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Ciência aplicada ao meio ambiente

O coração de uma floresta

Museu Goeldi revela e ajuda a preservar a riqueza biológica e cultural da Amazônia

Desenho esculpido na rocha em um dos 111 sítios arqueológicos já mapeados: a arte de antigos habitantes do Pará

REPRODUÇÃO ARTE RUPESTRE NA AMAZÔNIA/EDITHE PEREIRA Desenho esculpido na rocha em um dos 111 sítios arqueológicos já mapeados: a arte de antigos habitantes do ParáREPRODUÇÃO ARTE RUPESTRE NA AMAZÔNIA/EDITHE PEREIRA

No final de 2003, sociólogos e antropólogos do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), em conjunto com biólogos e geógrafos, revelaram que em uma região central do Pará conhecida como Terra do Meio havia uma rede de atividades ilícitas: trabalho escravo, tráfico de drogas e de armas e venda ilegal de terras e de madeira. Foi um dos primeiros resultados da Rede Temática de Pesquisa em Modelagem Ambiental da Amazônia (Rede Geoma), que havia sido criada em 1999 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, com a participação de cinco outras instituições, com o propósito de acompanhar a ocupação territorial, detectar problemas e auxiliar na formulação de políticas públicas para a região amazônica.

O alerta sobre os conflitos latentes da Terra do Meio é também uma amostra da diversidade de ações do museu criado em 1866 para zelar pela diversidade de culturas, de plantas e de animais da Amazônia. Uma das mais antigas instituições científicas do país, o Museu Paraense Emílio Goeldi concilia um intenso trabalho de atendimento ao público (cerca de 400 mil visitantes por ano) com uma atividade científica que se expressa por uma média de 90 artigos científicos publicados anualmente em revistas especializadas do Brasil ou do exterior.

Os especialistas do MPEG tratam de temas tão diversos como a classificação de aranhas, a identificação de um composto químico em alguma planta ou a gramática de uma língua indígena. A tarefa de estudar a diversidade natural e cultural amazônica pode hoje parecer ampla, embora no final do século 19, quando o museu foi criado, tenha sido necessária, por falta de instituições de pesquisa que tratassem da Amazônia. Com o tempo, o MPEG foi ganhando mais atribuições, sem abdicar das antigas. Seus especialistas são freqüentemente convocados para avaliar as propostas de demarcação de terras indígenas ou de unidades de conservação, ou os impactos de empreendimentos de grande porte, como as hidrelétricas.

Floresta Amazônica do Pará: pesquisadores do MPEG detectam e ajudam a resolver problemas

MPEG Floresta Amazônica do Pará: pesquisadores do MPEG detectam e ajudam a resolver problemasMPEG

A contribuição científica do Museu Goeldi exibe-se também pela habilidade em intervir na realidade amazônica. “É preciso que a ciência se aproxime da realidade e ajude a resolver problemas”, comenta Ima Vieira, agrônoma com doutorado em ecologia que trabalha no museu desde 1988 e em setembro tomou posse como diretora. “A taxa de conhecimento sobre a região amazônica ainda está aquém da taxa de destruição”, diz ela. Ao Museu Goeldi, ganhador do Prêmio FCW 2004 na categoria Ciência Aplicada ao Meio Ambiente, cabe também um amplo trabalho de inventário e monitoramento da biodiversidade amazônica. Em boa parte, tais pesquisas são conduzidas na Estação Científica Ferreira Penna, a mais recente de suas três bases físicas. Inaugurada em 1993, ocupa uma área de 33 mil hectares (ha) em meio à Floresta Nacional de Caxiuanã, a 400 quilômetros de Belém. A ela soma-se um campus de pesquisa com 10 ha na periferia da cidade e o Parque Zoobotânico, uma síntese da Floresta Amazônica encravada no centro da capital do Pará, com 5,3 ha, cem espécies de animais e 3 mil de plantas.

O Museu Goeldi tem sido um exemplo notável sobre como o trabalho científico pode retornar à população – e não é de hoje. Conta-se que há cerca de 40 anos apareceu por lá um artesão conhecido como Mestre Cardoso, que trabalhava no pólo ceramista da Vila de Icoaraci, em Belém. Naquela época, a produção artesanal de vasos e potes não guardava mais vínculos com as principais tradições ceramistas da região – a marajoara e a tapajônica –, pois as populações que as haviam criado já estavam extintas. Caboclo curioso, Mestre Cardoso pediu para ver as peças de que apenas ouvira falar. Os técnicos do museu lhe abriram as portas do acervo – hoje com cerca de 17 mil peças etnográficas e 80 mil peças e fragmentos arqueológicos – e o ensinaram como fazer réplicas dos vasos e potes fabricados antes da chegada dos europeus. O interesse se espalhou entre outros artesãos. Há poucos anos a demanda por esse tipo de informação se tornou tão intensa que o MPEG se uniu ao Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) para publicar um catálogo e oferecer um curso para os ceramistas de Icoaraci, ampliando o resgate dos padrões históricos do artesanato local.

Ponta de lança (esq.) e ponta de machado: instrumentos dos primeiros habitantes da Amazônia

JANDUARI SIMÕES/ MPEG Ponta de lança (esq.) e ponta de machado: instrumentos dos primeiros habitantes da AmazôniaJANDUARI SIMÕES/ MPEG

Resultados semelhantes emergem do Grupo de Lingüística Indígena do Museu. Os especialistas dessa área não se contentaram em apenas conhecer as línguas faladas na região – e já registraram, por meio de audiovisuais, 52 línguas ameaçadas de extinção. Também elaboram gramáticas, dicionários e materiais pedagógicos que oferecem aos educadores indígenas para manter vivas essas culturas à beira do desaparecimento. Um caso extremo é a língua poruborá, falada por apenas duas pessoas no município de Costa Marques, em Rondônia.

O MPEG foi criado em 1866 a partir da Associação Philomática. Dirigido inicialmente por Domingos Soares Ferreira Penna, o então chamado apenas Museu Paraense fechou as portas em 1889 e só reabriu em 1891. Foi quando chegou a Belém, aos 34 anos, o zoólogo suíço Emílio Goeldi, vindo do Rio de Janeiro para transformar a instituição em um centro de pesquisa de renome internacional. Foi ele quem coordenou a coleta de informações científicas sobre o Amapá, de 1895 a 1900, que permitiram ao governo brasileiro pleitear a posse de um largo trecho desse estado em um tribunal internacional. O episódio imortalizou o zoólogo suíço, cujo nome então se incorporou ao do museu.

O MPEG está reabrindo a área de exposições da Rocinha, uma construção que é um marco arquitetônico do século 19 e esteve fechada por nove anos. O primeiro instituto da América do Sul a ser dirigido por uma mulher – a alemã Emile Snethlage, de 1914 a 1921 – chega aos 140 anos, em outubro de 2006, sob a tutela de outra mulher – e, pela primeira vez, uma paraense.

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