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Ficção

Mãos soberanas

Começou de manhã. Ou talvez começasse antes, com o sonho – mas ela preferia acreditar que não, os sonhos não importam, os sonhos nunca importam.

Começou de manhã. Ela estava lendo jornal, era uma quarta-feira, o dia estava nublado e tudo parecia petrificado em seu lugar, o mundo envolto por uma camada de tédio paralisante, da cor das cinzas, a única diferença tendo sido – o sonho.

Recomeçando.
Foi de manhã. Ela estava lendo jornal, era uma quarta-feira, o dia nublado. Acabara de se sentar para tomar café depois de arrumar a mesa da mesma forma – exatamente da mesma forma – que fazia sempre. Embora morasse sozinha havia muitos anos, tinha o hábito de pôr a mesa e se sentar para as refeições com todo o método, dispondo sobre a toalha quadriculada os ingredientes de seu café da manhã: a bandeja com frutas e o pote de cereal à direita; à esquerda, a caixa de biscoitos, o queijo e o mel; bem no centro, a garrafa térmica com o café e o açucareiro. Tudo sempre no mesmo lugar e na mesma ordem.

E então, quando estava assim sentada em seu mundo ordenado, cercada por uma manhã cinzenta e banal, a história começou.

Não foi nada, a princípio, apenas uma matéria, uma bobagem, coisa curiosa daquelas que encontramos nas páginas de ciência dos jornais. Ela achou graça, até. Falava de uma síndrome de nome estranho, que acabara de ser assunto de debate durante um congresso médico na Inglaterra: Síndrome do Dr. Strangelove. O nome era uma referência ao personagem de Peter Sellers no filme Dr. fantástico, aquele cientista cujo nazismo disfarçado teimava em aparecer num movimento involuntário da mão, que se erguia fazendo a saudação a Hitler. Segundo os médicos, os portadores da doença exibiam sintomas parecidos, suas mãos apresentando movimentos súbitos, involuntários. Os cientistas achavam que aquilo era provocado por uma espécie de curto-circuito num dos lobos frontais do cérebro, mas admitiam que essas explicações físicas ainda eram pouco consistentes, ainda mais porque havia uma história de doenças psiquiátricas em quase todos os pacientes.

Lendo aquilo, a mulher baixou sobre a mesa a página do jornal (o espaço à direita, entre a bandeja de frutas e o pote de cereal, que sempre reservava para apoiar o jornal) e observou as próprias mãos, espalmadas. Enquanto tinha os olhos fixos nas mãos imóveis, por um momento sentiu-as como estranhas, duas folhas abertas, duas plantas aquáticas secando ao sol.
Foi assim que começou.

Sentiu uma inquietação, mexeu-se na cadeira. Fechou o jornal e terminou de tomar café olhando para a manhã cinzenta recortada na janela, aquele mundo de pedra que a reconfortava. Pouco depois, ergueu-se e foi tomar banho. Hora de trabalhar.

No banho, nada aconteceu, mas não pôde deixar de registrar um arrepio ao contato da esponja que suas mãos conduziam, como se a espuma ameaçasse amenizar-lhe a pele, sobrepujá-la. A sensação não chegou a se cristalizar, a ganhar superfície. Ficou só lá no fundo, como a recordação imprecisa de um sonho. Vestiu-se depressa. Saiu.

Durante o dia, sentada em sua mesa de trabalho, lutou com um relatório que vinha tentando terminar havia dias. Precisava enviá-lo para a matriz da empresa o quanto antes, já devia tê-lo feito, mas por alguma razão não conseguia. Estava relendo-o mais uma vez, depois de tirar uma cópia na impressora, quando sua mão direita pegou a primeira das três folhas e amassou-a, jogando-a fora. Aconteceu muito depressa. Ela nada pôde fazer. Seus olhos saltaram da folha amassada no fundo da lixeira para a própria mão, suspensa no ar, semi-aberta. Sentia ainda na palma a comichão do contato com o papel sendo enrugado. E teve a nítida sensação de que a mão agira por conta própria.

À noite, ao chegar em casa, outro sobressalto. Encontrou, sobre a mesinha de centro, a poucos metros da mesa onde tomara seu café da manhã, o jornal dobrado, ainda aberto na página de ciência onde constava o artigo sobre a Síndrome do Dr. Strangelove. Aproximou-se devagar e se sentou no sofá. Como podia ser? Metódica como era, nunca seria capaz de sair sem deixar o jornal dentro do porta-revistas. Jamais o largaria ali, fora do lugar, ainda por cima aberto numa página interna. Estranho. Talvez suas mãos, pensou – e cortou o pensamento como se a faca, caminhando depressa em direção à cozinha -, a mente ainda teimando em pensar o que ela não queria, não devia. Estranho, Strangelove, amor estranho.

O jantar transcorreu sem sustos. Depois de comer, a mulher ainda se sentou no sofá para ver o noticiário, mas logo pensou em deitar-se, pois queria ler um pouco e só gostava de ler na cama. E, recostando-se nos travesseiros, de olhos fechados, permitiu-se – pela primeira vez naquele dia, naquela quarta-feira de cinzas, de pedra – pensar no sonho que tivera. Já mais calma e confiante, deixou fluir a lembrança.

Mãos. Mãos muito brancas, quase femininas, de unhas abauladas e ínfimos tufos de pêlos no dorso dos dedos. Mãos de muitos anéis, ricos anéis de prata e ébano, mãos repousando sobre uma superfície de pedra negra, muito polida. Mãos que pareciam respirar de tão vivas. A mulher sabia a quem pertenciam, eram de um príncipe. Podia adivinhar-lhe o porte, o peito largo, os longos cabelos sob a malha de metal, na coroa a cruz que era a razão de sua luta. Mas estava condenada a ver dele apenas as mãos. E estas – de repente – se moviam. E a mulher já nada via. Agora o sonho era tátil, feito apenas de sensações, do calor daquelas mãos que lhe acariciavam a pele devagar, que buscavam um ponto secreto, intocado. Um ponto que ela julgava morto, frio, mas que agora se incendiava à sua revelia. Parece tão real, pensou a mulher. Tão real. Estranho. Estranho amor.

E abriu os olhos.
Abriu-os apenas para ver que eram suas as mãos que ali estavam, tão reais quanto a lembrança do sonho, mãos soberanas, rainhas, que a acariciavam e enlouqueciam, em desafio. E foi assim que entendeu – com horror, com humilhação, com desvario – o quanto precisava, ainda, ser amada.

Heloisa Seixas nasceu no Rio de Janeiro, onde mora. Formada em Jornalismo, é autora do livro de contos Pente de Vênus (1995) e dos romances A porta (1996), Diário de Perséfone (1998), Através do vidro (2001) e Pérolas absolutas (2003), todos pela editora Record. Heloisa é ainda autora dos Contos mínimos, publicados pela revista Domingo, do Jornal do Brasil, que por duas vezes já foram reunidos em livro (Contos mínimos, Record, 2001) e Sete vidas (Cosac&Naify, 2002).

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