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Medicina

A bênção do leite materno

Pesquisas de César Victora moldaram políticas públicas

Victora: maior estudo populacional já feito em países em desenvolvimento

PAULO ROSSI/ DIÁRIO POPULARVictora: maior estudo populacional já feito em países em desenvolvimentoPAULO ROSSI/ DIÁRIO POPULAR

O epidemiologista gaúcho César Gomes Victora, de 53 anos, vencedor do Prêmio FCW na categoria Medicina, vive há mais de duas décadas em Pelotas, cidade a 250 quilômetros de Porto Alegre. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Victora lidera o maior e mais duradouro estudo de acompanhamento de uma população já feito nos países em desenvolvimento. Desde 1982, seu grupo acompanha a saúde das cerca de 6 mil pessoas que nasceram na cidade naquele ano. Perto de 80% desse universo, hoje formado por jovens adultos, continua sendo monitorado e, do trabalho, já brotaram algumas dezenas de pesquisas, a maioria sobre o impacto de problemas ocorridos na gravidez e nos primeiros anos de vida na saúde de indivíduos adultos. A pesquisa demonstra o efeito duradouro das condições adversas, notadamente a desnutrição, no risco de desenvolver patologias como a obesidade, a hipertensão ou o diabetes.

Mas as tarefas de pesquisador e de professor são freqüentemente interrompidas por um outro trabalho que Victora desenvolve, bem longe do Brasil. Desde 1994, ele é um dos coordenadores internacionais de um programa da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) que implementa ações de combate à desnutrição e a doenças prevalentes em crianças de áreas rurais paupérrimas, onde a mortalidade infantil é elevada. Neste programa, conhecido como Avaliação Internacional do Impacto do Programa AIDPI (Atenção Integral à Saúde da Criança), Victora planeja ações, como o treinamento de agentes comunitários ou a reformulação do atendimento em postos de saúde, e depois acompanhando os resultados.

O pesquisador em área rural do Camboja: viagens frequentes a regiões miseráveis como emissário da OMS

ARQUIVO PESSOAL O pesquisador em área rural do Camboja: viagens frequentes a regiões miseráveis como emissário da OMSARQUIVO PESSOAL

Só neste ano esteve na Tanzânia, nas Filipinas e no Peru, e se prepara para ir a Bangladesh. E isso é apenas uma amostra dos 40 países onde já trabalhou. Mas também costuma viajar para grandes cidades, como Londres, Genebra e Nova York, onde participa de reuniões da OMS e do Unicef. O convite para integrar-se a esse projeto internacional resultou de sua experiência no tema no Brasil. Entre 1986 e 1994 realizou trabalho semelhante em cidades do Nordeste brasileiro, cenário de várias de suas pesquisas. “Passo no exterior uns dez dias por mês e o restante eu fico em Pelotas, onde me fixei logo que foi criada a universidade federal. Já recebi convites para sair daqui, mas optei por permanecer. Em Pelotas reúno as melhores condições de realizar meu trabalho”, diz, referindo-se às oportunidades de pesquisa, como o estudo com os nascidos em 1982. Casado pela segunda vez, Victora tem dois filhos adultos – um deles seguiu a carreira de pesquisador na área da saúde: é imunologista – e uma enteada adolescente.

Seu interesse pela epidemiologia despontou logo no início da carreira de médico. Quando concluiu o curso de medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, Victora foi trabalhar num serviço de medicina comunitária numa favela da cidade, o Morro da Cruz. “Me preocupavam muito aquelas crianças desnutridas, macérrimas, que não ganhavam peso devido a uma dieta inadequada, falta de aleitamento e infecções repetidas, principalmente a diarréia. A população tinha um termo para descrever esta doença, ‘a míngua’, que em termos médicos corresponde ao marasmo, ou desnutrição severa”, recorda-se o médico. “Eu tratava aquelas crianças repetidas vezes, e elas acabavam retornando sempre, em sua maioria sem apresentar melhora. Foi então que surgiu meu interesse em estudar saúde pública, para descobrir como prevenir essas doenças. E, dentro da saúde pública, escolhi a epidemiologia, disciplina que identifica as causas das doenças nas populações, propõe e testa intervenções contra estas doenças. Escolhi também a epidemiologia porque sempre gostei muito de matemática e estatística“, diz.

Com crianças em Níger, país africano que ostenta um dos piores níveis de desenvolvimento humano

ARQUIVO PESSOAL Com crianças em Níger, país africano que ostenta um dos piores níveis de desenvolvimento humanoARQUIVO PESSOAL

Em três décadas de carreira, acumula na biografia a publicação de cerca de 300 trabalhos científicos sobre a saúde da criança e do adolescente, com destaque para o papel do aleitamento materno na prevenção das doenças e mortalidade na infância. De acordo com o Institute for Scientific Information (ISI), que indexa os melhores periódicos científicos do planeta, dos dez trabalhos mais citados sobre aleitamento materno na América Latina, sete são de autoria ou co-autoria de Victora, incluindo-se aí a pesquisa que ocupa o primeiro lugar, Evidence for a strong protective effect of breast-feeding against infant deaths due to infectious diseases in Brazil, publicado no jornal Lancet em 1987. Com 234 citações em outras revistas científicas até o final de 2004, este artigo foi o primeiro com métodos epidemiológicos modernos a mostrar uma forte associação entre a mortalidade infantil por diarréia, pneumonia e outras doenças infecciosas, com a falta de aleitamento materno.

O risco de morrer por diarréia em crianças desmamadas revelou-se 14 vezes maior do que naquelas que tomavam leite materno e mais nada (nem água, nem chazinhos, nem leite em pó). Para pneumonia, o risco dos desmamados é quatro vezes superior. Em 2000, Victora coordenou um grupo de trabalho da OMS que analisou dados de seis países diferentes, comprovando a importância do aleitamento materno para evitar a mortalidade de crianças menores de 2 anos de idade. Esse estudo, com 106 citações no ISI, foi também publicado na revista Lancet. Suas pesquisas serviram de lastro para as novas diretrizes da OMS e do Unicef, adotadas pelo Ministério da Saúde do Brasil, recomendando o aleitamento materno exclusivo até os 6 meses de idade, e a continuidade do aleitamento, complementado por outros alimentos, até o segundo ano de vida.

Seu campo de interesse não se limita à questão do aleitamento. Também participa de pesquisas nas áreas de Avaliação de Serviços de Saúde, Desigualdades em Saúde, Sexualidade na Adolescência e Estudos Antropométricos, entre outros. Em 1996 foi indicado pela OMS para preparar o protocolo de um estudo que irá estabelecer novas curvas de crescimento infantil, baseadas em crianças amamentadas, que têm padrão de crescimento diferente das crianças que recebem outros tipos de leite. A Universidade Federal de Pelotas foi o primeiro centro a coletar dados para o Estudo Multicêntrico de Curvas de Crescimento, seguido de Davis (Califórnia, EUA), Oslo (Noruega), Nova Delhi (Índia), Omã (Omã) e Accra (Gana). As novas curvas de crescimento estão em fase final de preparação e serão publicadas pela OMS no início de 2006.

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