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Especial

Metamorfose ambulante

Livro que será lançado em breve faz radiografia da transformação urbana de São Paulo

São Paulo é uma metrópole em transformação. Favelas, cortiços e esgoto a céu aberto, remanescentes de um período de crescimento desordenado, dividem o cenário com um padrão de urbanização moderno e comprometido com novas funções produtivas e novas tecnologias, que tem como ícones os edifícios e condomínios auto-suficientes. Essas oposições marcam o fim de um ciclo predominantemente industrial e, simultaneamente, o início de outro, caracterizado pela expansão dos serviços. São Paulo não transita, exatamente, entre os dois modelos: o precário e o moderno, a indústria e os serviços coexistem no território urbano, enquanto a metrópole ganha contornos de cidade metropolitana.O novo perfil da Região Metropolitana está desenhado no livroSão Paulo metrópole, elaborado pelos pesquisadores do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) – um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) patrocinados pela FAPESP -, que está sendo lançado pela Edusp. “O livro mostra o processo de transformação da metrópole”, sintetiza Regina Prosperi Meyer, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Universidade de São Paulo (USP), coordenadora do grupo de urbanismo do CEM e co-autora do livro.

Resultado de quase duas décadas de pesquisa, a análise não cai na tentação das interpretações causais: a metrópole é vista como expressão de uma nova etapa do sistema produtivo. Busca articulações de tempo e espaço e elege os temas que melhor descrevem o percurso de transformação, do ponto de vista da evolução urbana, qualificando – com dados e informações georreferenciadas – as situações emergentes e transitórias.O livro é ilustrado com um excelente acervo de mapas e fotos, registradas em seis horas de vôo de helicóptero sobre a região, que revelam as contradições e ajudam a apontar saídas para o futuro da metrópole. “O objetivo é auxiliar os órgãos responsáveis a formular hipóteses sobre a natureza e a estrutura do processo de transformação urbana em curso, assim como produzir uma agenda de ações a serem assumidas pelas políticas públicas de alcance metropolitano”, sublinha Regina Meyer.

Expansão centrípeta
São Paulo registra uma redução drástica no ritmo de crescimento populacional desde a década de 1980, quando a taxa foi de 1,18% ao ano. Esse padrão se manteve na década de 1990: a população cresceu 0,88% ao ano. As mudanças e os rearranjos urbanos nesse período, no entanto, foram intensos e contaminaram todo o espaço metropolitano. Os bairros centrais, como Barra Funda, Bela Vista e Pari, perderam população, crescendo a taxas negativas no mesmo período, enquanto as políticas públicas levavam seus moradores para “casinhas” na periferia. “Os cortiços são uma resposta a isso”, comenta Regina Meyer. Essa dinâmica criou um novo paradoxo urbano e econômico: áreas plenamente equipadas com infra-estrutura e transportes de massa encontram-se em processo de esvaziamento populacional, enquanto se abrem, indiscriminadamente, novos – e distantes – setores de expansão urbana, numa espécie de expansão centrípeta.

Outros bairros, mais consolidados, verticalizaram-se, atraindo para seu entorno atividades de comércio e serviços especializados. Tatuapé, Jardim Anália Franco, Mooca e Moema são exemplo disso. Ao longo de 20 anos, essas áreas registraram intenso movimento de troca de população: prédios novos foram ocupados por pessoas de maior renda e os velhos moradores deslocaram-se para bairros novos que ainda hoje se multiplicam na periferia.Ali, na periferia, a ação dos órgãos públicos fez proliferar os conjuntos habitacionais de interesse social, novo endereço dos moradores do centro, do Tatuapé, do Jardim Anália Franco e tantos outros. Junto com os conjuntos habitacionais, cresceram as construções informais de comércio e serviços e, no espaço originalmente destinado pelos programas oficiais aos equipamentos de serviço, formaram-se novas favelas.

Cidade informal
A metrópole abriga 2 mil favelas com população de mais de 1 milhão de habitantes, legado dramático dos tempos da São Paulo industrial. Atualmente, as grandes favelas, como Heliópolis e Paraisópolis, ganharam atributo de bairro de “pleno direito”, como diz Regina Meyer. Mais uma vez, por iniciativa do próprio poder público, já contam com serviço de ônibus e Correios, por exemplo. “O poder público não pensa mais em remover favelas, só aquelas instaladas em propriedade privada”, afirma Regina Meyer. “Hoje, a palavra de ordem é transformá-las em bairros equipados, a exemplo do programa Favela-Bairro, do Rio de Janeiro.” Como grande parte delas está assentada em áreas públicas e desocupadas – como as regiões de fundos de vale, impróprias para o desenvolvimento de programas habitacionais -, seguirão como permanências do ciclo industrial, no jargão dos urbanistas. E demandam programas de reorganização urbana, como regularização fundiária e implantação de infra-estrutura e equipamentos sociais, ou seja, um desafio para os governos locais e estadual.

O estabelecimento de sistemas viários de grande extensão que atravessam áreas ocupadas por população de baixa renda – como a avenida Jacu Pêssego/Nova Trabalhadores – contribuiu, e muito, para a consolidação dos conjuntos habitacionais nas áreas periféricas e das permanências, como as favelas, agora transformadas em bairro.A oferta de moradias por meio de programas públicos tem sido reduzida diante da demanda e do déficit habitacional, sobretudo para a população com renda de até três salários mínimos. No decorrer dos anos 1980 e 1990, foram-se firmando novas abordagens para provisão de habitação e aprimoraram-se os programas de atuação nas áreas informais da metrópole, como a urbanização de favelas, a regularização de loteamentos irregulares e clandestinos, e a realocação de população em área de risco. “A informalidade passou a ser objeto de políticas públicas, embora sua área de atuação seja ainda muito pequena”, diz Marta Grostein, do Laboratório de Urbanismo daMetrópole, da FAU, e co-autora do livro. É preciso que esses programas contem com a participação de empreendedores privados na produção de habitação de interesse social, que se implementem programas de melhorias em assentamentos informais consolidados – como as favelas-bairro – e que a construção por mutirão se transforme em prática comum.

O roteiro do capital
A metrópole se transforma e as atividades terciárias se deslocam do centro tradicional para o sudoeste do município de São Paulo. Esse fenômeno, a rigor, ocorre há 50anos: passou pelas avenidas Paulista e Faria Lima até alcançar o eixo da Marginal Pinheiros. Esse percurso, no seu início, foi resultado da metropolização da cidade. Mas, a partir dos anos 1980, passou a corresponder à movimentação do grande capital imobiliário e a interesses especulativos. Esse processo não criou novas “centralidades”: materializou-se em edifícios corporativos. Os investimentos públicos, nas décadas de 1980 e 1990, na infra-estrutura viária do eixo sudoeste da metrópole facilitaram o acesso de novos usuários. Roteiro, aliás, idêntico ao do setor financeiro que ocupou as avenidas Luiz Carlos Berrini e Nações Unidas, instalando-se em edifícios auto-suficientes – equipados com restaurantes, shoppings e outros serviços – que criaram “centralidades” inevitáveis, ainda que exacerbadas. Cada torre é um corpo autônomo. O padrão é o isolamento. “A localização das sedes das empresas, sobretudo das grandes corporações multinacionais, também reflete essedeslocamento”,observa Ciro Biderman, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, um dos autores do livro. Esses bairros funcionais foram beneficiados por obras públicas viárias que propiciaram – por meio de desapropriações e transformações de usos – a formação de novas áreas qualificadas de comércio, serviços e habitação de padrão médio e alto.

Antes mesmo disso, empreendimentos imobiliários de grande porte já tinham gerado projetos como Alphaville e Tamboré, destinados à população de alta renda, também concebidos com o conceito de auto-suficiência. “Os condomínios fechados multiplicam-se e tornam-se um padrão de organização agora também para as classes B e C. Esse é um modelo pernicioso de ocupação, já que cria enclaves graves para a urbanização”, avalia Regina Meyer. Os condomínios fechados alastram-se na grande maioria dos municípios da região, em áreas com qualidade ambiental, um atributo que acrescenta valor imobiliário aos empreendimentos. Ignoram o seu entorno, voltando-se exclusivamente para o interior da gleba ou lote onde estão instalados.O mercado imobiliário também foi responsável pelo adensamento populacional junto aos trechos urbanos das rodovias que, a partir dos anos 1990, alcançaram o município de São Paulo. Os novos edifícios residenciais, localizados até o quilômetro 18 da rodovia Raposo Tavares, por exemplo, atendem às faixas de renda média e baixa, exigindo que os moradores tenham veículos que permitam tamanho deslocamento. Os planos do poder público de transformar esses trechos rodoviários em vias expressas com acessos locais deverão ampliar a oferta habitacional nessas áreas.

A dinâmica de expansão da metrópole aproximou áreas urbanas de ocupação distintas do ponto de vista socioeconômico. Hoje, a favela de Paraisópolis é contígua ao Morumbi, e a Granja Viana, vizinha de Carapicuíba. “Essa situação aponta para o fenômeno descrito como ‘proximidade física e distância social’ e não chega a gerar formas de inclusão social ou urbana, já que cada um dos grupos está assentado em sistemas urbanos isolados”, observa Regina Meyer. E esse isolamento se deve, em parte, à organização do sistema viário e de transporte.

Na cidade metropolitana – futuro inevitável de São Paulo – perdem nitidez os contornos de cada um dos 39 municípios que formam a região, e o território transforma-se num espaço urbanizado contínuo. Nesse contexto de dispersão, as vias expressas dão continuidade ao território da metrópole e são condição para a mobilidade. Os sistemas de transporte de massa e mobilidade passam a ser o elemento agregador. É possível morar em Cotia e trabalhar na Zona Leste da capital.A malha viária também contribui para o deslocamento das indústrias das regiões mais centrais para municípios metropolitanos como Osasco e Arujá. E foi responsável pela expansão dos municípios-dormitórios, com grande estoque habitacional, como Franco da Rocha, Francisco Morato e Poá.Essas cidadesconcentram população de baixa renda sem oferecer postos de trabalho na escala necessária. São regiões precárias, com urbanização insuficiente e baixo valor imobiliário. Concentram grande número de moradias produzidaspelo poder público na forma de conjuntos habitacionais, assim como favelas e loteamentos irregulares, muitas vezes assentados em áreas de proteção ambiental e no interior de bacias hidrográficas dos principais sistemas produtores de água. Vigora nessas áreas, desde os anos 1990, uma nova abordagem de intervenção que busca recuperar a degradação, regularizar a ocupação urbana e conter os processos predatórios, lembra Regina Meyer.

A nova metrópole
O novo modelo espacial da metrópole requer uma infra-estrutura de transportes que integre as atividades dispersas no território metropolitano e crie pólos articuladores locais. “A identificação desses pólos de convergência deve ser um dos focos de planejamento urbano”, sugere Regina Meyer. Os pólos metropolitanos – definidos como localizações que articulam funções urbanas locais e metropolitanas associadas ao transporte público de massas – têm papel decisivo na estruturação do novo território metropolitano.

A cidade metrópole também exige a identificação de espaços estratégicos que permitam que as intervenções do poder público ganhem escala metropolitana. Uma dessas áreas de intervenção multiplicadora, sugere a pesquisa, é a orla ferroviária que se estende ao longo dos distritos centrais da cidade de São Paulo, cujo uso está liberado pela privatização da operação das ferrovias. As terras pertenciam à Rede Ferroviária Federal (RFFSA) e o poder público tem possibilidade de utilizá-las na instalação de novos empreendimentos habitacionais que permitiriam trazer novos moradores para o centro, diz Regina Meyer.Os bairros centrais devem propiciar espaços de moradia que redirecionem o fluxo migratório do centro para a periferia.

As transformações para área da Luz – previstas no Plano Integrado de Transportes Urbanos (Pitu 2020), que integrará o metrô e o trem metropolitano -, por exemplo, serão estratégicas para a intensificação do uso habitacional desse setor urbano.A incorporação da cidade informal à cidade legalmente constituída é, atualmente, o grande desafio das políticas públicas, especialmente aquelas relativas à regularização fundiária. Desde 1997, a nova Lei de Proteção e Recuperação de Mananciais permite ao planejador legislar sobre áreas específicas: as bacias ou sub-bacias hidrográficas. Mas é preciso conjugar política urbana e ambiental para garantir que a metrópole se consolide, garantindo qualidade de vida a toda a sua população, conforme Marta Grostein.

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