberger. Muitas vezes, trechos dos caminhos abertos pelos habitantes dos antigos assentamentos encontram-se atualmente tomados pela floresta. Nesses pontos, é difícil localizar os salientes meios-fios que se formavam nas bordas das estradas e que podiam chegar a 1 metro de altura.

Os autores do estudo acreditam que, em seus aspectos centrais, o assentamento pré-colonial era uma versão expandida do modo de vida dos menos de 600 kuikuro presentes hoje no Xingu, que também abrem estradas e fazem roças. Nas antigas aldeias de caráter mais residencial, as casas, provavelmente erigidas com estrutura de madeira e cobertas por sapé, como as moradias atuais, ficavam em torno da praça central. A diferença é que agora existe apenas um anel de moradias. Na época do descobrimento da América, deveria haver vários. Não há, contudo, certeza de que os índios que ali viveram há 500 anos eram realmente os ancestrais dos atuais kuikuro.

A hipótese está longe de ser absurda, embora não tenha sido comprovada. “Mas, como há continuidade cultural ao longo de mais de mil anos de história dos povos do Xingu, pode-se pensar o passado por meio do presente”, diz Fausto. “É bem possível que vários aspectos da cultura xinguana atual já estivessem presentes entre as populações que construíram e viveram nas antigas grandes aldeias.” Entre eles, a adoção de hierarquia política, que distingue os índios entre chefes e não-chefes, e de alguns rituais intertribais, semelhantes ao o famoso Quarup, a festa em homenagem aos líderes mortos.

Os índios da época pré-colonial viviam em perfeita harmonia com a floresta intocada, certo? Bem, acredita-se que eles estavam em paz com o meio ambiente. Mas a mata – é forçoso dizer – não era mais virgem. Para edificar uma sociedade de tal complexidade, com estradas ligando aldeias fortificadas e cinturões agrícolas ao seu redor, os antigos kuikuro promoviam grandes alterações na paisagem natural – assim como fazem os kuikuro de hoje. Mas os pesquisadores se apressam em dizer que não se tratava de agressões descabidas aos recursos naturais.

“Alguns estudos de etnobotânica mostram que o manejo indígena do meio ambiente, de forma consciente ou inconsciente, tende a produzir maior biodiversidade do que se a floresta fosse, de fato, ‘virgem'”, explica Fausto. Ecologistas mais radicais, românticos, podem ter visto o trabalho dos brasileiros e norte-americanos na Science como um estímulo ao desmatamento da floresta. Não se trata disso. Provocativamente intitulado “Amazônia 1492: Floresta Virgem ou Bosque Cultural?”, o texto sugere que aquilo que a maioria das pessoas encara como “floresta virgem” é, na verdade, produto de uma interação milenar entre as populações indígenas e o ecossistema. E que a interferência humana no meio ambiente não degradou o solo local.

Terra preta
Muitos quilômetros acima dos antigos assentamentos na área dos kuikuro, mais vestígios de sociedades complexas na época do descobrimento saem de uma mini-Mesopotâmia tropical, distante 30 quilômetros de Manaus, e parecem confirmar as descobertas no Alto Xingu. Numa porção de terra situada na confluência entre os rios Solimões e Negro, a equipe de Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP) identificou 70 sítios arqueológicos com evidências de presença humana e realizou 71 datações por carbono 14 para determinar a sua idade aproximada. Os sítios mais antigos remontam a 8.000 anos. Num deles, por exemplo, descobriu-se uma ponta de lança feita de sílex de 7.700 anos. As áreas arqueológicas mais novas, que concentram a maior parte dos trabalhos realizados até agora, têm sítios com idade entre 2.500 e 500 anos. Cinco desses sítios mais recentesjá foram escavados e mapeados digitalmente: Açutuba, Osvaldo, Lago Grande, Hatahara eDonaStella. O material de estudo nesses locais pode até ser menos espetacular do que as antigas estradas do Alto Xingu. Mas não menos eloqüente.

Nessa região próxima à periferia da capital amazonense, foram encontradas partes de esqueletos humanos dispostas diretamente no solo ou dentro de urnas, incontáveis fragmentos de cerâmicas, valas escavadas na parte de trás de alguns sítios, resquícios de paliçadas – e muita terra preta. Extremamente fértil e rico em nutrientes e repleto de pedaços de cerâmica, esse tipo de solo orgânico costuma ser interpretado como uma marca produzida por grandes e prolongados assentamentos em uma determinada região. Em alguns locais, a terra preta foi usada pelos povos pré-colombianos, junto com centenas de pedaços de cerâmica, como matéria-prima para construir montículos de 1 ou 2 metros de altura que tinham a função de tumbas. Escavando esses montículos, os pesquisadores depararam, às vezes, com urnas funerárias.

“Todos esses elementos indicam que a presença dos povos ameríndios foi contínua em alguns pontos da Amazônia Central”, diz Neves, cujo projeto é financiado pela FAPESP. “Certos sítios foram habitados por décadas seguidas, talvez até mais de cem anos ininterruptos, por uns poucos milhares de pessoas.”Como esse conjunto de achados do passado é interpretado pelo arqueólogo e serve para embasar a teoria da existência de sociedades complexas na Amazônia pré-colonial? Os montículos erigidos com terra preta e cacos de cerâmica, como os dez encontrados no sítio Hataraha, situado numa área elevada vizinha à planície aluvial do Solimões, são um indício de que haveria uma certa divisão de trabalho – e, por conseguinte, diferenças hierárquicas – entre os povos ameríndios da floresta.

“Alguém com comando precisava coordenar os esforços de vários homens para que se conseguisse obter esse tipo de tumba funerária”, comenta Neves, que, até o mês passado, se recuperava de uma malária contraída em sua última viagem à Amazônia. A descoberta de valas nos fundos de áreas onde houve ocupações humanas denota uma preocupação dos habitantes de uma aldeia de se defender de ataques de outras povoações. Em Açutuba, o maior sítio identificado pelo projeto de Neves, com 90 hectares de área, os pesquisadores localizaram duas fossas na parte de trás de seu terreno.

As dimensões dos buracos são significativas: 150 metros de extensão por 2 metros de profundidade. Perto das valas, foram achados também vestígios de paliçadas, antigos muros de madeira, o que reforça a idéia de que os índios queriam proteger a retaguarda de Açutuba. “Se havia preocupação em guarnecer os fundos de uma aldeia, é porque havia risco de guerras entre as tribos”, deduz o arqueólogo da USP. O mesmo raciocínio vale para as aldeias fortificadas dos kuikuro no Alto Xingu.

Presente na maioria dos sítios localizados na confluência dos rios Solimões e Negro (e também na área dos kuikuro e em outras partes da bacia amazônica), a terra preta é um dos elemento-chave para sustentar as teses de que os índios pré-coloniais já levavam um estilo de vida mais elaborado do que se pensava. Em outras palavras, é um indício de que os povos pré-colombianos (ou ao menos algumas levas deles) se fixaram em pontos da bacia amazônica, erigiram aldeias perenes de porte significativo, onde praticavam alguma forma de agricultura. Com o passar do tempo, os resíduos produzidos por essa ocupação contínua de uma área – a carcaça de animais caçados na floresta, as sobras de peixes pescados nos rios vizinhos, pedaços de plantas coletadas ou cultivadas, excrementos humanos, a madeira usada na construção de habitações – acabaram dando origem à terra preta.

Na Amazônia, a maioria dos sítios arqueológicos que apresentam essa formação geológica tem entre 2.500 e 500 anos. Bem no centro de Manaus, na praça Dom Pedro, operários que trabalhavam numa obra de revitalização do espaço público descobriram, sem querer, em agosto passado, três urnas funerárias numa camada de terra preta com idade estimada entre 1.000 e 1.200 anos. De acordo com a interpretação de Neves, a terra preta se torna mais comum há cerca de dois milênios e meio porque, nesse momento da pré-história, deve ter havido uma explosão demográfica – e de sedentarismo – entre as tribos ameríndias. Quando, cerca de cinco séculos atrás, o tamanho das populações indígenas dá sinais de declínio, em razão das armas e doenças trazidas pelo europeus, a formação desse tipo de solo começa a rarear.

Até a década de 1980, não havia consenso de que a terra preta era resultado da ação do homem. Alguns estudiosos imaginavam até que esse tipo de solo negro, que, quando aflora, é usado atualmente para agricultura, pudesse ter-se formado a partir de material oriundo de vulcões andinos trazidos pelo vento ou de sedimentos provenientes de lagos. “Hoje, quase todo mundo aceita a idéia de que a terra preta é fruto da intervenção do homem na paisagem na região”, assegura o arqueólogo da USP. A questão ainda em aberto é saber quanto tempo a terra preta demora para se originar. “Alguns autores acham que 1 centímetro de terra preta leva dez anos para se formar. Pessoalmente, acredito que esse processo é mais rápido e tem mais a ver com a dimensão dos assentamentos do que com o seu tempo de duração”, afirma Neves. Em Açutuba, por exemplo, podem ter vivido 3 mil índios num mesmo período, segundo suas estimativas.

Quando recorrem à expressão sociedade complexa, arqueólogos, antropólogos e outros estudiosos imaginam um povo que havia deixado para trás – ou relegado a um segundo plano – a vida nômade de caçador e coletor das dádivas da fauna e flora nativa. Um grupo de pessoas que tinha se fixado num pedaço de terra e desenvolvido alguma forma de agricultura. Um assentamento com algum grau de sedentarimo, dotado de aldeias para algumas centenas ou talvez milhares de pessoas, com hierarquia social e divisão do trabalho. A hipótese de que houve culturas com essas características na Amazônia pré-colonial se choca com a visão tradicional e ainda dominante da arqueologia, muito influenciada, a partir da década de 1950, pelos trabalhos de campo e artigos da norte-americana Betty Meggers.

Para a veterana pesquisadora, ainda hoje ativa aos 81 anos e fiel às suas teses de décadas atrás, as condições naturais no trópico úmido – solos pobres e pouco alimento disponível ao nível do solo – eram adversas à presença humana em grande escala e somente possibilitavam a formação de pequenas aldeias, com menos de cem pessoas, que ocupavam áreas de poucos hectares. Quando a comida acabava, as pequenas aldeias eram refeitas em outro lugar, o que acontecia com freqüência. Uma crítica comum feita por Meggers os trabalhos de seus colegas que dizem ter descoberto vestígios de grandes assentamentos humanos na Amazônia é que esses pesquisadores teriam, na verdade, encontrado resquícios de pequenas aldeias que nunca foram contemporâneas. No caso da área dos kuikuro, fica difícil acreditar que os índios tenham construído uma malha viária tão grande e larga para ligar aldeias que existiram em épocas distintas.

Teorias alternativas à idéia de que a Amazônia foi morada exclusiva de povos pré-coloniais sem elaborada organização política e social não são exatamente uma novidade produzida no século 21 por pesquisadores como Heckenberger, Fausto, Neves e outros. Em certa medida, cronistas europeus do século 16 que passaram pela floresta equatorial, por exemplo, fizeram referências a sociedades organizadas na bacia amazônica. O problema é que uma das mais famosas alusões desse gênero não passa de lenda, a saga das guerreiras amazonas.

Nas últimas décadas, alguns estudiosos passaram a procurar evidências mais concretas que pudessem contradizer as idéias dos seguidores de Meggers. Mas a tese de que poderia ter havido sociedades complexas nos trópicos na época do descobrimento nunca se firmou devido à escassez de provas materiais que a sustentassem. A descoberta de grandes estradas e aldeias pré-colonias no Alto Xingu e de assentamentos antigos e densos nos arredores de Manaus começam a preencher essa lacuna. Os povos da floresta podiam até não ser tão sofisticados quanto seus vizinhos dos Andes ou da América Central, mas também não eram assim tão “primitivos”. “Não eram um império inca ou maia. No entanto, eram complexos, com uma estrutura amazônica”, resume Heckenberger.

O Projeto
1. Complexidade Social na Pré-história tardia da Amazônia (Alto Xingu); Coordenador: Michael Heckenberger – Universidade da Flórida; Investimento: US$ 150.100 (National Science Foundation, EUA)
2. Levantamento arqueológico da área de confluência dos rios Negro e Solimões: continuidade das escavações, análise da composição química e montagem de um sistema de informações geográficas (02/02953-0); Coordenador: Eduardo Góes Neves – MAE/USP; Investimento: R$ 209.968,18 (FAPESP)

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