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Neuroimunologia

Redes cruzadas

Estresse produz efeitos inesperados sobre as conexões entre os sistemas nervoso, imune e endócrino

MIGUEL BOYAYAN / ARTE: JOSÉ MEDDAJoão Palermo-Neto, veterano pesquisador de 59 anos, reconhece a surpresa diante dos resultados de um experimento inusitado, a ser publicado este mês na revista especializada Neuroimmunomodulation: “Pensei que não fosse acontecer nada”. Em um dos laboratórios da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), onde ele leciona e coordena um grupo de pesquisa, camundongos sadios conviveram com animais com tumor de Erlich, que deixa a barriga enorme e pode levar à morte em menos de duas semanas. Alguns dias depois de terem sido colocados juntos, em pares, os camundongos sadios passaram a se comportar como os companheiros doentes: aquietaram-se num canto da gaiola, exploravam menos o espaço ao redor e se alimentavam menos que o habitual. Além disso, caíram suas defesas orgânicas, avaliadas por meio da quantidade de células de defesa – os glóbulos brancos – no sangue.

Numa segunda etapa, os pesquisadores injetaram células de tumor nos camundongos sadios, e o quadro doentio se desenvolveu mais rapidamente nos animais que haviam acompanhado os doentes do que nos que haviam convivido com companheiros sadios. “Nunca tinha visto nada que indicasse que o ato de ficar junto pudesse mudar os parâmetros de imunidade”, comenta Palermo, cuja equipe deve trabalhar intensamente nos próximos meses até descobrir se foi por meio do contato, do cheiro ou de algum estímulo químico que os camundongos sadios perceberam que os parceiros estavam doentes.

Esse mesmo grupo de pesquisa já havia observado em camundongas prenhes submetidas a uma situação de estresse – choques elétricos de baixa intensidade aplicados nas patas – uma elevação da ansiedade, que se refletiu numa sensibilidade maior ao tumor de Erlich, em comparação a um grupo de animais que não havia sido exposto ao mesmo estímulo. Além disso, houve uma redução naatividade de um tipo de células do sistema imune, os macrófagos, que deixaram de engolfar e destruir os microrganismos invasores na intensidade habitual – essa tarefa, a fagocitose, é essencial para acionar outras células de defesa. Em um estudo publicado em 2003, o grupo da USP notou uma redução na fagocitose também como resultado do uso prolongado do diazepam, fármaco bastante usado em medicamentos contra a ansiedade. Em conseqüência, o organismo pode se tornar mais suscetível a infecções geradas por vírus e bactérias, o que, por si só, sugere cuidados redobrados no uso dessas medicações.

Pouco a pouco, esses estudos mostram como o estresse físico ou emocional afeta o organismo, explicando com uma riqueza crescente de detalhes por que as feridas de herpes, por exemplo, explodem após um semestre de muita preocupação ou então por que surge uma gripe ou uma crise de alergia depois de uma prova difícil, que consumiu meses de estudo. Tais situações refletem as intricadas conexões entre três sistemas do organismo: o nervoso, o imune e o endócrino. O primeiro, formado basicamente por bilhões de células nervosas (neurônios) e por moléculas que transmitem as informações (neurotransmissores), controla as reações inconscientes ou conscientes – dos batimentos cardíacos à escolha da roupa pela manhã.

O sistema imune, constituído principalmente pelos glóbulos brancos do sangue, cuida da defesa do organismo, combatendo vírus, bactérias, protozoários, fungos, vermes e toxinas estranhas, além de eliminar células velhas ou doentes. Por fim, o sistema endócrino, com cerca de uma dezena de glândulas que produzem em torno de 40 hormônios, que regulam o trânsito de açúcar e de gordura pelo organismo ou engrossam a voz dos meninos na puberdade. Agindo em conjunto, os três sistemas formam a tríade que governa o organismo. “Não se deve mais examinar um sem avaliar os outros dois, porque os três interagem entre si 24 horas por dia”, observa Wilson Savino, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro.

Chagas e Aids
Em um estudo publicado em setembro de 2003 no European Journal of Immunology, Savino e sua equipe demonstraram que o Trypanosoma cruzi, protozoário causador da doença de Chagas, danifica um dos elos que ligam os três sistemas: o timo, glândula do tamanho de uma ervilha situada no peito, entre os pulmões, atrás do osso esterno, e considerado o maestro do sistema imune. É aí que se forma um tipo de célula branca essencial no combate a vírus e bactérias, os chamados linfócitos T, justamente por se desenvolverem inicialmente no timo. Dessa glândula, essas células seguem para o baço e os gânglios, nos quais terminam de amadurecer – só então é que estão aptas a combater os microrganismos invasores.

De acordo com o trabalho feito na Fiocruz, o T. cruzi faz com que alguns linfócitos T sejam liberados ainda imaturos – portanto, despreparados para cumprir sua função a contento. Além disso, o parasita que infecta 16 milhões de pessoas na América Latina, dos quais 6 milhões no Brasil, intensifica a produção de moléculas que se acumulam no timo e dificultam seu funcionamento. Depois de verificar, há alguns anos, que o timo atrofia à medida que a doença de Chagas evolui, a equipe de Savino demonstrou que a infecção pelo T. cruzi também provoca alterações no hipotálamo e na hipófise, duas regiões do cérebro que agem em conjunto com as glândulas supra-renais e controlam a resposta do sistema imune em situações de estresse agudo ou crônico. “É possível que algo semelhante ocorra em outras doenças infecciosas agudas, nas quais também ocorre a atrofia do timo”, diz ele. “Na raiva, por exemplo, já foram vistas anomalias no chamado eixo hipotálamo-hipofisário.”

Já se pode tirar proveito do conhecimento sobre as conexões entre os três sistemas, em benefício da saúde humana. Em um estudo aceito para publicação na Neuroimmunomodulation, Savino apresenta os fundamentos científicos para o uso do hormônio de crescimento humano (hGH, na sigla em inglês) como medicamento auxiliar no tratamento de doenças que minam o sistema imune, a exemplo da Aids. Em camundongos transgênicos, que produzem esse hormônio em quantidades acima do normal, o hGH apressou a saída de linfócitos do timo, sobre o qual atua diretamente, além de favorecer a migração para o baço e os linfonodos (reservatórios de células do sistema de defesa) e a liberação para o sangue. “Nos animais”, conta Savino, “não observamos efeitos colaterais.”

Se no caso da Aids abre-se uma nova perspectiva de tratamento, os resultados a que chegou a equipe de Thereza Quírico-Santos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), e de Soniza Leon, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estão ajudando a orientar, já há três anos, as estratégias de tratamento de outro problema ligado ao sistema imune, a esclerose múltipla. Trata-se de uma doença neurológica inflamatória crônica do sistema nervoso que surge quando – não se sabe direito por quê – os linfócitos T resolvem atacar a mielina, substância que reveste as fibras nervosas do cérebro, da medula espinhal e dos nervos ópticos, originando um quadro de incapacidade progressiva da visão, de movimentos ou de funções orgânicas, que levam, por exemplo, à incontinência urinária.

Os pesquisadores tornaram o tratamento mais eficaz por meio de duas análises feitas em laboratório: o perfil genético, indicador da suscetibilidade de cada pessoa à doença, e a chamada reatividade imunológica, que indica quais trechos da mielina são capazes de ativar os linfócitos T contra o sistema nervoso. Esses dois exames indicam se é melhor adotar antiinflamatórios ou imunomoduladores, as duas opções terapêuticas hoje disponíveis para controlar a doença. No final do ano, esse grupo concluiu um estudo mostrando que uma molécula de comunicação do sistema imune – uma citocina – favorece o deslocamento de células inflamatórias para o sistema nervoso. “Esse trabalho evidencia que o processo inflamatório que destrói a mielina é contínuo, mesmo em pacientes sem surto”, explica Thereza.

É uma forte indicação, também, de que convém tratar a doença não apenas nos surtos, mas mesmo quando não há sinais do lento avanço da corrosão das fibras nervosas.Em um estudo recém-concluído, Luiz Carlos de Sá-Rocha, da USP, encontrou reações diferentes em um mesmo grupo de camundongos, numa associação direta com a hierarquia: havia os dominantes, que lideram o grupo, alimentam-se primeiro e têm acesso às fêmeas antes dos outros machos; e os submissos, que vivem ofuscados pelos dominantes. Os pesquisadores aplicaram no abdômen de cada um deles um tipo de açúcar – um lipopolissacarídeo – que desperta reações semelhantes às de uma bactéria. E, curiosamente, os dominantes mostraram-se mais sensíveis – pararam de comer e prostraram-se quietos num canto da gaiola -, enquanto os submissos se apresentaram mais resistentes e mantiveram-se na defensiva com os líderes do grupo. “Talvez os camundongos do grupo dos submissos tenham de fazer mais esforço para sobreviver e se tornem mais resistentes”, cogita Sá-Rocha.

Acompanhantes sensíveis
Os resultados obtidos até agora sugerem que possa haver também motivação para reagir, como se os animais se deixassem ou não ficar doentes. Numa tentativa de aplicar os resultadoscientíficos ao universo humano, seria uma forma de entender por que as mãesconseguem conter os sintomas da própria gripe se o filho está com uma gripe forte, ou por que os acompanhantes de doentes também tendem a ficar doentes. Cláudia Fernandes Laham, da Divisão de Psicologia do Hospital das Clínicas (HC) da USP, concluiu no ano passado um levantamento com 50 acompanhantes de doentes – ou cuidadores – atendidos pelo Núcleo de Assistência Domiciliar Interdisciplinar (Nadi), programa com especialistas que visitam os enfermos em suas casas. Com idade média de 58 anos, os cuidadores eram geralmente filhos (36%) ou cônjuges (30%) da pessoa doente. Mais da metade deles (62%) também apresentaram problemas de saúde, como dores musculares, hipertensão ou depressão. “Nas visitas às casas dos pacientes, nem sempreéfácil distinguir quem é o doente e quem é o cuidador”, relata Cláudia. “Às vezes o doente está com a saúde melhor.”

De acordo com seu estudo, cuidar de uma pessoa doente implica perda de liberdade, solidão, cansaço e vigilância constante. “Qualquer pessoa, ao conviver com a dor de outra, pode achar que para manter a relação de amor é preciso sofrer também”, comenta o psicólogo Niraldo de Oliveira Santos, da Divisão de Psicologia do HC da USP. Quando o doente é mais próximo – pai, mãe ou filho -, é ainda maior o risco de aflorarem nos acompanhantes sintomas semelhantes ou até mesmo idênticos, por causa dos laços afetivos mais fortes. “Identificar-se com o sofrimento alheio é uma forma de afastar o sentimento de culpa por estar sadio e de evitar as perdas reais ou simbólicas”, diz Niraldo. Mas, como Cláudia verificou em seu trabalho, conviver com pessoas doentes também traz alguns ganhos, como a oportunidade de cuidar de outra pessoa ou de sentir-se produtivo com uma ocupação.

O poder da tríade

Uma situação de estresse agudo – um vazamento repentino de gás na cozinha ou a iminência de pular de pára-quedas pela primeira vez – dispara dois mecanismos do sistema nervoso: um de resposta imediata e outro de ação mais lenta. Milissegundos após o susto, uma rede de fibras nervosas faz com que as glândulas supra-renais, situadas sobre os rins, produzam os hormônios adrenalina e noradrenalina. Como resultado, o coração começa a bater mais rápido, a pupila se dilata e o sangue irriga os músculos mais intensamente – e o corpo mobiliza as energias para a reação de luta ou de fuga.

Em paralelo, o hipotálamo recebe a informação de que algo incomum está acontecendo e libera um hormônio chamado fator liberador de corticotrofina (CRF), que segue até a hipófise, também na base do cérebro. Acionada, a hipófise secreta o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH). Caindo na corrente sanguínea, o ACTH chega às supra-renais e induz à liberação de mais um hormônio, o cortisol, cuja entrada na corrente sanguínea ocorre de duas a quatro horas após o susto.
Sob a ação do cortisol, altera-se o perfil do sistema imune: a chamada resposta celular, efetivada principalmente pelos macrófagos e por células brancas chamadas neutrófilos, cede lugar à resposta humoral, baseada na produção de anticorpos, liberados pelas células. Nessa troca de guardas, o organismo pode ficar mais vulnerável a bactérias como a da tuberculose, cuja eliminação depende essencialmente da resposta celular.
O problema maior é com o estresse contínuo, que mobiliza esses hormônios com regularidade e, assim, deixa as portas abertas por mais tempo.Concentrações continuamente elevadas desses hormônios ajudam a explicar o fato de haver um risco 60% maior de uma pessoa idosa morrer após a perda do companheiro com quem viveu durante quase uma eternidade.
Sob o viés da neuroimunologia, morrer de desgosto não é apenas uma figura de linguagem, mas uma situação bioquimicamente explicável.“Ou o organismo se adapta, ou surgem os problemas”, afirma Sá-Rocha. Segundo ele, a tendência é de que as situações que um dia pareceram intoleráveis deixem de perturbar o equilíbrio do corpo. “Os níveis mais altos de adrenalina de quem trabalha na Bolsa de Valores”, exemplifica, “podem não causar mais problemas para quem está acostumado e, com o tempo, podem até mesmo cair frente ao mesmo estímulo estressor.”

Os projetos
1. Neuroimunomodulação; Modalidade Projeto Temático; Coordenador João Palermo-Neto – FMVZ/USP; Investimento R$ 716.213,73 (FAPESP)
2. Imunorreatividade na Esclerose Múltipla; Coordenadora Thereza Quírico-Santos – UFF; Investimento R$ 15.000 (CNPq) e R$ 6.000 (Capes)

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