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Literatura

Hilda Hilst morreu. Viva Hilda Hilst!

Perda da escritora é bom momento para refletir sobre a densidade de sua obra poética

A morte de Hilda Hilst (1930-2004) encontra ainda engatinhando a questão da literatura de Hilda Hilst. Embora a autora tenha alcançado grande notoriedade pessoal, por conta de uma inteligência incomum, de um temperamento verdadeiramente exuberante e de uma prontidão de espírito capaz de surpreender as pautas banais das entrevistas, a sua obra, de rara extensão e variedade, ainda é largamente desconhecida. A rigor, ela jamais obteve uma única crítica suficientemente abrangente e esclarecedora, a despeito de ter havido uma ou outra leitura bem feita de textos particulares. O mais foi atribuir-lhe isso mesmo que se confirmou amplamente no noticiário de sua morte: mulher ousada, original, avançada para a sua época, louca refinada, explosiva etc.

Pode-se levantar hipóteses para a fixação desse quadro em que a imagem pública da artista como tipo excêntrico predominou largamente sobre o conhecimento da obra: o comportamento liberal de Hilda em face dos padrões morais vigentes em certos tempos e lugares sociais; a célebre beleza da autora; a distância que a sua obra mantém dos valores modernistas predominantes no Brasil e ainda mais em São Paulo, sobretudo no que toca à questão do conteúdo “nacional”, que simplesmente não se põe para Hilda; a dificuldade de leitura básica de seus textos, dada a sua exigência de erudição literária, filosófica e até científica, que acaba gerando o emprego de um “vocabulário final” altamente idiossincrático; o seu afastamento radical dos centros de convívio intelectual predominantes no país, vivendo desde os anos 1960 praticamente reclusa num sítio próximo a Campinas (SP); a estratégia escandalosa de chamar atenção para a sua obra por meio da suposta adesão ao registro pornográfico, que evidentemente contraria a pudicícia acadêmica e a hierarquização vigente dos gêneros literários; a produção prolífica e errática entre gêneros literários muito diversos e mesmo a mistura sem precedentes deles todos no interior de cada texto; a publicação de praticamente toda a obra em edições artesanais, em geral muito bonitas, produzidas por artistas amigos, mas sem nenhum alcance de distribuição; o desinteresse da autora pelo que dissesse respeito a aspectos contratuais das edições; enfim, não é preciso ir além. Está perfeitamente claro que muitas são as explicações possíveis para a pouca crítica e o parco conhecimento público de Hilda Hilst enquanto questão literária. Mas nada disso pode justificar a esplêndida ignorância que daí resulta, explicada ou não.

Assim, mais relevante do que relacionar essas hipóteses a respeito de por que a leitura da obra hilstiana acabou não acontecendo até agora, talvez seja referir aspectos fecundos que possam ser explorados por hipóteses de trabalho dirigidas doravante à obra, deixando estrategicamente a artista mais ao fundo. Isso significa, em outros termos, que o principal esforço da crítica de Hilda Hilst, hoje, é justamente esquecer, ainda que estrategicamente, a extraordinária pessoa (e amiga adorável, se me é permitido uma nota pessoal) que ela foi, durante toda a vida, e ainda mais ao longo de seu difícil final, que é quando mais se afere o valor de um caráter, segundo a velha tópica seiscentista do último combate, no qual, dependendo de como se perde, e necessariamente se perde, então se vence.

Garantida a prevalência das articulações textuais sobre as biográficas, pode-se levantar, enfim, uma pauta nada pequena de aspectos de sua obra a ser considerada em trabalhos de fôlego, como, por exemplo, a questão dos vários usos do obsceno ou a questão da anarquia dos gêneros interna aos seus textos de qualquer gênero. Neste último aspecto, pode-se considerar que os textos de Hilda Hilst se efetuam como exercícios de estilo, isto é, eles fazem ou dizem o que lhes é próprio a partir do emprego de matrizes canônicas nos diferentes gêneros da tradição, como, por exemplo, os cantares bíblicos, a cantiga galaico-portuguesa, a canção petrarquista, a poesia mística espanhola, o idílio árcade, a novela epistolar libertina etc. Essa imitação à antiga, contudo, jamais se pratica com purismo arqueológico, mas, bem ao contrário, submetida à mediação de autores decisivos do século XX: a imagética sublime de Rilke; o fluxo de consciência de Joyce, a cena minimalista de Beckett, o sensacionismo de Pessoa, apenas para referir uma quadra de escritores facilmente reconhecíveis em seus escritos.

Além desse poligrafismo, Hilda Hilst funde num só texto todos os gêneros que pratica, como faz exemplarmente em A obscena senhora D: poesia lírica (seja pela inclusão de versos na narrativa, seja imprimindo ritmo à prosa, o que adquire dicção particularíssima nela), teatro (fazendo com que, por exemplo, o chamado fluxo de consciência tome forma dialógica) e mesmo crônica (ao inserir na ficção comentários de acontecimentos ou personagens históricas conhecidos). Há outras questões imediatamente relevantes a estudar: a questão do esquematismo das situações narrativas (que partem de situações polarizadas, quase maniqueístas, e evoluem na direção de implodir as duas pontas da oposição) e da incompletude das personagens (que vão proliferando em nomes esquisitos e inverossímeis, a maioria iniciada com H, sem adquirir, nelas mesmas, nenhum tipo de profundidade psicológica). Itens como esses são todos recorrentes na produção de Hilda Hilst e precisam ser investigados a fundo. A título de exemplo, apresento resumidamente alguns problemas cristalizados à roda da primeira questão da lista, a do obsceno.

Alguma noção de obscenidade parece justa de ser aplicada ao conjunto da obra de Hilda Hilst, e não apenas à trilogia dita pornográfica, em prosa, à qual se acrescenta a poesia impagável de Bufólicas. Mas o primeiro ponto a deixar claro é que essa noção pouco ou nada tem em comum com a ideia de literatura erótica, ao contrário do que tantas vezes se tem publicado. Esta tetralogia obscena, aliás, é seguramente a parte menos erótica de toda a sua escrita. A ideia de erotismo não ficaria mal, por exemplo, aplicada a livros como Júbilo, memória, noviciado da paixão, Cantares de perda e predileção ou Da morte , desde que se ajustasse a uma concepção de erotismo construída por matrizes místicas tradicionais, como a poesia de Sor Juana Inés, San Juan de La Cruz ou Santa Teresa , mas é francamente estapafúrdia se aplicada a O caderno rosa de Lory Lambi, Cartas de um sedutor, ou Contos d’escárnio. Quer dizer, há certamente erotismo na produção poética de registro mais elevado, na qual Hilda faz imitação deliberada da maneira antiga. O movimento que então descreve, articulado entre o sublime e o rebaixado, estabelece as balizas de um desejo de aspiração metafísica, que emula modelos poéticos de erotismo ao divino, como as dos cantares bíblicos e da poesia mística seiscentista da Península Ibérica. Mas não há como propor seriamente erotismo na trilogia (ou tetralogia) obscena, depois que se a lê realmente, e não se fique na platitude dos comentários a respeito das “loucuras” de Hilda.

A sugestão de pornográfica, a rigor, também deve ser afastada como imprópria, pois a crueza dos textos em questão não tem jamais como efeito ou propósito a excitação do leitor, a não ser que se trate (como me esforcei para imaginar certa vez) de um tarado lexical, de um onanista literário – tipo de esquisitice que, temo, exista. Pois os textos de Hilda Hilst ditos pornográficos revertem todo o tempo para si mesmos e para literatura inovadora que produzem. São narrativas penetradas de um forte viés ensaístico, a escarafunchar perversamente os intervalos entre a invenção do autor e os interesses dos outros, cujo signo é o leitor comum ou o não-leitor, que, na literatura exigente de Hilda, dá exatamente no mesmo. O conceito de obsceno, aqui, se aplica basicamente à identificação forçada entre a criação e o seu usufruto mercadológico banal, ou, de outro modo, à percepção inconsequente da invenção, sem que se busque ou viva nela uma experiência radical de destruição e catástrofe que os textos parecem pressupor na criação genuína.

Pode-se dizer, portanto, que os textos obscenos encenam o confronto entre a arte e a sua normalização no mundo, o que se pode dar tanto pelas expectativas rasteiras dos leitores, pelas contas dos editores desinteressados de tudo que não seja as contas dos editores, quanto pelos ridículos próprios do autor, macaco vaidoso de si mesmo. Ora, nesse caso, é forçoso reconhecer que esse cenário básico não é exclusivo dos livros ditos pornográficos, ao contrário do que muitas vezes é dito por críticos apologéticos de Hilda, que julgam possível isolar a pornografia da tetralogia do restante de sua obra séria. Nada mais improvável. Os escritos ostensivamente obscenos apenas manifestam, com a crueza do calão, do sarcasmo, do nonsense ou do bestialógico, um núcleo forte que percorre todos os textos hilstianos como uma espécie de interdito de significação. A onipresença incestuosa do pai em sua literatura, por exemplo, renderia muito mais se lida nesta chave metalinguística e existencial do que em termos de revelações biográficas.

Além disso, o que estou chamando de interdito de significação, tendo em mente o conceito de obsceno discutido por Georges Bataille, articula-se na obra de Hilda Hilst com um traço ostensivo de crueldade, cujo efeito primeiro é o riso com dor, o riso satírico que busca ofender e ferir, não o riso polido e pedagógico da comédia aristotélica. Pica-se agressivamente tudo o que se entende como agressivamente estúpido, mesquinho e estreito, compondo, então, um decoro de desproporções proporcionadas. Ri-se maldosamente, por exemplo, da moral carola e autoritária, amplificada até o nonsense de um mundo irremediavelmente grosseiro e idiotizado. Visto por outro ângulo, o ataque brutal à idiotia galopante e generalizada proclama uma espécie de resistência bem-humorada da invenção e da autocriação, que não admitem renunciar à busca de autonomia e independência no pior dos mundos.

Isso também quer dizer que, ainda que o tom desses escritos obscenos seja, por vezes, de uma hilaridade destrambelhada, de uma imaginação frenética a alimentar-se do mau gosto e da bizarria, ele nunca chega a tornar-se verdadeiramente triunfal. Em Bufólicas, por exemplo, o mais delicadamente engraçado que pode ser encontrado nos livros de Hilda Hilst, a moral das fábulas reinventadas termina sempre na formulação de uma outra: a de que a liberdade de alguém é a certeza da vingança odiosa dos outros. Nas descrições agônicas do mundo feitas pelos seus textos, a obscenidade básica está aí, nesse desajuste de raiz entre os desejos mais sinceros, criativos e generosos, de um lado, e as práticas adotadas voluntariamente pelo comum dos homens, de outro. Os homens simplesmente não combinam consigo mesmos, nem em termos pessoais, nem coletivos. Resta a esperança de Deus, mas em geral ela não se realiza senão no estigma e no êxtase doloroso, em que a maldade e a vileza são os atributos divinos mais evidentes.

Por sua vez, quando os homens são pensados em comum, nada parece mais comum neles do que a baixeza que emulam: a vizinhança é sempre horrenda, a autoridade é arbitrária e burra, quando não assassina, o revolucionário está estupidamente enganado sobre sua vontade, sobre a ideologia que defende e sobre o efeito de sua ação. E, em relação ao mundo dos livros, o quadro não é melhor: o editor é rematado ladrão, o artista em geral é picareta, vaidoso e venal, e, por isso mesmo, vive no âmbito da dependência. Há, pois, nos textos mais duramente obscenos, um existencialismo niilista contundente, que, entretanto, também não se cristaliza de maneira hegemônica ou exclusiva, pois é temperado por um ânimo político e uma inquietude metafísica e mística de rara intensidade na literatura brasileira do último quarto do século XX. Isto posto, a morte de Hilda Hilst – é o que simplesmente pretendia dizer – é apenas o início da longa vida de Hilda Hilst.

Venho de tempos antigos
Deus pode ser
a grande noite escura
E de sobremesa
O flambante sorvete de cereja.
Deus? Uma superfície de gelo
ancorada no riso.
Venho de tempos antigos.
Nomes extensos:
Vaz Cardoso, Almeida Prado
Dubayelle Hilst… eventos.
Venho de tuas raízes, sopros de ti.
E amo-te lassa agora, sangue, vinho
Taças irreais corroídas de tempo.
Amo-te como se houvesse
o mais e o descaminho.
Como se pisássemos em avencas
E elas gritassem, vítimas de nós dois:
Intemporais, veementes.
Amo-te mínima como quem quer MAIS
Como quem tudo adivinha:
Lobo, lua, raposa e ancestrais
Dize de mim: És minha.

 

Alcir Pécora é professor de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. É responsável pela organização da obra completa da autora para a Editora Globo

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