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Medicina

Remédios imaginários

Expectativa e condicionamento explicam por que placebo, às vezes, funciona

Talvez os mais rigorosos tenham de rever algumas certezas. Está um pouco mais fácil explicar os resultados estranhos de um estudo norte-americano realizado no Texas e publicado há dois anos em uma das mais respeitadas revistas médicas do mundo, o New England Journal of Medicine . Num experimento destinado a avaliar a eficácia de uma cirurgia bastante comum de joelho, feita em 650 mil indivíduos por ano nos Estados Unidos a um custo de US$ 5 mil cada, as pessoas que passaram por uma falsa operação, com três cortes superficiais no joelho, melhoraram tanto quanto as que se submeteram à cirurgia real, com a retirada de partes gastas de cartilagem.

A explicação? A improvável recuperação de quem experimentou a operação simulada se deve à convicção de que a cirurgia realmente eliminaria a dor do joelho, uma evidência de que o pensamento consegue modificar o funcionamento do corpo. É o chamado efeito placebo: algo que em princípio não deveria funcionar do ponto de vista físico e químico – como os cortes superficiais no lugar de uma cirurgia ou comprimidos de farinha em vez de pílulas com princípio ativo – na prática pode funcionar e, espantosamente, eliminar dores, baixar a pressão arterial, abrandar a ansiedade e diminuir a depressão.

Só agora esse fenômeno, do qual já se tinha consciência há quase 2 mil anos, desde pelo menos a Roma do imperador Marco Aurélio, começa a ser desvendado do ponto de vista bioquímico e fisiológico. É a expectativa de que a cirurgia será eficaz que altera o desempenho do sistema nervoso central, mesmo que na prática seja apenas uma simulação. Acionadas pela imaginação do doente, algumas áreas do sistema nervoso associadas à percepção da dor se tornam menos ativas, enquanto outras, relacionadas à inibição da dor, são acionadas, segundo estudos recentes. O não-tratamento, assim, é uma espécie de indução ao engano aceito pelo próprio cérebro: o que nunca foi se torna o próprio ser.

As nuances do real
As descobertas recentes reacendem um debate ético sobre se, quando e como usar placebo em testes de novos remédios e tratamentos ou mesmo como uma terapia paliativa em algumas doenças crônicas, como enxaqueca ou gastrite, desde que não envolvam risco de morte. Até hoje, os pesquisadores têm por certo que a forma mais eficiente de descobrir a verdadeira capacidade de cura de um novo medicamento ou de uma nova operação é comparar o tratamento real com um placebo – em tese, o mesmo que nada.

Antes de liberar um remédio para ser consumido pela população, as agências de controle de medicamentos – a exemplo da Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, que serve de referência para o Brasil, ou o European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, na Europa – exigem testes com seres humanos com ouso de placebo, o chamado ensaio clínico duplo-cego, no qual nem médico nem paciente sabem quem recebe remédio ou placebo. Essa é, aliás, uma das poucas situações em que se consente o uso de placebo.

A Declaração de Helsinque, conjunto de normas éticas que regulam o uso de placebo em estudos com seres humanos, determina que em qualquer estudo médico deve-se assegurar o melhor tratamento diagnóstico ou terapêutico existente a todos os pacientes – incluindo aqueles do grupo controle, se houver – e, apenas em casos excepcionais, os pesquisadores podem adotar placebo.

Havia tempos se suspeitava de que o placebo fosse mais do que simplesmente algo que não existe, mas consegue fazer bem – um remédio imaginário, enfim. Derivada do verbo latino placere, que significa proporcionar prazer ou agradar, a palavra placebo aparece nos livros de medicina em fins do século 18. Mas o conceito de efeito placebo ganhou peso mesmo após a Segunda Guerra Mundial, quando pesquisas médicas começam a revelar alterações no funcionamento do organismo produzidas por substâncias farmacologicamente inócuas.

Em 1955, o anestesiologista norte-americano Henry Knowles Beecher publicou no Journal of the American Medical Association um artigo provocativo que se tornou uma referência: The powerful placebo . Beecher analisou 15 estudos clínicos nos quais uma parte dos voluntários recebeu placebo para tratar dor, distúrbios cardíacos e problemas gástricos.

De 21% a 58% dos doentes, número que variou segundo o problema apresentado, melhoraram tomando apenas os compostos sem ação farmacológica. E um terço tornou-se um número mágico. Ainda hoje, médicos e farmacólogos acreditam que uma proporção de pessoas semelhante à verificada no estudo de meio século atrás melhore por causa do efeito placebo, não pela ação específica do princípio ativo dos medicamentos, apesar do avanço da indústria química e farmacêutica nesse tempo.

A mais recente revelação sobre esse efeito mostra o placebo em ação sobre o sistema nervoso em tempo real. Por meio de um aparelho de ressonância nuclear magnética, a equipe de Jonathan Cohen, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, produziu imagens do cérebro em atividade de pessoas que participaram de dois experimentos distintos, supostamente voltados para testar a eficácia de um novo analgésico – na realidade, um creme inócuo.

Deitados no interior do aparelho, os participantes tinham de quantificar a dor ao receber um choque no punho no primeiro teste e, no outro, classificavam a dor causada pelo contato de um objeto quente no antebraço. A tela do computador mostrava por meio de cores a intensidade do funcionamento de cada área do cérebro. Em ambos os experimentos, apresentados em um artigo naScience de 20 de fevereiro deste ano, as pessoas afirmaram sentir menos dor nos testes feitos depois da aplicação do creme.

Efeito esperança
A simples informação de que haviam recebido uma dose de pomada analgésica – na verdade, o tal creme sem ação farmacológica – foi suficiente para diminuir a atividade de quatro regiões ligadas à percepção da dor: o córtex cingulado anterior e o somatossensório, a ínsula e o tálamo. Quanto menor a atividade dessas áreas, maior o alívio da dor. Em contraste, essas mesmas áreas permaneceram mais ativas em quem acreditava ter recebido um outro creme sem ação contra a dor – nos dois grupos, foram aplicadas a mesma pomada inativa.

A equipe de Cohen planejou o segundo experimento, no qual o objeto quente ficava em contato com a pele por 20 segundos, de modo que pudesse acompanhar a evolução da atividade do sistema nervoso e da ação do placebo desde antes do estímulo doloroso – fase chamada antecipação, quando um sinal luminoso com a expressão “Prepare-se!” informava ao voluntário que em breve entraria em contato com a peça quente – até a dor cessar por completo.

Tão logo as pessoas recebiam esse aviso, constataram os pesquisadores, aumentava bastante a atividade do córtex pré-frontal – parte do cérebro situada acima dos olhos, que regula outras áreas do sistema nervoso. Em seguida, no monitor do computador que mostrava o cérebro inteiro, brilhava outra região do sistema nervoso situada no mesencéfalo, associada à produção de analgésicos naturais tão potentes quanto a morfina. Na visão de Jonathan Cohen, o coordenador dessa pesquisa, a maior atividade do córtex pré-frontal nessa fase resulta da expectativa de alívio e diminui o funcionamento das áreas responsáveis pela percepção dolorosa. Foi por essa razão que os voluntários relataram uma redução de 22% na intensidade da dor no segundo experimento.

Mas apenas a expectativa de que o tratamento dê certo não explica por completo os resultados. Em dois outros experimentos realizados na Itália, Martina Amanzio e Fabrizio Benedetti, neurocientistas da Universidade de Turim, descobriram outro componente do efeito placebo, o condicionamento – algo parecido com o que viu Ivan Pavlov, o fisiologista russo que treinou cães famintos para salivar ao ouvir o toque de uma sineta.

De modo semelhante ao reflexo condicionado dos cães, o consumo de um determinado analgésico repetidas vezes habitua o corpo a reagir da mesma forma quando uma injeção de analgésico é trocada por uma dose de água com sal – sem o conhecimento do paciente, claro. Conseqüência: o sistema nervoso central faz o próprio corpo produzir compostos contra a dor, em uma reação quase automática a um estímulo conhecido, como, por exemplo, sentir a boca cheia d’água ao ouvir que o bolo de chocolate está pronto.

Uma das dificuldades do experimento da equipe italiana era elaborar um teste que comprovasse o poder do condicionamento. Os pesquisadores de Turim montaram uma complexa bateria de exames com 229 pessoas separadas em 12 grupos, para avaliar melhor os resultados – em cada grupo, se adotava uma estratégia diferente. Cada participante passou por cinco sessões de avaliação na qual repetiam os mesmos exercícios: pressionavam com a mão as hastes de um aparelho com molas – um dinamômetro -, enquanto uma bolsa de ar de um aparelho de medir pressão presa ao braço bloqueava a passagem de sangue para o antebraço do voluntário. A cada apertão, a dor no antebraço aumentava rapidamente e, em questão de minutos, atingia um nível insuportável.

Martina e Benedetti viram que as pessoas toleravam a dor por um período maior se, dez minutos antes do teste, fossem tratadas com uma injeção de morfina. O mais chocante: a resistência à dor foi semelhante à obtida com a morfina quando a pessoa tomava uma injeção de água salgada na terceira sessão de exercícios, após haver recebido o analgésico em dois testes seguidos. Se, no lugar de água e sal, a injeção contivesse uma droga que corta o efeito da morfina – a naxolona -, a tolerância à dor diminuía. Era um sinal claro de que o uso seguido de morfina condicionava o sistema nervoso a acionar as áreas produtoras de analgésicos do grupo dos opióides, ao qual pertence a morfina.

De modo semelhante, o placebo também induziu o corpo a acionar sua própria fonte de analgésico – mas por um mecanismo distinto – após a aplicação de uma dose de cetorolac, um potente analgésico não-opióide, em vez de morfina. Surgiu, porém, uma surpresa: a resistência à dor aumentou ainda mais quando, durante a injeção de placebo, os pesquisadores induziram os participantes a acreditar que o composto inócuo era morfina ou cetorolac. Estava claro: o placebo atuava sobre a dor por mecanismos neurológicos distintos (opióide e não-opióide), acionados em parte pela expectativa, em parte pelo condicionamento.

Em um experimento ainda mais curioso, Martina, Benedetti e outra neurocientista de Turim, Claudia Arduino, revelaram um aspecto até então não imaginado do placebo: sua ação benéfica pode se manifestar em partes específicas do corpo, para as quais se dirigem a atenção e a expectativa. Num teste que lembra uma cena de tortura, os pesquisadores injetaram simultaneamente no dorso das mãos e dos pés de cada voluntário uma dose de capsaicina, substância que faz a pimenta arder na boca. Nos segundos seguintes, o participante recebia um leve choque no pé ou na mão para avaliar a intensidade da dor.

Após a aplicação na mão direita de uma pomada inócua, que se acreditava ser um novo analgésico, os voluntários afirmavam sentir menos dor apenas naquele membro. Em artigo publicado no Journal of Neuroscience, o grupo italiano concluiu que mecanismos de atenção possivelmente também estejam envolvidos no efeito gerado pelo placebo, uma vez que a expectativa direcionada a uma determinada parte do corpo concentrou os benefícios apenas ali.

Além de ajudarem a compreender como nosso organismo reage diante da expectativa de cura, as evidências acumuladas nos últimos anos de que o placebo é mais que uma substância inócua também abrem uma polêmica: é nossa capacidade de autocura que é grande ou o problema está nos medicamentos disponíveis para a população, que são menos eficazes do que seria de esperar? Diversos estudos mostram que substâncias inócuas são capazes de, em algumas doenças, fazer a pessoa melhorar tanto quanto os remédios considerados eficazes, distinção que parece bastante complicada principalmente no caso dos medicamentos usados para tratar da depressão.

Antidepressivos
Em um artigo polêmico intitulado Listening Prozac but hearing placebo (Ouvindo Prozac, mas entendendo placebo), publicado na Prevention and Treatment de junho de 1998, Irving Kirsch, da Universidade de Connecticut, e Guy Sapirstein, do Hospital Westwood Lodge, ambos nos Estados Unidos, afirmaram que substâncias inócuas foram tão eficazes quanto os antidepressivos no tratamento da depressão. Foi um golpe nos medicamentos de eficácia comprovada, que movimentam um mercado de bilhões de dólares no mundo.

Talvez por precaução, o editor da revista adicionou uma observação ao estudo, informando que o trabalho usou uma metodologia polêmica para comparar estudos feitos com métodos e critérios de tratamento distintos. No ano seguinte, o médico Thomas Weihrauch, diretor do Centro de Pesquisas Farmacêuticas do laboratório farmacêutico Bayer, na Alemanha, buscou sinais do efeito placebo em diversos estudos que avaliavam a ação de cinco medicamentos produzidos pela Bayer – contra dor no peito, ansiedade, acidente vascular cerebral, gastrite e diabetes.

Com exceção do tratamento do diabetes, os compostos supostamente inócuos mostraram um nível de eficácia que variou caso a caso. Outra constatação ainda mais inesperada: de modo semelhante aos remédios, as substâncias-placebo provocaram na maior parte dos casos efeitos colaterais, como secura na boca, cansaço e confusão mental. Na conclusão do trabalho, publicado naDrug Research de 1999, o pesquisador adverte: os médicos devem fazer uma seleção muito rigorosa das pessoas a serem tratadas, antes de receitar um medicamento sem eficácia cientificamente comprovada.

Surge então uma dúvida. Se um composto inerte funciona em parte dos casos, ainda pode ser considerado placebo? Depende de quem responde. Para os mais céticos, o placebo não tem ação farmacológica e ponto. Em 2001, os pesquisadores dinamarqueses Peter Gotzsche e Asbjorn Hrobjartsson, da Universidade de Copenhague e do Centro Cochrane em Copenhague, organização internacional que analisa conjuntos de estudos clínicos em busca de evidências da eficácia dos tratamentos, apresentaram no New England Journal of Medicine um artigo desbancando o efeito placebo.

Após analisar 130 estudos clínicos, os pesquisadores constataram que, de modo geral, dar placebo era equivalente a não fornecer nenhum tratamento para o doente. “Encontramos pouca evidência de que, em geral, os placebos apresentem poderosa ação clínica”, concluíram Gotzsche e Hrobjartsson. Segundo eles, os benefícios proporcionados por placebos parecem muito pequenos e foram observados apenas nos testes em que a avaliação da melhora era feita pelo próprio paciente – ou seja, a análise era subjetiva – ou na terapia da dor.

Nem todos pensam assim. Há quem defenda a reavaliação da própria definição de placebo. “Não há uma substância ou um tratamento em particular que possa, de uma vez por todas, ser definido como placebo”, afirma o filósofo Zbigniew Szawarski, da Universidade de Varsóvia, Polônia, em um dos artigos sobre o papel do placebo na pesquisa médica publicado na edição de janeiro da revista Science and Engineering Ethics . Segundo o filósofo, a razão é que a eficácia de um composto químico qualquer – inócuo ou farmacologicamente ativo – depende também das características do medicamento (como cor, forma, aroma), da pessoa que o toma, da relação com o médico e mesmo das circunstâncias em que é usado.

Sobrevivência
Nikola Biller-Andorno, da Universidade de Goettingen, Alemanha, e consultor em ética da Organização Mundial da Saúde, apresenta uma alternativa. “A dicotomia entre substância ‘ativa’ e ‘placebo’ não é adequada, uma vez que os placebos podem produzir efeito e que parte da ação das substâncias ‘ativas’ pode ser decorrente do ‘efeito placebo’. Portanto, a terapia com placebo não deve ser considerada ausência de tratamento”, escreve Andorno em um dos artigos da Science and Engineering Ethics . “Em vez de pensar no emprego de um ou de outro, pode ser mais apropriado imaginar como o efeito placebo pode ser usado para melhorar a eficiência de uma determinada terapia”, propõe.

O neurocientista Raúl de La Fuente-Fernández, da Universidade de Colúmbia Britânica, no Canadá, e do Hospital Arquiteto Marcide, em La Coruña, Espanha, concorda com a necessidade de se alterar a forma de ver o placebo. Na sua opinião, é hora de repensar a estrutura dos estudos científicos.

“Observações recentes indicam que chegou o momento de planejar investigações apropriadas que utilizem o placebo”, afirma o pesquisador. Para ele, o efeito placebo pode ser um mecanismo que os seres humanos desenvolveram a partir da seleção natural. “Num período em que não existiam tratamentos ativos disponíveis, a capacidade de responder a remédios com supostas propriedades curativas poderia elevar a sobrevivência”, comenta La Fuente, que dois anos atrás desvendou como substâncias inócuas agem no sistema nervoso de pessoas com mal de Parkinson, que provoca a perda do controle dos movimentos e mata progressivamente as células produtoras de dopamina.

No artigo da Science and Engineering Ethics de janeiro, em que comenta as evidências bioquímicas do efeito placebo, La Fuente lança a ideia de que esse efeito de sugestão já deve ter sido maior, antes de surgirem os medicamentos atuais: “O poder de cura da fé pode ter diminuído nos tempos modernos como conseqüência da crescente influência que o método científico, uma vez estabelecido na literatura médica como a única ferramenta válida para se chegar à verdade, pode ter tido na mente da população geral.”

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