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Cultura

Um museu portátil para o Modernismo

Caixa modernista reúne os documentos mais importantes do movimento

Qual é o tamanho ideal de um museu? Quem só se contenta com as grandes proporções arquitetônicas de um Guggenheim ou de um MAM vai aprender a se contentar com menos forma, mas bastante conteúdo, com a Caixa modernista, um verdadeiro museu portátil da produção das vanguardas artísticas brasileiras que, embora meça apenas 38,5 cm x 30 cm, traz 30 dos mais importantes livros e documentos sobre a Semana de Arte Moderna de 22, alguns em edição fac-similar. Lançada pela Edusp, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais e Imprensa Oficial, tem organização de Jorge Schwartz (professor de literatura hispano-americana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo). “A ideia de um arquivo vivo do Modernismo é organizar um repertório por mim considerado essencial, de forma concentrada e caleidoscópica, para o conhecimento desse movimento, colocando-o frente à frente com o leitor”, explica Schwartz.

A Caixa modernista é um desdobramento da exposição Da Antropofagia a Brasília, realizada no Instituto Valenciano de Arte Moderna, na Espanha, em 2000, e repetida no Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), de São Paulo, em 2002, ambas com curadoria de Schwartz, que acabaram rendendo um precioso catálogo editado naquele ano pela Cosac&Naify. Mas o lançamento traz “fetiches” inéditos. “Como toda operação museográfica, há o desejo de colocar à disposição do público verdadeiros tesouros, obras de rara beleza que somente alguns colecionadores ou bibliotecas especializadas têm condições de possuir”, diz. Entre os destaques da Caixa, edições fac-similares da Paulicea desvairada, de Mario de Andrade, e de Pau Brasil, de Oswald de Andrade, “peças fundamentais na estruturação da nova palavra poética”, porém, hoje, pouco acessíveis ao público.

O ideal que orientou a Caixa foi respeitar o caráter interdisciplinar da Semana, reunindo objetos referentes à literatura, às artes plásticas, à fotografia, ao cinema, à arquitetura, às artes decorativas, à música e à escultura. Daí, além dos livros já citados, encontramos reproduções do primeiro número da Revista de Antropofagia, de 1928; cartões postais com obras de Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Anita Malfatti; fotografias ligadas à Semana de 22; um CD, Música em torno do Modernismo, produzido por José Miguel Wisnik e Cacá Machado, com obras de Villa-Lobos, Guarnieri e Nazareth, incluindo-se gravações originais e um inédito de Villa, recuperado e executado por Wisnik; bem como o convite e o catálogo da exposição de Tarsila na Galerie Percier, de Paris, em 1926.

De quebra, um inédito importante, “uma avis rara do Modernismo”: um datiloscrito do programa da Semana, em papel timbrado do Automóvel Clube e pertencente ao acervo de Paulo Prado, onde está registrada, à máquina, uma prévia das três noites da Semana. Schwartz também se preocupou em tentar descentralizar (“apesar das dificuldades”) o papel de São Paulo no movimento modernista sem, no entanto, diminuir seus méritos fundadores, ressaltando igualmente a importância da presença estrangeira (Marinetti, Cendrars, Milhaud, entre outros). “Na década de 1920, o Modernismo já tinha se espalhado pelo país inteiro. Mario de Andrade, no prefácio a Macunaíma , luta pela ‘desregionalização’ do movimento”, lembra o pesquisador. Em meio aos 450 anos da cidade e a uma minissérie de televisão (Um só coração, da TV Globo), que retrata o Modernismo na capital paulista, a discussão “bairrista” ganha novas tintas. “É indiscutível que, em 1922, São Paulo era uma cidade provinciana comparada à capital da República que havia sido modernizada a partir de 1905, seguindo o modelo parisiense de Hausmann. Mas é muito diferente ter apenas espírito ou artistas modernizantes da atitude agressivamente programática, revolucionária e grupal como foi o movimento de 22”, nota Schwartz. Para quem a polêmica pode ser resolvida dando-se a palavra a Manuel Bandeira, num comentário feito sobre o Salão de 1931, no Rio de Janeiro, organizado por Lúcio Costa, visto por muitos como uma comprovação do pioneirismo modernista carioca. “É me grato constatar que o sucesso do ‘Salão’ contou com um elemento decisivo na contribuição paulista. Lúcio Costa compreendeu desde o primeiro momento que em matéria de boa diretriz artística São Paulo é quase todo o Brasil. Foi de São Paulo que partiu o movimento moderno. Os maiores nomes vieram daí, e aí é que poetas, músicos, pintores e escultores de outros estados encontraram o ambiente em que foram mais bem compreendidos e definitivamente consagrados”, disse o poeta ao Diário Nacional. Se o epicentro ainda é controverso, a dimensão da ruptura é clara.

“Os próprios participantes ficariam ‘abestalhados’ com seus destinos. Mas quando vemos, por exemplo, nossos medalhões numa minissérie da Globo, de alcance nacional-popular, podemos afirmar que a profecia de Oswald, de que a massa haveria de comer o seu biscoito fino, acabou se concretizando. O que a cultura brasileira deve ao movimento? Mais do que a vã imaginação supõe”, observa Schwartz. Ele lembra, por exemplo, o débito da poesia concreta ao Modernismo, tendo construído parte de seu ideário nos pressupostos antropofágicos de Oswald; ou, ainda, o Cinema Novo como beneficiário direto do ideário modernista. Ainda, segundo ele, são reflexos de 22: o Tropicalismo; a revitalização da dramaturgia brasileira para além de Nelson Rodrigues; o desenvolvimento da arquitetura brasileira que, embora culmine com Brasília, se inicia com os projetos de Warchavchik em São Paulo, autor, em 1925, do Manifesto acerca da arquitetura moderna. “Se nesse preciso momento podemos ver com tranquilidade e admiração uma exposição sobre Arte Africana em São Paulo, bem como uma retrospectiva de Picasso, penso que, em última instância, isso se deve aos caminhos abertos pela geração de 22, possibilitando um olhar em direção aos, nem sempre fáceis, códigos abstratos da modernidade. É pouco?”

Ruptura
Mas as conquistas podem vir acompanhadas de males. “O ‘novo’ como ruptura com a tradição, como oposição ao passado, e todos os pressupostos vanguardistas embutidos nesse conceito acabaram, com o tempo, migrando para a esfera do consumo. O mercado é inconcebível sem essa aliança, nefasta a meu ver, com a ideologia do novo”, nota Schwartz. Na raiz do movimento alojava-se, sem que esse o desejasse, a sua banalização. “Entramos no consumo do ‘novo pelo novo’ ou do novo como fetiche. Bem diferente das rupturas propostas pelos modernistas, num momento crucial em que se propuseram a internacionalizar a sua linguagem.”

Alguns críticos do Modernismo também notam que o movimento passou como um trator sobre a arte acadêmica então produzida no Brasil, que teria impedido uma harmonização entre futuro e passado. “A Semana, para ter contornos revolucionários, deveria opor-se ferrenhamente a toda uma opulenta tradição. Mas a história do movimento mostra que os departamentos não foram tão estanques assim: Anita só foi radicalmente expressionista durante um breve período; a etapa cubista, ‘paubrasilizante’ e antropófaga de Tarsila também só foi exercida durante os anos mais radicais”, lembra o organizador. Para quem, um bom exemplo das ambivalências modernistas podem ser explicitadas no famoso Salão de dona Olívia Guedes Penteado, na rua Duque de Caxias, onde conviviam o estilo acadêmico mais tradicional com o solar decorado por Lasar Segall, dedicado inteiramente às vanguardas e onde se realizavam os encontros semanais do grupo modernista.

“Também quando Cendrars veio ao Brasil uma das atividades do grupo foi mostrar e festejar o nosso barroco, na famosa caravana modernista a Minas Gerais, em 1924. Ou seja, os modernistas souberam olhar para o passado, que ‘é lição para se meditar, não para reproduzir’, como afirmara Mario de Andrade no Prefácio interessantíssimo, de 1922″, explica. Movimento elitista e revolucionário; estético, mas preocupado com o social, descambando por vezes para uma admiração pelo fascismo; seja como for, o Modernismo pode, com justeza, ser reconhecido, como disse Mario, como “a maior orgia intelectual que a história artística do país registra”. Veremos algo semelhante no futuro? Schwartz não quer fazer “previsões esotéricas”, mas acha preocupante a rota da globalização da arte em que a marca do nacional não aponta para o referente. “Prefiro me dedicar a resgatar documentos e papéis esquecidos ou perdidos”, diz. Schwartz, aliás, já prepara uma caixa concretista e sonha com uma nova caixa modernista, com mais documentos em fac-símile, como Cobra Norato, de Raul Bopp, ou Macunaíma, com desenhos de Pedro Nava. O resto é com o leitor. Afinal, a Caixa modernista, como todo bom museu, pode conter o passado sem deixar de fustigar o futuro.

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