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Ficção

A inexistência de Plutão

Clyde Tombaugh, o astrônomo que descobriu Plutão, o mais remoto dos planetas, foi contemporâneo de meu pai, José Ribamar. Ambos nasceram no longínquo verão de 1906, Tombaugh numa noite em que o céu do Hemisfério Norte era riscado por um cometa, o Schlumberger, enquanto meu pai, um piauiense, veio ao mundo respirando a aspereza do firmamento nordestino. Um ano antes, em 1905, morreu Julio Verne, o criador da ficção científica, e minha mãe, que é espírita, assegura que Tombaugh foi a reencarnação de Verne. Não sei se um ano basta para um processo tão complexo, mas ela argumenta que, no campo espiritual, a lógica é sempre outra, ou como prefere dizer, é “invertida”.

Mas não é isso o que interessa aos senhores, eu presumo, e nem a mim, coitado de mim, que estou aqui para ser julgado por um crime inexistente. Matar um cachorro, isso basta para levar um sujeito para as grades? Batizei meu primeiro cachorro, um vira-lata, de Plutão. Como todos sabem, Plutão, o planeta e não meu cachorro, tem uma órbita excêntrica, isto é, que se desvia ou afasta de seu centro; e meu cachorro, que se comportava como um tamanduá, tinha atração por cupins. Ele não latia, talvez pela ausência de dentes, ou então por temperamento – e meu avô afirmava que era mudo. Era um bom cachorro, ainda que excêntrico.
De que mesmo eu falava? Ah, sim, de Plutão, o planeta, e não de Plutão, o cachorro. E de Clyde Tombaugh, o astrônomo que descobriu o astro, não o cachorro, e de meu pai, José Ribamar, que nada descobriu além da rudeza do mundo. Quando Tombaugh fez seu achado científico, tinha só 24 anos, e meu pai, em conseqüência, também. Mas meu pai, aos 24 anos, não tinha tempo a perder com a observação do céu, já que, como advogado, passava suas horas, ao contrário, com os olhos derramados sobre processos judiciais. Aliás, na mesma pose contrita dos tamanduás que fuçam os formigueiros.

Plutão, o planeta, tem uma lua, Caronte, que é só um pouco menor que ele. E, não fossem os movimentos giratórios que faz em torno de seu mestre, se poderia afimar que ela sim, Caronte, é o planeta, e não Plutão. Ambos, Plutão e Caronte, viajam no espaço sempre face a face, quer dizer, numa espécie de namoro silencioso, e sem brigas, já que nunca se dão as costas. Pois Plutão, meu cachorro, era também um animal extravagante. Quando saíamos, costumava andar sempre às minhas costas, e nunca à frente, como fazem os cachorros nos filmes americanos, nas expedições de caça e nas batidas policiais. Se latia, vacilava, era gago. Se rosnava, afogava-se no próprio resmungo.

Plutão, como Vênus e Urano, tem uma rotação retrógrada, quer dizer, viaja na direção oposta à dos outros planetas. Enquanto os outros avançam, ele regride. Foge, mas de quê? A verdade é que Plutão, meu cachorro e não o planeta, é um vira-lata medroso, tanto que às vezes se põe a correr só por causa de um sapato largado na rua. Tinha suas fobias, então se parecia com Plutão, o planeta, que talvez gire ao contrário pelo mesmo motivo, algum horror, alguma aversão monstruosa, sabe-se lá a que, já que ainda não existe a psicologia dos planetas.

Como o planeta, meu cachorro também teve um apelido, Bafo, que vinha de seu mau hálito – e, quando o chamava de Bafo, minha mãe dizia que se tratava de outro cachorro, não do que ela costumava alimentar. Também a descoberta de Plutão é atribuída, muitas vezes, a Percival Lowel, e não a Tombaugh. E Plutão, o planeta, possui ainda um segundo nome, Hades, o deus do inferno, porque é mesmo um inferno ter dois nomes e não saber ao certo quem é.

Como vocês dizem, cometi meu crime – se é que matar um cachorro é um crime – porque não suportava mais essa tendência à duplicidade, ao retorno e à regressão. Transformei-me em seu Caronte, fui escravo de suas manias, eu, um homem respeitável, e mais forte, como Caronte, que trabalho no Tribunal de Contas, na seção de registros e catalogações. Tornei-me só um apêndice, um satélite de meu cão, e quando percebi que aquilo chegara a um ponto insuportável, não tive alternativa. Porque um crime é isso, não é uma decisão, não é um impulso maléfico, não é uma tara, é só uma maneira de fugir. Só que, ao fugir, esbarramos numa imensa muralha.

Se Plutão (Hades) é o deus do inferno, não é à toa. Desde rapaz, quando já não conseguia controlar meus impulsos sexuais, passei a especular se o demônio, de alguma forma, se instalara em meu corpo. Levado por sei lá qual senso de martírio, cultivei costeletas diabólicas. Aquilo me fez mal, mas fazia sentido, era um incômodo que, mesmo incomodando, emprestava uma direção às minhas excentricidades. Outra coincidência infernal é que Plutão, o planeta, foi descoberto por acaso, na verdade como conseqüência de um erro científico, que apontava, desastradamente, a existência de um planeta num lugar onde, a rigor, não deveria haver planeta algum. Tomando o erro a sério, Tombaugh empenhou-se na pesquisa do céu e descobriu Plutão, um erro científico, mas um planeta verdadeiro. Eu, que também nasci por causa de um cálculo malfeito nas tabelas que minha mãe usava para não engravidar, surgi, como um homem real, num lugar em que não devia haver homem algum.

Há quem pense que Plutão deve ser considerado, na verdade, só um asteróide, ou um cometa, e não um planeta, do mesmo modo que meus colegas do Tribunal de Contas costumam acreditar que eu deveria ser apenas um auxiliar de escritório, ou no máximo um subalterno, e jamais um técnico graduado em contabilidade. Meu diploma, de fato, é falso: eu o comprei de um árabe que vive em Botucatu. Não era um especialista em falsificações, mas porque gostava muito de Plutão, não o planeta, mas meu cachorro, um dia, com pena de minha vida miserável (eu sobrevivia como empregado temporário de uma pastelaria), me arrumou o diploma e me salvou.

Por que matei Plutão, meu pobre cachorro, que agora inexiste? Eu o amava. Quando o comprei, acreditava que as características do planeta que desde cedo identifiquei em mim se transfeririam para ele, e que, assim, ele me salvaria. Elas se transferiram, mas continuaram também em mim, e, ao contrário, se exacerbaram, de modo que não me restou alternativa, tive que matá-lo, para me livrar daquilo que nos aproximava. É difícil suportar a semelhança. A desgraça foi que D. Romilda, minha vizinha, assistiu a tudo entre os lençóis de seu varal de roupas, e me denunciou ao Tribunal Verde. E agora, que aqui estou, diante de iminentes veterinários, ecologistas, protetores de animais, não sei se conseguirei me defender, não creio que serei capaz, porque para todos vocês um cachorro vale muito mais que um homem.

Matei Plutão, mas não matei o planeta que me habita – e aviso, desde logo, que desprezo a astrologia, ciência de dondocas e de mentirosos. Plutão, meu cachorro, não matou Plutão, o planeta que me inferniza, que me empurra para trás e que, agora mesmo, enquanto tento me defender diante desse tribunal, dá cambalhotas no firmamento, desperdiçando energia e rindo do universo. Não matou porque um cão não pode exterminar um planeta, mas eu, eliminando Plutão, o cachorro e não o planeta, cheguei a acreditar que tinha obtido a salvação. Pura tolice.

José Castello é jornalista e escritor, autor, entre outros, de Vinicius, o poeta da paixão e Pelé: os dez coracões do rei.

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