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Carta da editora | 96

Um toque de ficção

Quando uma série de curiosos acasos e coincidências leva a uma descoberta significativa, um relato despretensioso sobre um achado científico, passando ao largo das asperezas da linguagem científica, pode se tornar leitura quase tão envolvente e divertida quanto um pequeno conto escrito com graça e leveza por autor que domina o seu ofício. E isso, mesmo para quem situa as grandes narrativas ficcionais em lugar incomparável dentre as criações da cultura que mais nos deleitam o espírito. Esse comentário vem a propósito da reportagem de capa desta edição em que o editor-assistente de Ciência, Ricardo Zorzetto, relata, o achado de aproximadamente 70 fósseis de dinossauros com cerca de 110 milhões de anos, no interior do Maranhão e, graças a esse material, a possível descoberta de uma espécie desconhecida desses gigantescos répteis pré-históricos. Independentemente do amplo e muito útil panorama traçado na reportagem sobre a pesquisa de dinossauros no Brasil, no caso, é mesmo o como se chega aos fósseis que dá sabor especial ao texto, ao envolver num mesmo e inusitado enredo um rapaz tagarela, empenhado em fazer proselitismo religioso, um agricultor, um professor de biologia formado pela Universidade Federal do Piauí e um paleontólogo da Universidade Federal do Maranhão. Vale a pena conferir.

O passado remoto entrevisto com as armas da ciência é, sem dúvida, fascinante – é compreensível, portanto, alguma relutância em sair das imaginárias viagens a que ele arrasta. Uma vez que ela tenha sido vencida, contudo, vale a pena tomar contato com questões bem próximas e, certamente, de grande interesse político para o país, como o atual empenho do Ministério da Defesa para consolidar o chamado Sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação de Interesse da Defesa Nacional (SisCTID) e, ao mesmo tempo, integrá-lo ao sistema civil de ciência e tecnologia. Nesse esforço, o primeiro passo concreto, conforme relata a editora de Política, Claudia Izique, é a decisão do ministério de acelerar dez projetos que há anos vêm sendo desenvolvidos nos institutos de pesquisa da Marinha, do Exército e da Aeronáutica – entre eles o da Usina de Hexafluoreto de Urânio, que permitirá ao Brasil dominar todo o ciclo do combustível nuclear. O tema é de particular interesse no momento em que está emcursouma delicada negociação do país com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) quanto a formas de inspeção nas ultracentrífugas de enriquecimento de urânio que estão sendo instaladas numa unidade da empresa Indústrias Nucleares do Brasil (INB).

No campo das tecnologias que não saturam o ambiente de eletricidade nem de outros resíduos indesejáveis, vale ressaltar a reportagem sobre um novo e mais eficiente processo de reciclagem de aparas e objetos de alumínio, como as latinhas de cerveja e de refrigerante, para incluí-los na liga de alumínio para produção de novas latas. A novidade, relata o repórter Samuel Antenor, baseia-se num forno aquecido por plasma, um gás produzido em altas temperaturas e mais conhecido como o quarto estado da matéria.

Para finalizar, voltemos de certo modoao ponto de partida: à ficção – agora, de fato. Mais precisamente, a Machado de Assis, o bruxo construtor, para muitos, das maiores obras-primas da literatura brasileira e, por isso mesmo, sempre submetido a novos olhares que anseiam por um desvendamento total de sua singularidade como autor. Dessa vez, como relata o editor de Humanidades, Carlos Haag, Machado emerge da observação sistemática de um historiador como personagem capaz de combinar duas facetas aparentemente irreconciliáveis, a de romancista e a de funcionário público, para realizar uma crítica radical da truculência senhorial do Brasil. É leitura imperdível.

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